Morreu o bispo que recusou limitar-se a “tomar café com os ‘grandes’”
Aos 91 anos, D. Eurico Dias Nogueira morreu depois de um “internamento súbito”. Era o único prelado português vivo que tinha participado no Concílio Vaticano II.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
D. Eurico Dias Nogueira era o único prelado português ainda vivo que tinha participado no Concílio Vaticano II (1962-1965). Posteriormente, lamentaria que não se tenha ido mais longe no ímpeto reformista da Igreja Católica. “O Concílio tornou-se um lugar de discussão clara, pública e sem reservas, mas terminando verificou-se que havia uma tendência, de novo, da Santa Sé para centralizar”, lamenta numa entrevista à agência Ecclesia, em 2012, defendendo a necessidade de um concílio a cada 50 anos.
Nasceu em Dornelas do Zêzere, Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra, em 1923. Em 1945, no ano em que terminou a II Guerra Mundial, foi ordenado sacerdote, depois de ter frequentado o seminário de Coimbra, onde também viria a ser ordenado bispo. Em 1964, foi incumbido de abrir em Moçambique a nova diocese de Vila Cabral (Lichinga, após a independência). Dali transitaria, em 1972, para Sá da Bandeira (futura Lubango), em Angola.
E datam da sua passagem pelas antigas colónias as primeiras desavenças com a PIDE. Logo em 1964, um take da agência de notícias Associated Press refere-se ao bispo português que “pediu menos censura governamental nos meios de informação”. A polícia política escrutina-lhe a correspondência e imputa-lhe atitudes de “hostilidade, censura e pouco reconhecimento para com o Governo”. Chega a apelidá-lo de “bispo revolucionário”. Na altura, Eurico Dias Nogueira avisava que não contassem com ele para “tomar café com os ‘grandes da terra’ e chá com as respectivas esposas”. Daí a assumir o rótulo de comunista que chegaram a querer colar-lhe ia uma distância muito grande: “Não dizer bem do Governo era automaticamente ser comunista. Um exagero”, declarara a propósito. Tal nunca o impediu, porém, de se insurgir contra os abusos colonialistas de Lisboa e de criticar abertamente o processo de descolonização.
Três anos após a queda do regime, D. Eurico Dias Nogueira é nomeado arcebispo da diocese de Braga. E foi na qualidade de arcebispo de uma das dioceses mais importantes do país que, de forma mais ou menos constante, se foi pronunciando sobre a actualidade.
De resto, entre as posições que foi assumindo ao longo dos anos destaca-se a vez em que acusou o escritor José Saramago de ser um “ateu confesso e comunista impenitente”. Corria 1992 e estava o país mergulhado na leitura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, um livro “blasfemo e espezinhador da verdade histórica e difamador dos maiores personagens do Novo Testamento”, segundo Eurico Dias Nogueira.
Um ano antes, quando a RTP2 decidira passar o polémico e erótico O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, às 21h55 de uma terça-feira, D. Eurico Dias Nogueira não foge à discussão sobre a linha que separa o erotismo e a pornografia que se instala nas escolas, escritórios, sedes de partidos políticos, ao declarar com o mesmo desassombro: “Aprendi mais em meia hora de filme do que em 67 anos da minha vida”. Ao PÚBLICO, D. Eurico Dias Nogueira acrescentaria que o melhor horário para filmes assim seria “às duas ou três da noite, que será hora adequada para certos marginais e doentes”. E fez coro com os protagonistas políticos mais à direita, Cavaco Silva incluído, ao pedir a demissão do director de programas da RTP2.
Uma década depois, e já depois de ter sido substituído no cargo por D. Jorge Ortiga, o arcebispo emérito defendeu que o celibato devia ser optativo para os padres católicos. Na mesma entrevista, ao jornal Correio da Manhã, disse também que, mais cedo ou mais tarde, a ordenação de mulheres será uma inevitabilidade, nomeadamente por via da admissão ao diaconado. Mais recentemente, numa entrevista de 2012 à Antena 1, reconheceu que a Igreja Católica passou “demasiado tempo calada” sobre os casos de pedofilia e lamentou que a instituição tenha optado por “abafar” os escândalos.
Desde que “entregou” a arquidiocese de Braga a D. Jorge Ortiga, em 1999, manteve-se pela cidade. Foi professor, publicou vários livros; em 2000, foi nomeado juiz do Tribunal Eclesiástico de Braga. Sem nunca ter deixado de servir a Igreja, "soube apagar-se em devido tempo”, conforme escreveu nesta terça-feira a Rádio Renascença em editorial.