João Afonso canta Agualusa e Mia Couto, vozes africanas num “mapa cor-de-rosa cultural”

Os poemas são de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, a voz e a música são de João Afonso: Sangue Bom estreia-se esta quinta-feira B.Leza, em Lisboa, às 23h.

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Mia Couto, Agualusa e João Afonso José Rui/Teatro ACERT

“Foi um desafio do Mia Couto, em Tondela, no ACERT, onde eu fiz a primeira parte do Compay Segundo, nunca mais me hei-de esquecer. Depois do concerto, estivemos a comer qualquer coisa e ele fez-me essa proposta. E eu fiquei todo orgulhoso porque nessa altura já era um fã nos livros dele. E já ouvia falar da família Couto por via do meu tio, que morava na Beira.” Isso foi há uma dúzia de anos. A verdade é que, depois, por razões várias, o projecto “foi-se arrastando, em ritmo luso-moçambicano”. No disco Outra vida sai a canção Eco, primeira música de João Afonso sobre um poema de Mia. Antes, no disco Zanzibar, já escrevera uma canção inspirada no livro Mar Me Quer, um poema com as personagens criadas por Mia Couto. Mas a parceria mais ampla tardava. Então, João Afonso começou suavemente a “pressioná-lo”. E enviou-lhe dois poemas gravados.

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“Foi um desafio do Mia Couto, em Tondela, no ACERT, onde eu fiz a primeira parte do Compay Segundo, nunca mais me hei-de esquecer. Depois do concerto, estivemos a comer qualquer coisa e ele fez-me essa proposta. E eu fiquei todo orgulhoso porque nessa altura já era um fã nos livros dele. E já ouvia falar da família Couto por via do meu tio, que morava na Beira.” Isso foi há uma dúzia de anos. A verdade é que, depois, por razões várias, o projecto “foi-se arrastando, em ritmo luso-moçambicano”. No disco Outra vida sai a canção Eco, primeira música de João Afonso sobre um poema de Mia. Antes, no disco Zanzibar, já escrevera uma canção inspirada no livro Mar Me Quer, um poema com as personagens criadas por Mia Couto. Mas a parceria mais ampla tardava. Então, João Afonso começou suavemente a “pressioná-lo”. E enviou-lhe dois poemas gravados.

Entretanto, João conversa sobre o projecto com José Eduardo Agualusa, seu amigo e ex-colega universitário dos tempos de Agronomia. “Conversávamos muito, antes ele ser sequer escritor. Ele falava muito do período político de Angola no pós-independência e eu ficava a ouvir. E ficámos muito amigos. Quando lhe contei do projecto com o Mia Couto, ele deu-me um caderninho de poemas, escrito ainda com máquina de escrever, ainda o tenho lá. E disse-me: ‘vê lá se tem alguma piada’. Gostei muito, chamou-me logo a atenção a Canção de Goa, que comecei a musicar.” Depois encontraram-se os três na Casa Fernando Pessoa. “O Mia Couto já sabia. E disse-me: ‘então já sei que me andas a trair com o Agualusa…’ Era brincadeira, porque eles são muito amigos.”

Ficaram, assim, ambos como co-autores do disco. O que, para João Afonso, foi excelente. “Cada um à sua maneira são ambos dois grandes escritores e pessoas que têm tido uma postura corajosa a enfrentar os poderes em Angola e em Moçambique.” E assim foram chegando os poemas e nascendo muitas canções: as 14 do disco mais quatro também gravadas mas que serão difundidas à parte (“provavelmente numa plataforma digital”) e outras que não chegaram a tomar forma de canção. “De tal maneira que se começou a consolidar a ideia deste mapa cor-de-rosa cultural. Inicialmente, aliás, o disco era para se chamar 'Mapa cor-de-rosa'. Até o título foi muito conversado entre os três.” Além disso, João Afonso teve autorização dos autores para trabalhar os poemas como quisesse: “Deram-me a liberdade de mexer. Não mexi muito, mas essa liberdade de corte e costura nos poemas andou a par com uma dialéctica, uma comunicação muito grande.”

A canção que dá título ao disco acaba por ser um quase-manifesto de miscigenação. “A frase ‘eu não creio em raça não’ é a afirmação de uma raça especial, uma identidade nossa, que é a lusofonia, onde as pessoas têm um elo de ligação, uma comunhão histórica e a língua. E entre nós os três há essa mesma comunhão. Só tenho pena de não termos estado a trabalhar mesmo à beira do mar, os três, porque merecia. E é um poema forte: contra a discriminação religiosa, rácica, homofóbica, tudo. Assumindo mesmo isso.”

A linguagem do disco é, de algum modo, pan-africana, mas “assumindo as origens”, como diz João Afonso. “O Mia Couto é moçambicano tem família que nasceu em Portugal, o Agualusa também… O poema Na grande casa branca, do Agualusa, é um assumir da história. Há sempre um tabu, um preconceito, por exemplo em relação aos retornados e eu, que sou de uma família de retornados, de Moçambique, identifiquei-me muito com essa canção, ao cantá-la. Porque, como diz o Fernando Dacosta num livro que ainda há pouco li, e que é um livro fortíssimo, de facto os retornados mudaram o rosto de Portugal. O Agualusa e o Mia Couto não negam a história, têm muita coisa em comum.”

No disco, diz João, “há poemas introspectivos, filosóficos, como Sementes ou A dor e o tempo. Neste incorporei ‘Primeiro, nenhum sentimento me doía/ agora dói-me sentir’, porque me lembrei da morte do meu pai. Primeiro é o choque, ficamos como que anestesiados, mas a dor vem depois e vem muito mais forte. Eu pelo menos interpretei assim, talvez ele [o Mia Couto] tivesse uma explicação mais profunda.” E há, também, “imagens muito fortes da diáspora portuguesa. Goa, Porto Amboim, a estrada quente… Além dos temas universais, o amor, os desamores, a Canção da Despedida que a Aline Frazão [jovem cantora angolana] interpreta a música com uma sensualidade especial.”

Esta quinta-feira à noite, pelas 23h, o disco vai ser estreado no palco do B.Leza, em Lisboa. Com João Afonso (voz e guitarra) estarão Vítor Milhanas (contrabaixo e baixo eléctrico), António Pinto, Miguel Fevereiro (guitarras) e Quiné Teles (bateria/percussão).

Nos textos de apresentação do disco, Mia Couto diz que João Afonso lhe traz, “na voz, a infância e, nas canções, Moçambique”. E Agualusa escreve que as canções do João têm vindo a acompanhá-lo ao longo da vida, enquanto escreve – “e acredito que os meus livros são melhores por isso.” Percebe-se o que uniu os três: um Sangue Bom.
 

Nota: O espectáculo é às 23h e não às 23h30, como inicialmente, por laspo, se escreveu.