O museu da adolescência
Quando se articulam as expressões “autobiografia” e “Maio de 68”, costuma-se ir dar ao nome de Philippe Garrel, que há décadas se tem insistentemente autobiografado, encontrando nesse mês de Maio um ponto nevrálgico da autobiografia.
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Quando se articulam as expressões “autobiografia” e “Maio de 68”, costuma-se ir dar ao nome de Philippe Garrel, que há décadas se tem insistentemente autobiografado, encontrando nesse mês de Maio um ponto nevrálgico da autobiografia.
Vindo relativamente pouco tempo depois de um filme de Garrel que a este respeito é crucial (Os Amantes Regulares, filme de 2005, que para mais “revelou” Garrel a muita gente e se tornou uma das suas obras mais populares), há que ter um certo respeito pela coragem de Olivier Assayas em trilhar um caminho semelhante: Depois de Maio é a sua autobiografia com Maio de 68 ao fundo. “Ao fundo” porque, na verdade, já passou: a acção situa-se em 1971 (quando Assayas tinha 16 anos) e o espírito de Maio, tal como o filme o mostra, vive agora num grupo de adolescentes porventura demasiado novos para terem tido real participação na agitação de três anos antes.
Esta espécie de teimosia, mais ou menos irracional e já um pouco “desligada”, é um dos temas evocados pelo filme, sobretudo quando um acto de “protesto” descamba acidentalmente em violência e obriga os miúdos protagonistas à errância para se furtarem à Justiça. Ao mesmo tempo, a leveza com que Assayas a trata é um dos aspectos que mais limitam Depois de Maio. É um filme demasiado embevecido consigo mesmo para ser capaz de olhar as coisas com alguma frieza. A reconstituição da época é credível e, num certo sentido, irrepreensível, mas até por isso - o glamour dos decores, do guarda-roupa, dos penteados - vê-se Depois de Maio com a sensação de que o que lhe interessa primeiramente é a fotogenia, idealizada, do Maio de 68 ou, mais genericamente, da rebeldia juvenil. Uma forma de superficialidade, portanto, que não anda longe de se encerrar, sem qualquer distância crítica, numa espécie de folclore cultural, de que são exemplo ainda as elegantíssimas escolhas musicais do filme e dos seus protagonistas (Syd Barrett, Soft Machine...). Não questionaremos a sinceridade da memória de Assayas, assim organizada no seu “museu” pessoal do Maio de 68, mas este tratamento, tão auto-condescendente, articula-se mal com as contradições e as complexidades da época, e por certo com as contradições e as complexidades da época tal como outros filmes (e aqui outra vez Garrel mas não só) a articularam. Depois de Maio é só um passeio, pontualmente agradável, bem feito (demasiado bem feito), mas onde a suave nostalgia da adolescência corta toda a gravidade. No fim, uma metáfora mostra que o “duplo” de Assayas foi “escolhido” pelo cinema, e que essa escolha representa uma “saída”, ou uma passagem à frente.
Sugerindo, portanto, que as coisas não se sobrepõem, antes se vão substituindo umas às outras. É a derradeira, e capital, diferença entre Assayas e Garrel, cineasta que (em Os Amantes Regulares e em muito mais filmes) leva uma obra inteira a mostrar que nada substitui nada, tudo se sobrepõe, e que o espírito do Maio de 68 foi, justamente, todas as coisas (o cinema, o amor, a política e etc.) integradas, sobrepostas, no mesmo movimento.