Um convento onde só entravam meninas órfãs vai abrir-se à noite do Bairro Alto
Na esquina onde começa a esboçar-se o Bairro Alto, um antigo convento onde meninas órfãs eram, no século XIX, afastadas da prostituição vai lentamente ceder à boemia da noite lisboeta.
Para recuperar o património que detém mesmo à porta do Bairro Alto e rentabilizar a utilização de muitos metros quadrados vazios, um ano após as 14 irmãs que ali viviam se terem mudado para outro convento, o Departamento de Gestão Imobiliária e Património (DGIP) da SCML começou a estudar como dar uma nova vida ao local. O primeiro passo foi fazer um levantamento do estado do edifício e da condição das coberturas e elaborar um projecto de arquitectura. O orçamento ainda não está calculado.
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Para recuperar o património que detém mesmo à porta do Bairro Alto e rentabilizar a utilização de muitos metros quadrados vazios, um ano após as 14 irmãs que ali viviam se terem mudado para outro convento, o Departamento de Gestão Imobiliária e Património (DGIP) da SCML começou a estudar como dar uma nova vida ao local. O primeiro passo foi fazer um levantamento do estado do edifício e da condição das coberturas e elaborar um projecto de arquitectura. O orçamento ainda não está calculado.
Mas os trabalhos de recuperação já começaram. Contactada pelo PÚBLICO, Helena Lucas, directora do DGIP, disse que, por agora, se estão a realizar apenas obras de conservação. “Estas primeiras intervenções são, essencialmente, pinturas, eliminação de alguns elementos dissonantes e reorganização do espaço”, descreve. Depois da conclusão desta fase, o convento ficará branco em vez de rosa, como é actualmente, e começará a ter a maioria do seu espaço ocupado por alguns serviços da Santa Casa.
Quando o PÚBLICO visitou o monumento, o acaso fez com que a porta com vista directa para o miradouro de S. Pedro de Alcântara estivesse aberta. O andaime que a tapava tinha acabado de sair já que os dois pintores tinham terminado de pincelar de branco a viga da centenária entrada. Por momentos, a colina do Castelo entrou, avassaladora, pelo convento adentro. Até que, quase com descaso, os operários fecharam a porta, deixando Lisboa lá fora.
A entrada é feita pela lateral do convento. De ferro, preta e já restaurada, a porta ainda com um cheiro de tinta fresca abre o caminho para um átrio de azulejos azuis com os dias contados. Serão arrancados e a parede será pintado de branco. Atrás da porta fechada encostada ao portão negro nascerá uma loja de roupa, com montras de vidro a substituir algumas portas de madeira que antes davam acesso à rua. Ali fica também a Capela dos Lencastres, constituída maioritariamente por pedra, e que não necessitará de nenhuma intervenção.
Já no interior do monumento, a Igreja do Convento de S. Pedro de Alcântara, de pé-direito muito alto, tem o tecto com infiltrações e a tinta solta-se em lascas. Depois de restaurada, logo de estudará como se poderá revalorizar este espaço. Entre as propostas em cima da mesa estão a criação de visitas guiadas ou a realização de missas nocturnas, um programa verdadeiramente alternativo face ao que é oferecido na noite que se vive mais abaixo, no Bairro Alto.
“Pretende-se recuperar, tanto quanto possível, o desenho original, ao nível por exemplo da compartimentação interior e coberturas”, sublinha a directora. O objectivo é criar também novos espaços, inclusive nas áreas exteriores, como o jardim, os pátios e o claustro.
Atravessando a primeira porta do jardim onde está um pequeno parque infantil, chega-se ao claustro. Vários pedaços de tinta branca estão a cair. O local será totalmente remodelado, das paredes ao chão, prevendo-se a edificação de um lago que será o centro de uma zona de esplanadas.
Um restaurante substituirá o antigo refeitório do convento. Perto fica a cozinha, ainda cheia de vestígios da azáfama culinária que ali se viveu. Uma enorme batedeira, fogões industriais, armários de madeira com alguma loiça, tachos e vários utensílios de cozinha preenchem o espaço.
Percorrendo os corredores compridos, vazios, de paredes brancas e com muitas portas entreabertas, espreitam-se divisões de 20 metros quadrados com uma janela e chão de tábuas de madeira, algumas levantadas, outras esburacadas, outras recuperadas. Em algumas divisões já funcionam alguns serviços administrativos da SCML.
Até ao final do ano, pretendem encher estes antigos quartos das freiras com secretárias, telefones, computadores, impressoras. O arquivo ficará na fila de cerca de 30 armários de madeira pintada de cor-de-rosa claro num corredor do último piso. Dentro deles ainda se encontram roupa, toalhas, cabides, peluches deixados para trás.
O edifício do Convento de São Pedro de Alcântara, antigo palácio dos Condes de Avintes, foi fundado em 1672 por D. António Luís de Menezes, em cumprimento da promessa feita de erigir uma obra consagrada àquele santo, caso os portugueses vencessem a Batalha de Montes Claros durante a Guerra da Restauração. Mais tarde, em 1833, o convento foi secularizado e entregue à SCML para receber meninas órfãs para evitar que estas acabassem na prostituição. As freiras ensinavam-nas a ler, escrever e a rezar. Num passado mais recente, o colégio chegou a ser um dos melhores de Lisboa, sendo frequentada por filhas de famílias de classe média e alta.
A escola fica no último piso. O quadro preto ainda tem marcas de giz branco mal apagado. Numa estante, vários ursos de peluche estão sentados, outros deitados, caídos e com pó. As cadeiras estão em monte encostadas às paredes. As mesas já desapareceram. Na sala ao lado, meia dúzia de máquinas de escrever estão espalhadas numa prateleira de ferro.
Na outra ponta do convento, no mesmo piso, o chão do pátio está levantado. Será reposto, limpo e ali nascerá mais uma cafetaria, com uma esplanada aberta no topo do convento.
Estas intervenções mais profundas demorarão e vão começar a ser realizadas numa segunda fase, sem data prevista e já com alguns serviços da Santa Casa a funcionar no convento. Espera-se que todo o processo esteja terminada no decorrer do próximo ano.
Por agora, apenas algumas marteladas quebram o silêncio que invade os corredores, as escadas de mármore polidas pelos vários pés que durante séculos as pisaram e as paredes lascadas que muitas orações ouviram.
Texto editado por Ana Fernandes