“O futebol brasileiro está a ficar para trás”

Paulo André, um dos líderes do Bom Senso, critica a organização do futebol brasileiro, considerando a CBF uma "vergonha".

Foto
Paulo André, ao serviço do Corinthians, de onde saiu no início do ano Paul Whitaker/Reuters

Como nasceu a ideia de criar o movimento Bom Senso FC?
Foi uma ideia genuína, oriunda de uma necessidade latente expressa em entrevistas diversas por vários jogadores da elite do futebol brasileiro. Naquele momento, estávamos desconectados, cada um no seu clube, reclamando das mesmas coisas. Então ligar os pontos foi a maneira que encontrámos de aumentar o tom das nossas reivindicações e foi assim que surgiu o Bom Senso.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Como nasceu a ideia de criar o movimento Bom Senso FC?
Foi uma ideia genuína, oriunda de uma necessidade latente expressa em entrevistas diversas por vários jogadores da elite do futebol brasileiro. Naquele momento, estávamos desconectados, cada um no seu clube, reclamando das mesmas coisas. Então ligar os pontos foi a maneira que encontrámos de aumentar o tom das nossas reivindicações e foi assim que surgiu o Bom Senso.

A vossa experiência na Europa foi decisiva para avançar com essas reivindicações? Que diferença há entre as duas realidades?
Talvez o senso de organização e a importância dada para a capacitação de treinadores, gestores e para a formação de jovens atletas na Europa tenha aberto a mente dos atletas brasileiros que passaram por lá na última década. É triste retornar ao Brasil e ver que, apesar do potencial gigantesco, o futebol é tratado amadoramente como um circo de uma cidade do interior. Estamos [o futebol brasileiro] ficando para trás e o pior cego é aquele que não quer ver.

É verdade que o Whatsapp foi uma das formas de vocês comunicarem? Como foi essa comunicação quando muitos de vocês estão em cidades diferentes (e agora até países diferentes), viajando constantemente para jogos e estágios?
Exactamente por esse motivo (das viagens e dos compromissos) as redes sociais, em especial o Whatsapp, foram usadas e tiveram grande valia para a comunicação e a propagação do movimento entre os atletas. Numa noite de quarta-feira histórica, em que São Paulo e Flamengo trocaram passes por um minuto após o apito inicial, tudo havia sido combinado pelo celular minutos antes, com os atletas de várias equipas trocando mensagens dentro dos vestiários enquanto se vestiam para entrar em campo. Foi inacreditável.

O Paulo André e Juninho Pernambucano eram dois dos principais rostos do Bom Senso. Você mudou-se para a China e o Juninho retirou-se. Isso tirou força ao movimento?
O movimento é como a onda do mar. Ele vai deixando as suas marcas na areia. Às vezes, a maré está mais alta e a água atinge uma porção mais distante da praia, às vezes ela recua. O importante é continuar e consciencializar os jovens e os atletas em geral de que é necessário defender o nosso desporto e participar de práticas coerentes com as nossas crenças. Não só o futebol, todo o país tem muito a ganhar com isso. Talvez esse seja o maior legado do Bom Senso – pessoas bem sucedidas que decidiram parar de reclamar, arregaçaram as mangas e foram em busca de um debate por melhorias para todos.

O Paulo André jogou no Corinthians. Sócrates teve alguma influência no espírito do Bom Senso FC?
Fui muito próximo do Sócrates nos seus últimos anos de sua vida. Gostaria que ele estivesse vivo para ver e nos ajudar no nosso movimento. A maior lição que ele me deu foi não abrir mão de lutar por aquilo em que acredito, apesar das críticas e da dificuldade de compreensão da maioria das pessoas. Ele fez isso durante toda a sua vida.

Os jogadores que mais têm dado a cara são os mais velhos. Ainda há receio de enfrentar o poder?
Sempre houve e haverá. Alguns políticos são perigosos e traiçoeiros. É preciso que os mais "fortes" tomem a frente do processo para que os mais jovens não fiquem expostos. No final do dia, por instinto de sobrevivência, cada um pensa na sua segurança e no conforto de sua família e por esse motivo não podemos colocar em risco jovens com carreiras ainda não consolidadas.

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não tem dado grande abertura aos vossos protestos e até está a limitá-los. Ainda acredita que é possível mudar o estado do futebol brasileiro?
A CBF é uma vergonha. É incompetente e não consegue discutir o futebol tecnicamente, nem orientar o seu desenvolvimento. O seu estatuto é ultrapassado, quase uma ditadura. São políticos preocupados com a manutenção de seus poderes e indiferentes às necessidades e carências actuais do futebol brasileiro. O futuro é negro se não conseguirmos mudar isso.

Haverá condições e coragem para fazerem uma greve durante o campeonato?
Estamos tentando viabilizar isso. Chegámos perto algumas vezes, mas acredito que o último passo será dado ainda este ano. O prejuízo será para todos os envolvidos (jogadores, clubes, TV, patrocinadores), mas não se faz uma omelete sem quebrar os ovos, não é?

Por um lado, há críticas de interesses políticos e de quererem ganhar mais, por outro muita gente a subscrever a vossa petição... Que reacções têm recebido sobre a vossa luta?
É uma grande ignorância dizer que os atletas querem ganhar mais e jogar menos. Se o fair play financeiro for implantado, o mercado se reajustará automaticamente e o salário dos jogadores deverá sofrer um bruto reajuste. Quando os atletas apoiam essa medida (apesar da descrença/ignorância da maioria dos torcedores) é porque entendemos que essa é a única maneira de salvar o futebol brasileiro dos corruptos e mafiosos. Só que o futebol é passional e os torcedores querem saber o resultado do jogo no fim-de-semana, não se importam com o "resto" e ainda criticam os atletas que "perdem seu tempo defendendo uma causa".

Reparei que você escreveu uma carta aberta a Charles Miller (o homem que, no final do século XIX, levou o futebol para o Brasil) no seu site. Você lê livros, termina comunicados com citações. Sente-se um jogador diferente dos outros?
Não consigo separar o jogador do ser humano. Sinto-me uma pessoa curiosa, inquieta e sonhadora. Gosto de desafios, gosto do novo. Acredito que existam muitos outros jogadores que enxergam a vida assim. Talvez eu tenha sabido aproveitar as oportunidade e as dificuldades para me fazer mais forte. A pintura e a escrita surgiram num momento complicado na minha carreira. Lá se iam 18 meses de reabilitação e três cirurgias ao joelho direito. Com medo da aposentadoria precoce, resolvi descobrir novas paixões, pois o futebol já não era mais uma certeza. E, oito anos depois, já campeão mundial pelo Corinthians, para meu orgulho, lancei um livro e fiz um leilão beneficente das obras de arte que arrecadou 400 mil dólares para crianças carentes. Esse sou eu, um apaixonado pela vida que decidiu ir apenas por onde me levam os meus próprios passos.