Inspecção da Justiça denuncia risco iminente de ruptura nas cadeias
Orçamento deste ano da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais com défice de 27 milhões. Caos no funcionamento é uma “questão estrutural” ligada à falta de funcionários e à crónica falta de verbas.
Isso aliás já aconteceu, por exemplo, em Outubro de 2012, no único hospital prisional do país, em Caxias, quando, devido às dívidas acumuladas, uma empresa que prestava serviços auxiliares de acção médica deixou de pagar aos seus colaboradores e estes deixaram de ir trabalhar, o que obrigou a avançar com um plano de contingência.
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Isso aliás já aconteceu, por exemplo, em Outubro de 2012, no único hospital prisional do país, em Caxias, quando, devido às dívidas acumuladas, uma empresa que prestava serviços auxiliares de acção médica deixou de pagar aos seus colaboradores e estes deixaram de ir trabalhar, o que obrigou a avançar com um plano de contingência.
O caos no funcionamento é, no entendimento da equipa de inspecção, uma “questão estrutural” ligada à falta de funcionários e à crónica falta de verbas, com a sucessão de orçamentos deficitários que obrigam ao reforço do financiamento perto do final de cada ano.
Face ao atraso sucessivo nos pagamentos, as ameaças de ruptura no fornecimento de serviços é uma constante no dia-a-dia da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), responsável pelos 49 estabelecimentos prisionais existentes e pelos oitos centros educativos onde estão internados jovens que cometeram crimes, dizem os auditores num relatório preliminar em fase de contraditório. “A pressão dos fornecedores é imensa, com constantes avisos de cortes de fornecimentos por atrasos nos pagamentos. Note-se que o pagamento da dívida transitada de 2012, apenas foi autorizada em Outubro de 2013, praticamente com um ano de atrasos, com graves constrangimentos para os fornecedores”, lê-se no documento.
A inspecção espera enviar “em breve” o relatório final para a ministra da Justiça, que terá que o homologar para que este se torne exequível para os visados, muitos dos quais poderão vir a ser responsabilizados com multas que variam entre os 2550 e os 18.360 euros. O relatório contabiliza 18 casos em que o Tribunal de Contas poderá exigir a responsabilidade financeira sancionatória a dirigente da DGRSP e do Ministério da Justiça por violações das regras de contratação pública. A maioria dos casos visa o próprio Rui Sá Gomes e dois subdirectores-gerais.
Foi o gabinete do ex-secretário de Estado Fernando Santo que alertou a ministra para o recurso frequente a ajustes directos e a assunção até final de 2012 de 2,2 milhões de despesas sem cabimento orçamental. Esta dívida resulta da soma de 1100 facturas, algumas com data de 2006, ou seja, com mais de seis anos de atraso. O relatório destaca a falta de fiabilidade dos dados e diz “que se desconhece o real valor da dívida”.
Os inspectores que assinam o relatório explicam que quando confrontaram a Direcção de Serviços de Recursos Financeiros e Patrimoniais da DGRSP lhes foi explicado que, face à repetida insuficiência orçamental para as despesas do próprio ano, “a opção tem sido pagar as facturas de anos anteriores apenas na medida em que os fornecedores as reclamem”. Também realça o que chama de suborçamentação crónica, relevando, por exemplo que no orçamento de 2014, com uma dotação de 230 milhões, existe um défice “27 milhões de euros face às necessidades de financiamento da DGRSP, estimadas em 257 milhões”.
Concursos chegam a demorar quase três anos
Os inspectores analisaram a pente fino seis processos de aquisição de serviços, como refeições confeccionadas, saúde ou vigilância electrónica, detectando procedimentos que chegaram a demorar 34 meses, obrigando a sucessivos ajustes directos para que os serviços essenciais (neste caso de saúde) não fossem interrompidos. A responsabilidade é parcialmente atribuída à DGRSP, mas também a vários governantes, como o antigo secretário de Estado da Administração Pública Hélder Rosalino ou serviços do Ministério da Justiça, que demoram muito tempo a aprovar o reforço de verbas ou a realização da despesa ou o lançamento dos concursos. Os inspectores repetem em diversos casos que os ajustes directos foram assinados já depois dos serviços terem sido prestados “tratando-se de uma mera formalização de uma aquisição que já estava mais do que consumada, com absoluta ausência das normas essenciais à formação do contrato”.
A empresa que fornece os serviços de vigilância, que controlam o funcionamento das pulseiras electrónicas, esteve a operar 18 meses ao abrigo de ajustes directos, devido ao atraso na conclusão de um novo concurso público por falta de verbas. “Se o novo concurso tivesse terminado a tempo de dar continuidade ao anterior, as poupanças seriam significativas”, em perto de um milhão de euros. “A falta de cerca de 580 mil euros esteve na génese do não lançamento atempado do concurso público e que acabou por surgir meses mais tarde, acabou por originar um dispêndio de mais de 945 mil euros para o erário público”.
Apesar de criticar a violação das regras de contratação, a auditoria conclui que “a prestação dos serviços em causa (alimentação, saúde, vigilância electrónica e gestão dos centros educativos) não pode ser interrompida, sob pena de gerar grande instabilidade e perturbação no sistema prisional e tutelar educativo”.
Os inspectores concluem, por um lado, que a DGRSP é “diligente nos concursos” e “pauta a sua actuação pelo cumprimento da legalidade”, por outro sublinham que a circunstância em que aquela direcção “labora” com “atrasos”, impele-a muitas vezes para “opções violadoras das nomas legais vigentes”. A auditoria atesta que a DGRSP debate-se com “carência de pessoal” na área financeira e constata que o organismo dispõe de um modelo de gestão orçamental muito “complexo”. Fica ainda patente a ausência de planeamento que faz com que a DGRSP não consiga “responder em tempo útil a todas as solicitações”.
No relatório, a inspecção destaca a necessidade de os concursos públicos serem lançados com mais antecedência para acautelar atrasos que “empurram a DGRSP para a opção do recurso ao ajuste directo”. No âmbito do financiamento, o documento recomenda à tutela que “atribua o plafond necessário compatível com as necessidades anuais” da DGRSP. Isto porque, garante, “a DGRSP tem tido, de modo crónico, orçamentos iniciais insuficientes para fazer face às suas despesas globais”.
O documento, com data de 11 de Março deste ano, foi remetido nesse mesmo dia para Rui Sá Gomes para em 20 dias se pronunciar sobre o teor do mesmo. Apesar do prazo já ter terminado, o PÚBLICO apurou que ainda estão a ser prestados esclarecimentos à IGSJ. O PÚBLICO tentou contactar sem sucesso Rui Sá Gomes, tendo a ministra da Justiça já dito que não vai comentar este documento enquanto aguarda a entrega do relatório final.
Já no ano passado, o Tribunal de Contas concluiu que a DGRSP prorrogou quatro contratos de fornecimento de serviços de alimentação confeccionada a 32 cadeias em todo o país de forma ilegal. Em causa estavam contratos no valor de mais de três milhões de euros renovados em 2011. O TC, num relatório recente considerava que quatro dos 14 contratos, celebrados já em 2007, 2008 e 2009, não poderiam ser prorrogados. Já tinham sido renovados duas vezes e alcançado o limite previsto.
Bares não pagam impostos
Boa parte das mercearias e bares existentes no interior das cadeias não pagam IVA nem tão pouco entregam facturas dos produtos vendidos aos reclusos. Muitas mercearias, designadas de cantinas no meio prisional, não têm contabilidade organizada e as que passam facturas fazem-no através de folhas de Excel que não têm qualquer validade legal. Também neste ponto, o relatório da inspecção revela um completo caos organizacional que cria uma série de ilegalidades fiscais. A inspecção feita exige um “levantamento urgente” de toda a situação fiscal da DGRSP.
O relatório diz que as cantinas lucram 680 mil euros em média por ano, mas só entregam 600 mil à DGSP. Em muitos casos, tal acontece porque as cadeias usam essas verbas em falta para pagar as retribuições aos reclusos pelo trabalho prestado. Por outro lado, estas contas não são submetidas a avaliação. As prisões comunicam os lucros à DGSP que depois apenas arquiva não sendo informada dos balancetes.
As mercearias, onde os reclusos podem comprar produtos de higiene, tabaco e alguma alimentação para além da fornecida já confeccionada nos refeitórios, são abastecidas por retalhistas sem concurso procedimental. Assim, no interior das cadeias, o preço dos produtos chega a custar mais 12% do que o preço de venda ao público para cobrir os custos da cantina. Tal já motivou muitas queixas de reclusos acolhidas pela inspecção que considera que as tais mercearias não se destinam a ter lucro. Diz ainda o relatório que se as compras fossem feitas a um grossitas tal seria evitado.
O relatório explica que, amiúde, as contas são elaboradas por assistentes operacionais e que, apesar de obrigatório, não há, muitas vezes, a intervenção de técnicos oficiais de contas. A inspecção detectou um volume de vendas total de 8,3 milhões nas cantinas, um montante, que, diz, é demasiado elevado para estar sem controlo. São ainda apontadas “diferenças de caixa”. Na cadeia de Lisboa, foram detectados 100 mil euros em falta e em Faro 33 mil.
Por outro lado, as prisões têm reclusos a trabalhar para empresas no exterior sem qualquer “acordo” ou “protocolo” escrito, nomeadamente em várias câmaras municipais. Para além da ausência de qualquer contrato, não há também seguros de trabalho nem descontos para a Segurança Social. No Estabelecimento Prisional de Sintra, por exemplo, apesar de haver um acordo escrito que regula a prestação de trabalho dos reclusos a uma empresa que assegura o funcionamento do refeitório da própria cadeia, os funcionários não possuem seguro nem descontam para a Segurança Social. Muitos destes acordos verbais, que constituem receita para os serviços prisionais (ficam com 10% das remunerações dos reclusos) nem são sequer do conhecimento da DGRSP.