“Os filmes africanos não conseguem existir sem o interesse da Europa”

O Festival de Locarno seleccionou quatro projectos de cineastas africanos de língua portuguesa para apresentar no seu fórum de financiamento. Três observadores explicam porque é que, sem estes fóruns, talvez não possa existir um cinema africano.

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Quatro longas-metragens que vão àquela cidade suíça ser apresentadas a potenciais parceiros de produção e financiamento, assinadas por nomes com créditos no cinema africano de língua portuguesa: as ficções Aleluia do angolano Zezé Gamboa, Heart and Fire do moçambicano Sol de Carvalho e Comboio de Sal e Açúcar do moçambicano Licínio de Azevedo, e o documentário do moçambicano Inadelso Cossa, Kula, uma Memória em Três Actos.

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Quatro longas-metragens que vão àquela cidade suíça ser apresentadas a potenciais parceiros de produção e financiamento, assinadas por nomes com créditos no cinema africano de língua portuguesa: as ficções Aleluia do angolano Zezé Gamboa, Heart and Fire do moçambicano Sol de Carvalho e Comboio de Sal e Açúcar do moçambicano Licínio de Azevedo, e o documentário do moçambicano Inadelso Cossa, Kula, uma Memória em Três Actos.

E quatro filmes que, pela sua própria presença em Locarno, exemplificam a difícil sobrevivência das cinematografias de países exteriores aos circuitos tradicionais, e sobretudo de uma África onde as dificuldades do desenvolvimento social e político têm atirado a cultura para um papel secundário ou inexistente. Como diz Fernando Vendrell, realizador e produtor português cuja companhia David & Golias tem co-produzido regularmente cinema africano, “os países de onde estes cineastas vêm não têm políticas de cinema, o que faz que sofram de forma muito agressiva com a questão dos financiamentos.” Fóruns como o Open Doors tornam-se, assim, na melhor – por vezes na única - oportunidade possível para conseguir montar projectos.

Não é uma questão que afecte exclusivamente o cinema africano, mas afecta de modo particular as cinematografias “minoritárias” que são o foco central do Open Doors, como explica por telefone ao PÚBLICO a responsável da estrutura, Ananda Scepka. “Especializamo-nos nos países do sul e do leste, zonas que enfrentam desafios complicados mas que são interessantes precisamente por isso, por serem menos visíveis.” O fórum, que tem como parceiro principal a Direcção para o Desenvolvimento e para a Cooperação do governo suíço, escolhe anualmente um máximo de doze projectos para apresentar a possíveis produtores e financiadores; um júri escolhe igualmente um projecto para receber 50 mil francos suíços (cerca de 40 mil euros).

O foco na África sub-saariana em 2014 surge na sequência de um primeiro apoio em 2012 à África francófona – que coincidiu, aliás, com uma retracção da França, o país mais activo no financiamento estatal do cinema africano, com uma política de suporte e sustentação da francofonia de assinalável impacto. Foi das antigas colónias francesas, sustentadas por fundos entretanto descontinuados como o Fonds Sud Cinéma, que surgiu toda uma geração: do Senegal, Djibril Diop Mambéty e Ousmane Sembène; do Mali, Souleymane Cissé; do Burkina-Faso, Idrissa Ouédraougo – e mesmo cineastas dos PALOP, como o guineense Flora Gomes, beneficiaram com as estruturas francesas. Mas mesmo esta geração, que procurava fazer a ponte entre África e o “primeiro mundo” ocidental, não criou descendência. O mauritânio Abderrahmane Sissako pode continuar a filmar (Timbuktu está este ano na competição de Cannes, ver trailer), mas o único cineasta africano que tem mantido produção regular é o chadiano Mahamat Saleh Haroun – também ele graças a apoios franceses.

Não há salas de cinema

Kate Reidy, programadora e directora do festival suíço Black Movie, é peremptória: “Na maioria dos casos, os filmes africanos não conseguem ser feitos sem financiamento europeu. Precisam de interesse do Ocidente para existirem e serem divulgados.” Atenta à produção do continente africano, a programadora australiana abre excepções para países que conseguiram criar estruturas quase industriais: a África do Sul, “que tem uma indústria e uma influência ocidental muito claras”, e a Nigéria, cuja produção “faça-você-mesmo” levou o país a ser conhecido como “Nollywood”, mas, feita exclusivamente a pensar no público local, é impossível de exportar.
São as excepções num continente onde pensar em indústria de cinema ou política cultural pode ser utópico. Kate Reidy: “O que nos dizem os cineastas é que as condições de vida, de trabalho, de economia, são impossíveis. Não é que não queiram filmar; simplesmente não têm condições, não há apoios, e não há salas de cinema.” O Black Movie, inicialmente dedicado exclusivamente ao cinema africano, abandonou essa abordagem já há vários anos para se tornar num festival de cinema independente global, porque “a produção [africana] deixou de ser suficiente e a qualidade foi declinando. Não havia filmes bons que chegassem”.

Fernando Vendrell, que produziu O Herói de Zezé Gamboa (2004), um dos filmes africanos de língua portuguesa que fez melhor carreira internacional, aponta as contradições de um sistema de apoios que força os filmes a financiarem-se inteiramente no estrangeiro e, no processo, reforça o desinteresse dos países africanos. “Os fundos do Instituto do Cinema e Audiovisual [ICA] são muito importantes para o cinema africano de língua portuguesa, mas têm o efeito perverso de fazer com que os estados não se sintam responsáveis pelos filmes. Que ficam muitas vezes como património dos institutos de cinema locais, mas nem sempre tiveram o seu apoio.”

No caso português, o apoio ao cinema africano tem sido realizado ao abrigo de acordos de colaboração e co-produção com os países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), mas cuja visibilidade pública tem sido reduzida (actualmente, o ICA destina 500 mil euros às co-produções com “países de língua portuguesa”, abertas também ao Brasil). Muitas destas co-produções não chegaram às salas portuguesas - caso de O Grande Kilapy de Gamboa (David & Golias, 2012), de Por Aqui Tudo Bem da angolana Pocas Pascoal (LX Filmes, 2011, mostrado a concurso no IndieLisboa), ou do primeiro filme de Sol de Carvalho, O Jardim do Outro Homem (Fado Filmes, 2006). Quando chegam, o impacto tem sido inexistente – os casos mais recentes foram Virgem Margarida, de Licínio de Azevedo (Ukbar Filmes, 2012), ou A República di Mininus, de Flora Gomes (Filmes do Tejo, 2011), ambos estreados em 2013 perante a indiferença do público.

Se é verdade que muitos destes são filmes de visível fragilidade artística, também é verdade que esbarram num mercado cuja formatação comercial não parece interessado em abrir-lhes espaço. Fernando Vendrell faz notar que muitas vezes o apoio ocidental a estes projectos se concentra no trabalho de pré-produção, desenvolvimento e rodagem, mas não abrange a difusão e distribuição. “Há muitas dificuldades de distribuição, filmes que não chegam a estrear nos seus próprios países. Mas alguns deles dão duas ou três vezes a volta ao mundo [no circuito de festivais], e acabam por ter um impacto internacional muito maior do que uma deslocação de uma comitiva a Washington...”

Vendrell evoca, de caminho, a incompreensão dos decisores ocidentais ao serem confrontados com estes filmes: uns exigem dos projectos africanos uma imagem turística vendável, de exotismo tribal, outros insistem em cadernos de encargos de cidadania e desenvolvimento que correm o risco de tornar os filmes em meros veículos de pedagogia social. Enquanto isso, as estruturas de produção que começam a surgir, por exemplo em Angola, acabam por se dirigir muito mais para uma dimensão televisiva que reproduz de modo mais ou menos linear os modelos ocidentais.

Em Locarno, Ananda Scepka recusa quaisquer cadernos de encargos e define a escolha do comité de selecção Open Doors, que analisou este ano 190 projectos para reter apenas doze, como guiada pela “força artística” do projecto. Para além dos projectos dos PALOP, foram seleccionadas ainda obras da África do Sul, Etiópia, Gana, Uganda e Zâmbia. “Locarno apoia um certo tipo de cinema de autor, e o Open Doors insere-se inteiramente nessa visão,” explica Scepka. “Contrariamente a outros fóruns, que exigem um mínimo de orçamento garantido, estamos abertos a projectos que ainda estejam em desenvolvimento. Alguns levam mais tempo do que outros, uns chegam a Locarno com o dinheiro quase fechado, para outros o financiamento começa aqui. Apoiamos obras que cremos serem capazes de encontrar exposição, mas quando as seleccionamos ainda está tudo por fazer. Não temos numerus clausus por países, nem escolhemos politicamente, mas como em todos os fóruns de co-produção temos que levar em conta se o projecto é realista e praticável.”

E apesar de todas as dificuldades, há uma razão para o foco do Open Doors estar este ano nesta parte do globo. “Sentimos que há uma nova geração muito dinâmica, que pega no touro pelos cornos, tem vontade de fazer coisas e procura os meios de as fazer. Já era o caso da África francófona, mas notámos uma grande actividade em muitos países, com pólos de atracção maior.” Kate Reidy confirma: “Nos últimos quatro ou cinco anos tem havido filmes em regime de auto-produção, documentários feitos a uma escala extremamente pequena, mas que são por vezes de extraordinária qualidade.” É por essa escala pequena que a programadora vê o futuro, mesmo admitindo que não é possível prevê-lo. “A economia mundial e a tecnologia estão a mudar tão depressa que isso tem uma influência muito grande no modo como o cinema se vai transformar e sobreviver. As fronteiras que existiam entre culturas nacionais estão a diluir-se, o modo como as pessoas contam histórias está a tornar-se cada vez mais difícil de definir.”