Oportunidade perdida
É verdade que é difícil dar conta deste espaço. A grande nave do Centro de Arte Moderna (CAM) possui informação mais do que suficiente para tornar qualquer montagem difícil. As janelas para o jardim, a abertura para as galerias superior e inferior, os elevadores, varandins e outras infraestruturas necessárias numa sala de museu — foi para essa finalidade que o espaço foi pensado — interferem com a apreciação de uma exposição. Desde que o CAM apostou, há alguns anos, nas grandes exposições individuais, em detrimento da apresentação da sua riquíssima colecção de arte moderna e contemporânea portuguesa, contam-se pelos dedos de uma mão as montagens bem feitas que temos podido aí ver. Recordamos alguns momentos gratos, como a Plegaria Muda de Doris Salcedo, em 2012. E outros, menos gratos, de que falámos em seu devido tempo.
À partida, a grande antológica de Rui Chafes, O Peso do Paraíso, tinha tudo para se tornar numa das melhores exposições dos últimos anos. O artista, que aqui celebra também 25 anos de carreira, possui uma obra consistente, original e, globalmente, de grande qualidade. Na escultura e no desenho, mas também na tradução e na escrita, a sua actividade desdobra-se por várias disciplinas sem se deixar nunca definir exactamente. Admira, e não o esconde, o Romantismo alemão, o que enforma o seu pensamento plástico: há sempre, na sua obra e no seu discurso, uma renitência à explicação, ao conteúdo, à racionalidade, ao classicismo.
Todas as suas esculturas, e isto desde as peças mais antigas, convocam um vazio que preenche formas em ferro pintadas de negro. Chame-se-lhes o que se quiser: armaduras, instrumentos de tortura, casacos, sapatos, pássaros sem cabeça, bolas apoiadas em finas tiras moles, Rui Chafes sorrirá sempre e responderá com um dos seus aforismos. No fundo, toda a sua escultura é uma imensa anamorfose em torno do vazio, da fleuma, da alma das coisas — uma nostalgia do sublime e do génio, conceitos que, como sabemos, estão hoje inelutavelmente ligados ao Romantismo que os criou e que, também, os destruiu. Já não há génios. Toda a sua obra, por fim, é uma viagem sem chegada ao sol negro da melancolia, da morte.
E como é que o público vê isto no CAM? É muito simples, não vê. Rui Chafes domina totalmente as montagens em espaços que convocam essa ideia romântica de sublime: lembre-se a magnífica exposição individual na Galeria Filomena Soares, Tranquila ferida do sim, faca do não, em que o visitante tinha de adaptar o olhar à escuridão quase total do espaço, ou a montagem já antiga no Jardim da Sereia, em Coimbra, ou ainda a peça Aproxima-te, ouve-me, no Palácio da Inquisição da mesma cidade, em 2002. Aqui, num espaço de características modernas que se prolonga num jardim que nada deve à herança romântica, as suas esculturas perdem-se na imensidão da nave, convivem umas com as outras sem suscitar qualquer interrogação no espectador e até, num dos casos, parecem prolongar-se pateticamente em direcção a um tanque com patos. Não houve, excepto no hall e na grande escultura de formas orgânicas junto à entrada, domínio do lugar ou diálogo possível com o cubo branco asséptico que o CAM não é, mas ao qual todo o museu aspira.
E se, no jardim, as coisas se passam melhor — afinal, é um jardim de esculturas —, isto que aqui dizemos tem uma consequência imediata: é que toda a obra de Rui Chafes, mais do que escultura ou desenho, é instalação. Esse diálogo necessário com o lugar que aqui se logrou, essa contribuição do público que avançava com receio na galeria de Lisboa, ou que ficava estupefacto em Coimbra, não funcionou aqui. É pena, porque a obra de Chafes possui uma qualidade ímpar. E também porque, queira-se ou não, “a” exposição individual na Gulbenkian é sempre a marca do reconhecimento no nosso país.
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É verdade que é difícil dar conta deste espaço. A grande nave do Centro de Arte Moderna (CAM) possui informação mais do que suficiente para tornar qualquer montagem difícil. As janelas para o jardim, a abertura para as galerias superior e inferior, os elevadores, varandins e outras infraestruturas necessárias numa sala de museu — foi para essa finalidade que o espaço foi pensado — interferem com a apreciação de uma exposição. Desde que o CAM apostou, há alguns anos, nas grandes exposições individuais, em detrimento da apresentação da sua riquíssima colecção de arte moderna e contemporânea portuguesa, contam-se pelos dedos de uma mão as montagens bem feitas que temos podido aí ver. Recordamos alguns momentos gratos, como a Plegaria Muda de Doris Salcedo, em 2012. E outros, menos gratos, de que falámos em seu devido tempo.
À partida, a grande antológica de Rui Chafes, O Peso do Paraíso, tinha tudo para se tornar numa das melhores exposições dos últimos anos. O artista, que aqui celebra também 25 anos de carreira, possui uma obra consistente, original e, globalmente, de grande qualidade. Na escultura e no desenho, mas também na tradução e na escrita, a sua actividade desdobra-se por várias disciplinas sem se deixar nunca definir exactamente. Admira, e não o esconde, o Romantismo alemão, o que enforma o seu pensamento plástico: há sempre, na sua obra e no seu discurso, uma renitência à explicação, ao conteúdo, à racionalidade, ao classicismo.
Todas as suas esculturas, e isto desde as peças mais antigas, convocam um vazio que preenche formas em ferro pintadas de negro. Chame-se-lhes o que se quiser: armaduras, instrumentos de tortura, casacos, sapatos, pássaros sem cabeça, bolas apoiadas em finas tiras moles, Rui Chafes sorrirá sempre e responderá com um dos seus aforismos. No fundo, toda a sua escultura é uma imensa anamorfose em torno do vazio, da fleuma, da alma das coisas — uma nostalgia do sublime e do génio, conceitos que, como sabemos, estão hoje inelutavelmente ligados ao Romantismo que os criou e que, também, os destruiu. Já não há génios. Toda a sua obra, por fim, é uma viagem sem chegada ao sol negro da melancolia, da morte.
E como é que o público vê isto no CAM? É muito simples, não vê. Rui Chafes domina totalmente as montagens em espaços que convocam essa ideia romântica de sublime: lembre-se a magnífica exposição individual na Galeria Filomena Soares, Tranquila ferida do sim, faca do não, em que o visitante tinha de adaptar o olhar à escuridão quase total do espaço, ou a montagem já antiga no Jardim da Sereia, em Coimbra, ou ainda a peça Aproxima-te, ouve-me, no Palácio da Inquisição da mesma cidade, em 2002. Aqui, num espaço de características modernas que se prolonga num jardim que nada deve à herança romântica, as suas esculturas perdem-se na imensidão da nave, convivem umas com as outras sem suscitar qualquer interrogação no espectador e até, num dos casos, parecem prolongar-se pateticamente em direcção a um tanque com patos. Não houve, excepto no hall e na grande escultura de formas orgânicas junto à entrada, domínio do lugar ou diálogo possível com o cubo branco asséptico que o CAM não é, mas ao qual todo o museu aspira.
E se, no jardim, as coisas se passam melhor — afinal, é um jardim de esculturas —, isto que aqui dizemos tem uma consequência imediata: é que toda a obra de Rui Chafes, mais do que escultura ou desenho, é instalação. Esse diálogo necessário com o lugar que aqui se logrou, essa contribuição do público que avançava com receio na galeria de Lisboa, ou que ficava estupefacto em Coimbra, não funcionou aqui. É pena, porque a obra de Chafes possui uma qualidade ímpar. E também porque, queira-se ou não, “a” exposição individual na Gulbenkian é sempre a marca do reconhecimento no nosso país.