A incrível história de William Onyeabor ainda está por contar
Poucos músicos não ficariam eufóricos se a Luaka Bop lhes telefonasse a mostrar interesse em fazer uma compilação em torno da sua obra. Mas William Onyeabor não ficou. “Porque é que queres falar sobre isso?”, perguntou a Yale Evelev, presidente da editora fundada pelo ex-Talking Heads David Byrne. “Eu só quero falar sobre Jesus.” E desligou o telefone.
Sobre Onyeabor, homem de Enugu, cidade do Sudeste da Nigéria, dizia-se todo o tipo de coisas: que estudou cinema na União Soviética (ou Direito?) e voltou a casa em meados dos anos 70 para fundar estúdios de cinema e de música e a sua editora; que os sintetizadores que usava vinham da Rússia; que financiou o seu próprio filme; que foi advogado; que representou a marca de sintetizadores Moog. O que se sabia ao certo, porque os discos não mentem, é que fazia funk como ninguém fazia na Nigéria, um funk com espaço para sintetizadores e outra maquinaria, a milhas do que se produzia no seu país nos anos 70 e 80 — e que ainda ia mais longe, já que temas comoLet’s fall in love parecem mesmo antecipar a cadência infinita da música house, que nasceria na mesma altura, mas em Chicago. E sabia-se também que, em 1985, Onyeabor parou de fazer discos e dedicou a vida a Cristo.
Sem outra colaboração do músico além da assinatura no contrato, a Luaka Bop demoraria meia década a conseguir lançar a dita compilação, Who Is William Onyeabor?, editada no final do ano passado. Mais recentemente, o nigeriano, hoje na casa dos 70, foi alvo de um documentário, Fantastic Man. Mas continua a rejeitar tocar ao vivo, esclarecer a sua vida ou falar com jornalistas. O New York Times e a Mojo tiveram a sorte de publicar algumas palavras. “Eu era um pecador que se arrependeu e se deu a 100% a Cristo”, disse ao primeiro.
Nos últimos dias, Damon Albarn (Blur), Alexis Taylor (Hot Chip), Kele Okereke (Bloc Party), Pat Mahoney (LCD Soundsytem), David Byrne e outros músicos participaram em concertos em Londres, Los Angeles, Nova Iorque e São Francisco — não temos Onyeabor em palco, mas temos gente que o adora a prestar-lhe homenagem. Mais amor: a propósito do Record Store Day, em Abril, foi lançada uma compilação com versões e remisturas das canções de Onyeabor pela mão de gente tão diversa como Hot Chip e The Vaccines. Músicos (os supracitados, mas também Caribou, Devendra Banhart e muitos outros) fazem-lhe vénias e coleccionadores de todo o mundo cobiçam os oito álbuns que fez entre 1977 e 1985 (chegam a ser vendidos por valores com três zeros). Ouvidos hoje, soam modernos e inclassificáveis: na Nigéria de Fela Kuti e de bandas como The Funkees e Apostles (James Brown era referência tutelar), havia um homem, recluso e misterioso, a produzir música com instrumentos electrónicos como os Moog, estranhos e luxuosos.
Os jornais nigerianos da época falavam em “sintetizadores sofisticados” e “instrumentação disco sofisticada”. Mas já na altura se sabia pouco acerca dele.
Detectives
“No início foi difícil. Não sabes que Damon Albarn é um fã, pensas que ele é praticamente desconhecido, as primeiras dez pessoas que contactas não te respondem”, confessa Eric Welles-Nystrom, manager da Luaka Bop, a partir dos escritórios da editora, em Nova Iorque.
Quando conversou com o Ípsilon, Eric acabara de chegar de uma visita a Enugu. Who Is William Onyeabor? está cá fora, mas abundam as questões ainda sem resposta. “Não o ficamos a conhecer melhor de cada vez que o visitamos. Podemos passar uma semana com ele e ficar só a ver televisão cristã e a ouvi-lo falar sobre Deus. Mas depois há um momento em que fala de outra coisa e aprendes algo. Quando concordou em fazer o disco mas disse que não iria falar, ficámos numa situação complicada”, conta. Como promover alguém que recusa tocar ao vivo, dar entrevistas, alguém para quem ceder um velho VHS com um teledisco difícil de obter é um problema quase intransponível?
A Luaka Bop empreendeu um verdadeiro trabalho de detective, que envolveu conversas com músicos contemporâneos de Onyeabor e visitas a Enugu, onde o músico tem uma grande propriedade e uma rua com o seu nome. Nos encontros com Onyeabor, Eric mede as palavras e procura as melhores formas de saber algo mais sobre a personagem: “O facto de não conseguires encontrar nada on-line — uma biografia ou uma presença — intrigou-nos e obcecou-nos. Hoje conseguimos encontrar quase tudo na Internet, até a foto da casa de alguém. E eis este tipo sobre o qual não se consegue encontrar quase nada.”
“Acho que ele agora começa a perceber que as pessoas no Ocidente gostam dele. E aprecia, mas preferia saber que tu lês a Bíblia à noite do que falar sobre isso. Repete constantemente coisas como não querer mais publicidade, querer apenas estar em paz. Quando estou lá, diz-me muitas vezes que não quer que eu fale com mais ninguém, liga-me para ver se estou no hotel e não a andar pela cidade. Só quer fazer as suas orações”, continua Eric.
“Quando as coisas não são pesquisáveis na internet provavelmente confundem toda a gente”, acrescenta Jake Sumner, realizador de Fantastic Man. “O facto de ele não aparecer está relacionado com o fascínio das pessoas. E Onyeabor está provavelmente muito ciente disto — é um tipo muito esperto.”
“Leiam as vossas bíblias”
Nas estadias em Enugu, Eric e companhia mostram a William Onyeabor recortes de imprensa que lhe dêem a noção do burburinho que causa em todo o mundo. Parece valorizar mais que uma revista desconhecida publique a sua foto do que saber que a Time pôs Who Is William Onyeabor? entre os dez melhores discos de 2013.
Onyeabor demorou muito tempo a aceitar o convite da Luaka Bop. Foi o nigeriano Uchenna Ikonne que, em 2009, teve a ideia de fazer uma compilação em torno de Onyeabor. Percebeu que a Luaka Bop faria um melhor serviço do que a sua pequena editora, propôs-lhe o projecto e assumiu as negociações em nome da editora norte-americana. As conversas foram tensas. “Ele estava relutante em assinar um contrato porque sentia que tinha sido enganado no passado quando licenciou a sua música a uma editora estrangeira”, conta Ikonne. Onyeabor recebeu o dinheiro de avanço, mas demorou três anos a assinar o contrato. Numa das conversas, acusou Ikonne de ser um agente do Diabo.
Uchenna Ikonne ouviu a música de Onyeabor quando era criança, nos anos 70. “Os miúdos de hoje” da Nigéria, diz-nos, “não sabem nada sobre ele, a não ser que tenham ouvido que a obra dele está a ser reeditada no estrangeiro”.
A viver em Boston, nos EUA, Ikonne, que tinha um blogue dedicado à música africana, compreende a fixação actual do Ocidente neste filão. “As pessoas ficam surpreendidas porque conhece-se pouco de África e a maioria dos media retratam um local escuro, miserável e violento”, teoriza. Num local desses não haveria lugar para música alegre como a de Onyeabor.
Em Fantastic Man, Laolu Akins, músico de Lagos, diz que Onyeabor era, nos anos em que durou a sua carreira, o único artista a ter o seu próprio estúdio e a sua própria fábrica de prensagem de discos. E nas suas estadias em Enugu Eric encontrou, mais do que um músico, um homem de negócios orgulhoso. “Antes de falarmos sobre a música dele, falávamos sobre o facto de ele fabricar os seus próprios discos.”
O que Onyeabor fazia no início da década de 70 e como chegou aos instrumentos electrónicos é ainda um “mistério”, afirma Eric, que chegou a contactar a Moog para saber se tinha enviado sintetizadores para a Nigéria naqueles anos. A resposta foi negativa, o que indica que tê-los-á conseguido no estrangeiro.
“Ele viajava muito. Sei que, no início dos anos 80, ele visitou os EUA, a Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia, a Itália... Importava equipamento para a sua fábrica. A sua cidade parece ser hoje muito remota, nos anos 70 nem consigo imaginar: Enugu foi um dos principais palcos da guerra do Biafra [a guerra civil nigeriana, entre 1967 e 1970].”
No final de Fantastic Man, há um plano da enorme casa de Onyeabor com um letreiro a dizer “Palácio Deus é Rei” e um Mercedes à porta. O músico rejeitou ser entrevistado, mas pediu que filmassem a escadaria dentro do “palácio”. Estão lá um Moog e fotos das vidas que levou (na música e na fé), num altar improvisado. No exterior, Onyeabor acena-nos. Ouvimos uma gravação, as palavras que disse à Mojo: “Vivam uma boa vida. Cumpram a palavra de Deus. Leiam as vossas bíblias.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Poucos músicos não ficariam eufóricos se a Luaka Bop lhes telefonasse a mostrar interesse em fazer uma compilação em torno da sua obra. Mas William Onyeabor não ficou. “Porque é que queres falar sobre isso?”, perguntou a Yale Evelev, presidente da editora fundada pelo ex-Talking Heads David Byrne. “Eu só quero falar sobre Jesus.” E desligou o telefone.
Sobre Onyeabor, homem de Enugu, cidade do Sudeste da Nigéria, dizia-se todo o tipo de coisas: que estudou cinema na União Soviética (ou Direito?) e voltou a casa em meados dos anos 70 para fundar estúdios de cinema e de música e a sua editora; que os sintetizadores que usava vinham da Rússia; que financiou o seu próprio filme; que foi advogado; que representou a marca de sintetizadores Moog. O que se sabia ao certo, porque os discos não mentem, é que fazia funk como ninguém fazia na Nigéria, um funk com espaço para sintetizadores e outra maquinaria, a milhas do que se produzia no seu país nos anos 70 e 80 — e que ainda ia mais longe, já que temas comoLet’s fall in love parecem mesmo antecipar a cadência infinita da música house, que nasceria na mesma altura, mas em Chicago. E sabia-se também que, em 1985, Onyeabor parou de fazer discos e dedicou a vida a Cristo.
Sem outra colaboração do músico além da assinatura no contrato, a Luaka Bop demoraria meia década a conseguir lançar a dita compilação, Who Is William Onyeabor?, editada no final do ano passado. Mais recentemente, o nigeriano, hoje na casa dos 70, foi alvo de um documentário, Fantastic Man. Mas continua a rejeitar tocar ao vivo, esclarecer a sua vida ou falar com jornalistas. O New York Times e a Mojo tiveram a sorte de publicar algumas palavras. “Eu era um pecador que se arrependeu e se deu a 100% a Cristo”, disse ao primeiro.
Nos últimos dias, Damon Albarn (Blur), Alexis Taylor (Hot Chip), Kele Okereke (Bloc Party), Pat Mahoney (LCD Soundsytem), David Byrne e outros músicos participaram em concertos em Londres, Los Angeles, Nova Iorque e São Francisco — não temos Onyeabor em palco, mas temos gente que o adora a prestar-lhe homenagem. Mais amor: a propósito do Record Store Day, em Abril, foi lançada uma compilação com versões e remisturas das canções de Onyeabor pela mão de gente tão diversa como Hot Chip e The Vaccines. Músicos (os supracitados, mas também Caribou, Devendra Banhart e muitos outros) fazem-lhe vénias e coleccionadores de todo o mundo cobiçam os oito álbuns que fez entre 1977 e 1985 (chegam a ser vendidos por valores com três zeros). Ouvidos hoje, soam modernos e inclassificáveis: na Nigéria de Fela Kuti e de bandas como The Funkees e Apostles (James Brown era referência tutelar), havia um homem, recluso e misterioso, a produzir música com instrumentos electrónicos como os Moog, estranhos e luxuosos.
Os jornais nigerianos da época falavam em “sintetizadores sofisticados” e “instrumentação disco sofisticada”. Mas já na altura se sabia pouco acerca dele.
Detectives
“No início foi difícil. Não sabes que Damon Albarn é um fã, pensas que ele é praticamente desconhecido, as primeiras dez pessoas que contactas não te respondem”, confessa Eric Welles-Nystrom, manager da Luaka Bop, a partir dos escritórios da editora, em Nova Iorque.
Quando conversou com o Ípsilon, Eric acabara de chegar de uma visita a Enugu. Who Is William Onyeabor? está cá fora, mas abundam as questões ainda sem resposta. “Não o ficamos a conhecer melhor de cada vez que o visitamos. Podemos passar uma semana com ele e ficar só a ver televisão cristã e a ouvi-lo falar sobre Deus. Mas depois há um momento em que fala de outra coisa e aprendes algo. Quando concordou em fazer o disco mas disse que não iria falar, ficámos numa situação complicada”, conta. Como promover alguém que recusa tocar ao vivo, dar entrevistas, alguém para quem ceder um velho VHS com um teledisco difícil de obter é um problema quase intransponível?
A Luaka Bop empreendeu um verdadeiro trabalho de detective, que envolveu conversas com músicos contemporâneos de Onyeabor e visitas a Enugu, onde o músico tem uma grande propriedade e uma rua com o seu nome. Nos encontros com Onyeabor, Eric mede as palavras e procura as melhores formas de saber algo mais sobre a personagem: “O facto de não conseguires encontrar nada on-line — uma biografia ou uma presença — intrigou-nos e obcecou-nos. Hoje conseguimos encontrar quase tudo na Internet, até a foto da casa de alguém. E eis este tipo sobre o qual não se consegue encontrar quase nada.”
“Acho que ele agora começa a perceber que as pessoas no Ocidente gostam dele. E aprecia, mas preferia saber que tu lês a Bíblia à noite do que falar sobre isso. Repete constantemente coisas como não querer mais publicidade, querer apenas estar em paz. Quando estou lá, diz-me muitas vezes que não quer que eu fale com mais ninguém, liga-me para ver se estou no hotel e não a andar pela cidade. Só quer fazer as suas orações”, continua Eric.
“Quando as coisas não são pesquisáveis na internet provavelmente confundem toda a gente”, acrescenta Jake Sumner, realizador de Fantastic Man. “O facto de ele não aparecer está relacionado com o fascínio das pessoas. E Onyeabor está provavelmente muito ciente disto — é um tipo muito esperto.”
“Leiam as vossas bíblias”
Nas estadias em Enugu, Eric e companhia mostram a William Onyeabor recortes de imprensa que lhe dêem a noção do burburinho que causa em todo o mundo. Parece valorizar mais que uma revista desconhecida publique a sua foto do que saber que a Time pôs Who Is William Onyeabor? entre os dez melhores discos de 2013.
Onyeabor demorou muito tempo a aceitar o convite da Luaka Bop. Foi o nigeriano Uchenna Ikonne que, em 2009, teve a ideia de fazer uma compilação em torno de Onyeabor. Percebeu que a Luaka Bop faria um melhor serviço do que a sua pequena editora, propôs-lhe o projecto e assumiu as negociações em nome da editora norte-americana. As conversas foram tensas. “Ele estava relutante em assinar um contrato porque sentia que tinha sido enganado no passado quando licenciou a sua música a uma editora estrangeira”, conta Ikonne. Onyeabor recebeu o dinheiro de avanço, mas demorou três anos a assinar o contrato. Numa das conversas, acusou Ikonne de ser um agente do Diabo.
Uchenna Ikonne ouviu a música de Onyeabor quando era criança, nos anos 70. “Os miúdos de hoje” da Nigéria, diz-nos, “não sabem nada sobre ele, a não ser que tenham ouvido que a obra dele está a ser reeditada no estrangeiro”.
A viver em Boston, nos EUA, Ikonne, que tinha um blogue dedicado à música africana, compreende a fixação actual do Ocidente neste filão. “As pessoas ficam surpreendidas porque conhece-se pouco de África e a maioria dos media retratam um local escuro, miserável e violento”, teoriza. Num local desses não haveria lugar para música alegre como a de Onyeabor.
Em Fantastic Man, Laolu Akins, músico de Lagos, diz que Onyeabor era, nos anos em que durou a sua carreira, o único artista a ter o seu próprio estúdio e a sua própria fábrica de prensagem de discos. E nas suas estadias em Enugu Eric encontrou, mais do que um músico, um homem de negócios orgulhoso. “Antes de falarmos sobre a música dele, falávamos sobre o facto de ele fabricar os seus próprios discos.”
O que Onyeabor fazia no início da década de 70 e como chegou aos instrumentos electrónicos é ainda um “mistério”, afirma Eric, que chegou a contactar a Moog para saber se tinha enviado sintetizadores para a Nigéria naqueles anos. A resposta foi negativa, o que indica que tê-los-á conseguido no estrangeiro.
“Ele viajava muito. Sei que, no início dos anos 80, ele visitou os EUA, a Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia, a Itália... Importava equipamento para a sua fábrica. A sua cidade parece ser hoje muito remota, nos anos 70 nem consigo imaginar: Enugu foi um dos principais palcos da guerra do Biafra [a guerra civil nigeriana, entre 1967 e 1970].”
No final de Fantastic Man, há um plano da enorme casa de Onyeabor com um letreiro a dizer “Palácio Deus é Rei” e um Mercedes à porta. O músico rejeitou ser entrevistado, mas pediu que filmassem a escadaria dentro do “palácio”. Estão lá um Moog e fotos das vidas que levou (na música e na fé), num altar improvisado. No exterior, Onyeabor acena-nos. Ouvimos uma gravação, as palavras que disse à Mojo: “Vivam uma boa vida. Cumpram a palavra de Deus. Leiam as vossas bíblias.”