Deixar África entrar nesse corpo

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A ideia era antiga. Queria criar um álbum a partir de 20 discos escolhidos por alguém a partir da sua colecção particular, recorrendo a técnicas de sampling e colagem. Quem nos conta a história é D-Mars, luso-croata que viveu muitos anos em Portugal — deixou a sua marca na alvorada do hip-hop com os Zona Dread e depois com os Micro, ao lado de Sagas e Nel’ Assassin, antes de se projectar em nome próprio, ou com as identidades de Rocky Marsiano ou Double D Force, na editora Loop Recordings que co-fundou — e que há seis anos vive em Amesterdão. 

“No ano passado andava à procura de novos desafios como Rocky Marsiano e lembrei-me de voltar a essa ideia”, diz-nos. Para a concretizar contactou um velho amigo, o jornalista e crítico de música Rui Miguel Abreu, também conhecido pela faceta de coleccionador, desafiando-o a escolher duas dezenas de discos. Ele trataria de criar um álbum a partir daí. 

“Quando fui a casa dele buscar os discos não fazia a mínima ideia do que ele tinha seleccionado e foi uma surpresa completa quando percebi que havia escolhido discos dos países africanos de expressão portuguesa. Não estava à espera. Mas assim que ele me mostrou os discos, de imediato, na minha mente, o disco e o conceito começaram a tomar forma.” 

Na sua maioria eram discos da década de 1970 — de Angola, Cabo Verde ou Moçambique, alguns pré e outro pós-independência —, que foram trabalhados de formas diferenciadas. “O disco foi feito em três épocas diferentes do ano passado e com abordagens distintas”, recorda, aludindo ao facto de haver recriações, temas feitos à base de colagens e da introdução de elementos de percussão, e ainda outros criados a partir de dinâmicas rítmicas estabilizadas por ele. “O Rui [Miguel Abreu] deu-me os discos em Julho do ano passado e depois fui logo para uma ilha na Croácia, de férias, e foi fabuloso, porque ali a sonoridade tropical fazia todo o sentido. Mais tarde, em Outubro, trabalhei a partir do meu estúdio em Amesterdão.” 

O resultado final é excitante. Surpreendente pela simplicidade, pela leveza e pela eficácia, com ritmos, harmonias ou vozes resgatadas a mornas, coladeras ou funanás, recriadas por entre técnicas do hip-hop, elementos rítmicos dancehall, propriedades jazzisticas ou componentes disco ou afro-beat. Apesar de já ter havido outras experiências de filosofia algo semelhante (como os Batida), o enquadramento final é singular e refrescante. 

Alguns temas parecem mais ancorados no balanço do hip-hop, como Meu kamba, Irri birri ou Suave. Outros — como Psycho baio, Esse mambo, Tuta ou Dançante— constituem um irresistível convite à dança e à insinuação física, enquanto Bernie, nha mano, mantém um pouco do seu travo melancólico original, numa relação intuitiva, democrática e descomplexada entre músicas africanas e batimentos cardíacos urbanos. 

Festa em palco

“Quando comecei a utilizar técnicas de sampling, recorri aos discos brasileiros da minha mãe, porque ela havia crescido no Brasil”, recorda D-Mars, tentando explicitar os seus motivos de inspiração ao longo dos anos, que passaram pelo jazz, pela soul, pelo disco ou pelo funk, sempre com o hip-hop no foco. Agora é a música angolana ou de Cabo Verde dos anos 1970. “Lembro-me de ouvir alguns destes discos há dez anos”, diz, “mas desta vez ouvi-os com outra sensibilidade, porque entretanto também cresci como compositor e estou mais aberto a outros sons, e não apenas soul ou funk.”

Até agora, na pele de Rocky Marsiano, havia lançado quatro álbuns (The Pyramid Sessions, de 2005, Outside The Pyramid, de 2008, Back To The Pyramid, de 2010, e Music For All Seasons, de 2013), sendo que os dois primeiros eram muito marcados pela relação fusionista com o jazz, o terceiro com a soul e o funk e o quarto com a música brasileira. Agora que a música africana se atravessa no seu caminho, isso provocará diferenças na forma como se revela em palco: “No dia 23 vou tocar no OutJazz, em Lisboa, ainda com a formação habitual, com o André Fernandes e o João Moreira, músicos de jazz. Mas estou já a preparar este álbum para ser tocado ao vivo e aí vou colaborar com outros músicos, noutro formato. Vou querer introduzir uma dimensão de festa em palco. Não será apenas uma sessão de improviso. Seria um erro não tentar isto ao vivo.” 

O último álbum de Rocky Marsiano, do ano passado, ou a compilação Lisbon Bass, lançada na sua mais recente editora, a Adam and Liza, quase não tiveram divulgação em Portugal, acabando por obter visibilidade no Japão ou na Holanda, mas desta feita vai ser diferente. Meu Kemba será editado no próximo dia 26 e o músico até já está a pensar num novo álbum. 

Enquanto isso não sucede, desdobra-se por várias actividades. Durante o dia, trabalha numa empresa especializada em licenciamentos de música. À noite, principalmente aos fins-de-semana, desdobra-se como DJ — seja como Marko Roca, numa linha mais tecno, em cidades como Berlim, ou como Rocky Marsiano, numa veia mais soul e funk. 

O tronco comum de todas estas influências parece continuar a ser o hip-hop que abraçou no final dos anos 1980. Inspirou-se nas suas técnicas e formas de operar. E o olhar transversal que mantém sobre a música actual também foi marcado por uma estrutura hip-hop, a partir da qual todas as ramificações parecem possíveis. Próxima paragem: África.

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A ideia era antiga. Queria criar um álbum a partir de 20 discos escolhidos por alguém a partir da sua colecção particular, recorrendo a técnicas de sampling e colagem. Quem nos conta a história é D-Mars, luso-croata que viveu muitos anos em Portugal — deixou a sua marca na alvorada do hip-hop com os Zona Dread e depois com os Micro, ao lado de Sagas e Nel’ Assassin, antes de se projectar em nome próprio, ou com as identidades de Rocky Marsiano ou Double D Force, na editora Loop Recordings que co-fundou — e que há seis anos vive em Amesterdão. 

“No ano passado andava à procura de novos desafios como Rocky Marsiano e lembrei-me de voltar a essa ideia”, diz-nos. Para a concretizar contactou um velho amigo, o jornalista e crítico de música Rui Miguel Abreu, também conhecido pela faceta de coleccionador, desafiando-o a escolher duas dezenas de discos. Ele trataria de criar um álbum a partir daí. 

“Quando fui a casa dele buscar os discos não fazia a mínima ideia do que ele tinha seleccionado e foi uma surpresa completa quando percebi que havia escolhido discos dos países africanos de expressão portuguesa. Não estava à espera. Mas assim que ele me mostrou os discos, de imediato, na minha mente, o disco e o conceito começaram a tomar forma.” 

Na sua maioria eram discos da década de 1970 — de Angola, Cabo Verde ou Moçambique, alguns pré e outro pós-independência —, que foram trabalhados de formas diferenciadas. “O disco foi feito em três épocas diferentes do ano passado e com abordagens distintas”, recorda, aludindo ao facto de haver recriações, temas feitos à base de colagens e da introdução de elementos de percussão, e ainda outros criados a partir de dinâmicas rítmicas estabilizadas por ele. “O Rui [Miguel Abreu] deu-me os discos em Julho do ano passado e depois fui logo para uma ilha na Croácia, de férias, e foi fabuloso, porque ali a sonoridade tropical fazia todo o sentido. Mais tarde, em Outubro, trabalhei a partir do meu estúdio em Amesterdão.” 

O resultado final é excitante. Surpreendente pela simplicidade, pela leveza e pela eficácia, com ritmos, harmonias ou vozes resgatadas a mornas, coladeras ou funanás, recriadas por entre técnicas do hip-hop, elementos rítmicos dancehall, propriedades jazzisticas ou componentes disco ou afro-beat. Apesar de já ter havido outras experiências de filosofia algo semelhante (como os Batida), o enquadramento final é singular e refrescante. 

Alguns temas parecem mais ancorados no balanço do hip-hop, como Meu kamba, Irri birri ou Suave. Outros — como Psycho baio, Esse mambo, Tuta ou Dançante— constituem um irresistível convite à dança e à insinuação física, enquanto Bernie, nha mano, mantém um pouco do seu travo melancólico original, numa relação intuitiva, democrática e descomplexada entre músicas africanas e batimentos cardíacos urbanos. 

Festa em palco

“Quando comecei a utilizar técnicas de sampling, recorri aos discos brasileiros da minha mãe, porque ela havia crescido no Brasil”, recorda D-Mars, tentando explicitar os seus motivos de inspiração ao longo dos anos, que passaram pelo jazz, pela soul, pelo disco ou pelo funk, sempre com o hip-hop no foco. Agora é a música angolana ou de Cabo Verde dos anos 1970. “Lembro-me de ouvir alguns destes discos há dez anos”, diz, “mas desta vez ouvi-os com outra sensibilidade, porque entretanto também cresci como compositor e estou mais aberto a outros sons, e não apenas soul ou funk.”

Até agora, na pele de Rocky Marsiano, havia lançado quatro álbuns (The Pyramid Sessions, de 2005, Outside The Pyramid, de 2008, Back To The Pyramid, de 2010, e Music For All Seasons, de 2013), sendo que os dois primeiros eram muito marcados pela relação fusionista com o jazz, o terceiro com a soul e o funk e o quarto com a música brasileira. Agora que a música africana se atravessa no seu caminho, isso provocará diferenças na forma como se revela em palco: “No dia 23 vou tocar no OutJazz, em Lisboa, ainda com a formação habitual, com o André Fernandes e o João Moreira, músicos de jazz. Mas estou já a preparar este álbum para ser tocado ao vivo e aí vou colaborar com outros músicos, noutro formato. Vou querer introduzir uma dimensão de festa em palco. Não será apenas uma sessão de improviso. Seria um erro não tentar isto ao vivo.” 

O último álbum de Rocky Marsiano, do ano passado, ou a compilação Lisbon Bass, lançada na sua mais recente editora, a Adam and Liza, quase não tiveram divulgação em Portugal, acabando por obter visibilidade no Japão ou na Holanda, mas desta feita vai ser diferente. Meu Kemba será editado no próximo dia 26 e o músico até já está a pensar num novo álbum. 

Enquanto isso não sucede, desdobra-se por várias actividades. Durante o dia, trabalha numa empresa especializada em licenciamentos de música. À noite, principalmente aos fins-de-semana, desdobra-se como DJ — seja como Marko Roca, numa linha mais tecno, em cidades como Berlim, ou como Rocky Marsiano, numa veia mais soul e funk. 

O tronco comum de todas estas influências parece continuar a ser o hip-hop que abraçou no final dos anos 1980. Inspirou-se nas suas técnicas e formas de operar. E o olhar transversal que mantém sobre a música actual também foi marcado por uma estrutura hip-hop, a partir da qual todas as ramificações parecem possíveis. Próxima paragem: África.

 

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Rocky Marsiano

Meu Kamba
Adam and Liza