O barco da Europa aproxima-se de um iceberg e Portugal tem de procurar um escaler

Num debate de fim de tarde na Católica do Porto, Félix Ribeiro trocou ideias “fora da caixa” com Elisa Ferreira. Daniel Bessa e Miguel Cadilhe. A mais veemente e polémica: Portugal tem de jogar com os Estados Unidos o novo capítulo da sua relação com a Europa. Tem de mudar de vida e mudar de mundo. Um debate iluminado por um pensador sem amarras.

Foto
A União Europeia começou a nascer depois da II Guerra Mundial Reuters

Num ponto todos estiveram de acordo: Portugal não pode saltar para a água, “que está muito fria”, como lembrou Félix Ribeiro. Ou seja, não pode abruptamente deixar o euro nem abandonar a União Europeia. A partir daqui, o grau de envolvimento por convicção ou esperança ou de afastamento por desconfiança ou fatalismo separaram os intervenientes. Félix Ribeiro concorda com Miguel Cadilhe quando este avisa que “a transição para a saída do euro geraria uma turbulência incontrolável”, não contesta Daniel Bessa quando este alerta para o facto de com uma nova moeda se produzir uma desvalorização na ordem dos 30% ao mesmo tempo que a dívida das empresas (e das famílias) permanecia amarrada a uma moeda forte, nem contesta Elisa Ferreira quando esta defende que Portugal deve intervir “não como bons alunos, mas como accionistas” da sociedade Europa.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Num ponto todos estiveram de acordo: Portugal não pode saltar para a água, “que está muito fria”, como lembrou Félix Ribeiro. Ou seja, não pode abruptamente deixar o euro nem abandonar a União Europeia. A partir daqui, o grau de envolvimento por convicção ou esperança ou de afastamento por desconfiança ou fatalismo separaram os intervenientes. Félix Ribeiro concorda com Miguel Cadilhe quando este avisa que “a transição para a saída do euro geraria uma turbulência incontrolável”, não contesta Daniel Bessa quando este alerta para o facto de com uma nova moeda se produzir uma desvalorização na ordem dos 30% ao mesmo tempo que a dívida das empresas (e das famílias) permanecia amarrada a uma moeda forte, nem contesta Elisa Ferreira quando esta defende que Portugal deve intervir “não como bons alunos, mas como accionistas” da sociedade Europa.

Mas o modo como o país deve gerir o processo proposto pelo autor do recente livro “Portugal: A Economia de uma Nação Rebelde” é que acrescenta dados novos na difícil equação que Portugal enfrenta. Félix Ribeiro defende uma atitude de “lucidez” que implicaria uma proposta de renegociação da dívida pública tendente à sua mutualização parcial. Nesta negociação seria fundamental haver “uma estratégia que possa ter apoio nas instâncias próximas dos americanos”. Como o FMI. Ou seja, Portugal teria de forçar as suas posições com uma alavanca centrada em Washington. A “parceria transatlântica” que começa a ser negociada entre os Estados Unidos e a UE tornam lógica essa opção e há antecedentes que ajudam a torna-la verosímil.

Félix Ribeiro recorda que da “junta médica” que veio tratar da crise das finanças públicas nacionais (a troika) os que “de longe nos causaram mais problemas” foram a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. “Há gente nos Estados Unidos que não está de acordo com a maneira como isto foi feito”, explica o economista. Explorar esta potencial simpatia, ficou subentendido, reduziria a dependência de Portugal de “um projecto político do que o euro é uma expressão maior”, cujo futuro merece as maiores reservas a Félix Ribeiro.

De resto, em termos geopolíticos, Portugal tem todos os motivos para se afastar do “modelo do capitalismo alemão” e aproximar-se das receitas provenientes do mundo anglo-saxónico. A Alemanha terá de continuar a ser um parceiro importante de Portugal seja qual for o cenário do futuro, mas não se recomenda que seja o parceiro crucial que a integração europeia torna inevitável. “O meu cepticismo sobre a questão europeia centra-se no que a Alemanha quer. Eles não respeitam ninguém, a não ser que sejam mais fortes do que eles”, diz Félix Ribeiro.

Com o barco da União Europeia a ser comandado pela Alemanha, o rumo em direcção a um iceberg é uma quase fatalidade. “Falta-lhes treino de liderança, como se viu na gestão da crise do euro ou se vê na Ucrânia”, diz o economista. Ou clarividência, como, uma vez mais, a história da moeda única comprovou. “O euro foi-nos apresentado como um avião, foi para o ar e quando houve uma turbulência percebemos que afinal era um planador”, ironiza Ribeiro. Na impossibilidade de colocar motores no planador “em pleno voo”, os mercados descobriram a vulnerabilidade do projecto e começaram a disparar contra ele. “Mas não apontaram para o cockpit: apontaram para a barriga do planador”, explica. Onde estavam, precisamente Portugal, a Irlanda ou a Grécia.

Novos parceiros precisam-se
Com tantas dúvidas, desconfianças e cepticismo estratégico face ao caminho continental de Portugal após 1986, é urgente uma alternativa – o escaler. Para isso, há que perceber “o que estão os Estados Unidos dispostos a fazer para que a Europa tenha uma certa formatação”. E, pressionando Bruxelas com os termos da dívida, lançar pontes para a outra orla do Atlântico. Uma tarefa que hoje é mais fácil. “Uma das grandes vantagens, se não a única, do ajustamento foi relativizar a nossa relação com a Europa”, admitiu a eurodeputada Elisa Ferreira

A um destino europeu que nos cola à Espanha e nos faz gravitar na órbita alemã, Félix Ribeiro contrapõe assim uma nova ordem externa na qual o mundo anglo-saxónico assume um papel maior. Ou um modelo de parcerias diferente. “Se quisermos fazer coisas diferentes temos de ir para países diferentes. Temos de procurar parceiros que saibam mais do que nós”. Félix Ribeiro é taxativo: “Temos de procurar funções na globalização com perspectivas de futuro. Para mudarmos essas funções temos de mudar de parcerias”. A América do Norte é crucial nesta estratégia, como o são os países nórdicos, por exemplo. “Se não tivermos amigos no Ártico, não somos respeitados no equador”, explica. Ou seja, os novos parceiros de Portugal têm de ser países ricos e com graus diferentes de afastamento da UE. É daí que poderão vir investimentos, saber, tecnologia, dinamismo e nervo para que Portugal possa manter até o seu nível de proximidade com os Palop. Uma espécie de regresso à ancestral vocação Atlântica do país suspensa após a integração europeia.

Esse desígnio, que implica um novo consenso na sociedade para os próximos “30 anos”, dispensa a ideia de que o Estado é grande de mais ou de que os salários têm de baixar mais para que o país ganhe competitividade. “O nosso futuro não é ser uma loja dos 300”, adverte. Mas passa pela redefinição de um modelo de capitalismo que seja coerente com o da nova órbita geoestratégica na qual Portugal se deverá colocar: em vez do modelo alemão, o modelo anglo-saxónico, que apoia o risco individual, um papel menor para os bancos e maior para os investidores institucionais, um modelo que não penaliza por via fiscal a acumulação de capital e o investimento.

Ousado, “rebelde” ou sábio, Félix Ribeiro “combina geoestratégia com economia e obriga-nos a pensar fora da caixa”, diz Elisa Ferreira. Mas os três participantes estiveram longe de subscrever os riscos que um novo posicionamento externo que contradiga a experiência europeia aberta com a descolonização. Daniel Bessa diz que “tudo o que Félix Ribeiro diz [em termos de parcerias externas] pode ser feito dentro da Europa ou fora da Europa”, e, de resto, “uma das forças para estarmos no mundo é estarmos na Europa”. Miguel Cadilhe pensa que “a crise que estamos a passar é uma crise de meia-idade. Seria um erro histórico sair deste caminho”. E Elisa Ferreira é de opinião que “temos espaço para pertencer à EU e reequilibrar a sua agenda, de modo a que a união monetária não tenha estes desequilíbrios que em certos momentos criam rupturas”. Apesar da divergência, ficou clara uma ideia: a de que o euro e a integração plena na UE já não são vistas com o enlevo de outrora. Tornaram-se uma fatalidade. Uma espécie de casamento que não se desfaz já apenas por falta de alternativa.