Europa: o medo de existir

Desde a queda do Muro de Berlim, o mundo deu muitas voltas. A Europa, virada sobre si mesma e distraída com as suas próprias contradições, não prestou atenção a nenhuma. A Ucrânia fê-la regressar ao ponto de partida. O mundo olhará para ela em função do que acontecer em Kiev.

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O futuro dos europeus jogar-se-á, porventura como nunca, na Ucrânia.

Chegou a deslumbrar-se consigo própria e a imaginar-se capaz de dispensar a protecção americana. Percebeu, na desagregação violenta da Jugoslávia, que precisava de Washington e da NATO para vencer o nacionalismo extremo e pôr cobro a uma nova “limpeza étnica” que acreditava definitivamente enterrada. Acreditou (pelo menos parte dela) que, depois da Guerra Fria, lhe cabia o papel de contrabalançar o poder americano. Sentiu-se “americana” no dia 11 de Setembro de 2001. Dividiu-se profundamente com a guerra de George W. Bush no Iraque, mas acompanhou a América no Afeganistão, admitindo que os ataques terroristas de Nova Iorque e de Washington exigiam uma resposta digna do Artigo 5º da Aliança Atlântica. Foi recompondo a sua relação com Washington: a eleição de Obama ajudou a desanuviar o ambiente. Ultrapassou as velhas quezílias sobre a defesa europeia que marcaram a década de 90: complementar da NATO ou “autónoma” em relação à NATO. A França não queria nada menos do que a autonomia. Os britânicos rejeitavam tudo o que pudesse beliscar a NATO. O ponto de encontro acabou por ser que “não seriam separadas mais separáveis”. A União poderia pedir emprestadas à NATO algumas das suas capacidades, se tivesse que agir sozinha. Ainda hoje se espera pela assinatura de um acordo entre a União Europeia e a NATO para formalizar este compromisso, graças ao veto turco. Apesar das divergências, Tony Blair e Jacques Chirac souberam tirar as devidas conclusões da humilhação europeia nos Balcãs, na célebre cimeira de St. Malo em que tentaram lançar uma nova capacidade militar europeia. O primeiro-ministro britânico chegou a proclamar que a Europa seria “uma superpotência, não um super-Estado”. O Iraque, que dividiu profundamente a Europa,  pôs fim às suas intenções.

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Chegou a deslumbrar-se consigo própria e a imaginar-se capaz de dispensar a protecção americana. Percebeu, na desagregação violenta da Jugoslávia, que precisava de Washington e da NATO para vencer o nacionalismo extremo e pôr cobro a uma nova “limpeza étnica” que acreditava definitivamente enterrada. Acreditou (pelo menos parte dela) que, depois da Guerra Fria, lhe cabia o papel de contrabalançar o poder americano. Sentiu-se “americana” no dia 11 de Setembro de 2001. Dividiu-se profundamente com a guerra de George W. Bush no Iraque, mas acompanhou a América no Afeganistão, admitindo que os ataques terroristas de Nova Iorque e de Washington exigiam uma resposta digna do Artigo 5º da Aliança Atlântica. Foi recompondo a sua relação com Washington: a eleição de Obama ajudou a desanuviar o ambiente. Ultrapassou as velhas quezílias sobre a defesa europeia que marcaram a década de 90: complementar da NATO ou “autónoma” em relação à NATO. A França não queria nada menos do que a autonomia. Os britânicos rejeitavam tudo o que pudesse beliscar a NATO. O ponto de encontro acabou por ser que “não seriam separadas mais separáveis”. A União poderia pedir emprestadas à NATO algumas das suas capacidades, se tivesse que agir sozinha. Ainda hoje se espera pela assinatura de um acordo entre a União Europeia e a NATO para formalizar este compromisso, graças ao veto turco. Apesar das divergências, Tony Blair e Jacques Chirac souberam tirar as devidas conclusões da humilhação europeia nos Balcãs, na célebre cimeira de St. Malo em que tentaram lançar uma nova capacidade militar europeia. O primeiro-ministro britânico chegou a proclamar que a Europa seria “uma superpotência, não um super-Estado”. O Iraque, que dividiu profundamente a Europa,  pôs fim às suas intenções.

Um longo caminho
Não se pode dizer que os europeus não perceberam que, com o fim da Guerra Fria, teriam de assumir uma maior responsabilidade pela sua própria segurança e precisavam de uma política externa mais eficaz para defender os seus valores e os seus interesses. Não poderiam continuar a ser uma “gigantesca ONG”, na expressão de Jacques Delors, limitando-se a exibir o seu estatuto de maior dador de ajuda ao desenvolvimento e humanitária e deixando que os EUA tratassem da sua segurança. O Tratado de Lisboa tentou responder a este desafio, criando uma série de novos instrumentos para lidar com o mundo. Pôs de pé um serviço europeu de acção externa que tem hoje 5000 funcionários, vindos da Comissão, do Conselho e das diplomacias nacionais, 123 delegações com nível de embaixada e um orçamento razoável. Mas quando, em 2009, a escolha dos líderes europeus para chefiar o novo serviço recaiu sobre Catherine Ashton, sem qualquer experiência de política externa, muita gente percebeu que seu o empenho era muito limitado. Ashton falhou porque as capitais europeias queriam que falhasse. Como falharam as anteriores revisões do Tratado de Maastricht que foram criando uma estrutura militar que, pelo menos na teoria, deveria dar músculo à sua política externa. Como disse Javier Solana, o anterior Alto representante para a política externa, “há fardas nos corredores das sedes da União Europeia”. Como há battle groups constituídos para projectar o poder militar da União para zonas de conflito. Até agora, nenhum foi utilizado. As boas intenções nunca passaram do papel. “O Mali devia ser o caso perfeito para a sua utilização”, disse à Spiegel Marcus Kaim, director do Instituto alemão para os Assuntos Internacionais. “O debate alemão sobre política de segurança começa sempre por um não”, diz à mesma revista Sebastian Feyok, de outro think-tank alemão. Quando François Hollande foi pedir apoio aos seus parceiros europeus para o Mali, recebeu muitas palmadinhas nas costas mas praticamente mais nada. Angela Merkel avisou logo que não pagava as missões militares dos outros.

A Líbia já tinha demonstrado que a França e a Inglaterra, as duas potências europeias habituadas a agir militarmente, podem fazer a diferença. Mas mostrou também as profundas divisões europeias quando a Alemanha, que hoje lidera a Europa, se comportava como uma “potência emergente” no Conselho de Segurança da ONU, abstendo-se ao lado do Brasil, da Rússia e da China. Berlim já se arrependeu. Merkel foi obrigada a assumir um papel central nos acontecimentos da Ucrânia. Percebeu o que estava em causa e a necessidade de coordenar a resposta com Washington. Mas não se sabe até quando a chanceler vai aguentar as pressões internas (não apenas dos grandes empresários, mas também de uma parte significativa do SPD, tradicionalmente mais pró-russo e antiamericano) e de muitas capitais europeias que conseguem “dar razão” a Putin e encolher os ombros sobre a sua estratégia antiocidental e agressiva. Negam-se a perceber o mundo em que vivem.  

Um exemplo para o mundo
Nos anos seguintes à Guerra Fria, quando a globalização económica fazia o seu caminho e Francis Fukuyama anunciava “o fim da História” graças à expansão da ordem liberal, o modelo de integração europeu, com a paz e a prosperidade que garantiu, transformou-se num exemplo que muita gente queria seguir. Réplicas mais ou menos conseguidas nasceram na América Latina, na Ásia e até em África. A capacidade de atracção da União Europeia revelava-se um poderoso soft-power. Cumpriu a sua missão estratégica de unificar o continente em paz e em democracia. Hoje, até a Sérvia está disposta a negociar uma relação com o Kosovo para receber o bilhete de entrada. Mark Leonard, director do European Council on Foreign Relations, que chegou a vê-la como a superpotência do século XXI, escreveu que a sua capacidade de “regime change” era muito mais poderosa do que o poderia militar americano. O alargamento mudou os seus equilíbrios de força internos. A França deixou de poder liderar politicamente uma Europa que deixara de construir-se ao serviço da sua grandeza. A Alemanha cumpriu o seu objectivo de “se rodear de Ocidente por todos os lados”, na expressão feliz do historiador britânico Timothy Garton Ash. O Reino Unido (de Blair) encontrou novos aliados para a sua visão da Europa e a sua ligação aos EUA.

Em 2000, António Guterres e Tony Blair decidiram tomar a iniciativa de propor à Europa uma estratégia económica capaz de tirar partido da globalização dos mercados e das novas tecnologias, tentando emular o sucesso económico americano. A sigla BRIC já tinha sido inventada por um economista da Goldman Sachs, mas ainda não percebida. A China e o “resto” não entravam na equação. Entrariam rapidamente quando se percebeu que a globalização económica, classificada inicialmente de “americanização”, tinha afinal servido melhor o “resto” do que o Ocidente. O mundo haveria de dar mais uma volta com a queda das Torres Gémeas. E mais outra, seis anos depois, com a queda do Lehman Brothers. A Europa passou os últimos quatro anos às voltas com uma crise que começou por ser dos países do Sul, mas que rapidamente se tornou uma crise do euro, de dimensões inimagináveis. Voltou-se de novo para dentro de si própria. Os parceiros do G20 não conseguiram entender como é que o bloco económico mais rico do mundo não foi capaz de resolver uma crise que começou por representar 2% do seu PIB.

A França percebeu que a sua oposição à América só servia para enfraquecê-la. Nicolas Sarkozy tomou a decisão histórica de fazer regressar a França à estrutura militar da NATO, de onde De Gaulle a retirara em 1966. Percebeu que passava por aí também a melhor forma de se afirmar perante a Alemanha. Assinou um tratado de defesa com David Cameron e abraçou a estratégia de Merkel para salvar o euro. Hollande não pôs em causa este equilíbrio, mesmo que tenha levado dois anos a percebê-lo. A Alemanha chegou a pensar que já não precisava da Europa para singrar num mundo desejoso de comprar aquilo que ela produzia, arrepiou caminho, salvou o euro. É, hoje, o interlocutor fundamental de Washington. O Reino Unido vê a sua “relação especial” com a América posta em causa graças à perda de influência britânica nas decisões europeias. É o preço muito alto que David Cameron está a pagar aos eurocépticos.

O regresso ao passado
Ironicamente, uma nova crise pela qual não esperava, fez a Europa regressar ao ponto de partida. O “império soviético” que tinha implodido em 1991 quase em guerra, está de regresso pela mão de Vladimir Putin e com uma nova ideologia: o nacionalismo agressivo. Não deu a devida atenção às palavras do Presidente russo, em 2005, quando declarou que o fim da URSS tinha sido a “maior catástrofe do século XX”. Com altos e baixos, continuou a acreditar que o caminho da Rússia só podia ser em direcção à Europa, garantido pela cada vez maior interdependência económica. Bruxelas tratou a Ucrânia sem considerar sequer a sua particular situação geopolítica e não lhe ofereceu a cereja em cima do bolo, que constitui a promessa de adesão. Fez mais ou menos o mesmo que tinha feito antes à Turquia. Sem o magnete europeu, o país de Erdogan, que deveria ser um exemplo para as Primaveras árabes, está em rápida regressão democrática. Joschka Fischer, o antigo chefe da Diplomacia alemã, tinha avisado que o destino europeu neste mundo globalizado e multipolar se jogava em Ancara: “A Europa terá de escolher entre ser um actor global com a Turquia, ou um actor secundário sem ela”. O Monde escrevia ontem que “a crise na Ucrânia soa como um doloroso despertar para os europeus, ultrapassados pela lógica da força, imposta por Putin, e de novo dependentes dos EUA e a NATO para a sua segurança.” A Europa, enquanto potência normativa, ainda tenta fazer ouvir a sua diferença, “mas nunca, como hoje, pareceu tão fraca na cena internacional”. O problema maior é que “não é capaz de pensar-se como um actor global”, diz Elisabeth Guigou, antiga ministra de Mitterrand e de Jospin. Continua a ser uma potência económica mas não consegue ser uma potência política.

A mudança estratégica da Rússia remeteu a Europa à casa de partida. O futuro dos europeus jogar-se-á, porventura como nunca, na Ucrânia. O que não será fácil. A Rússia está suspensa de todos os fóruns de cooperação com o Ocidente, do G8 à NATO, mas Putin irá às celebrações dos 70 anos do desembarque na Normandia. E Paris ainda não decidiu se vende ou não vende a Moscovo duas das suas mais modernas fragatas Mistral. O mundo actual está cheio de contradições. Mas, como escreveram vários analistas americanos, Putin pode ter feito um favor à Europa e aos Estados Unidos, dando um novo sentido à relação transatlântica. A Parceria Transatlântica para o Investimento e o Comércio pode ser mais fácil de alcançar, contrariando o declínio ocidental. E a Europa tem de perceber que a sua força apenas reside na sua unidade.