Ney, camaleão excelentíssimo

Atento aos Sinais, que esgotou na noite de 7 de Maio o Coliseu de Lisboa (estará no do Porto no dia 10), mostra Ney Matogrosso no zénite da sua luminosidade.

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Quem assiste aos espectáculos de Ney Matogrosso em Portugal, desde a sua estreia em 1983, no Coliseu, já lá vão três décadas, não pode deixar de notar que o tempo lhe tem trazido um refinamento que nada tem a ver com acomodação ou rotina, pelo contrário, dá a cada uma das suas apresentações o tom, mais ou menos exuberante, de um começo.

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Quem assiste aos espectáculos de Ney Matogrosso em Portugal, desde a sua estreia em 1983, no Coliseu, já lá vão três décadas, não pode deixar de notar que o tempo lhe tem trazido um refinamento que nada tem a ver com acomodação ou rotina, pelo contrário, dá a cada uma das suas apresentações o tom, mais ou menos exuberante, de um começo.

Dos momentos de maior “exposição exagerada”, como ele lhes chama, aos de maior recato (como se à calmaria tivesse sempre de suceder a tempestade e vice-versa), Ney recria-se e renova-se nesse personagem feérico que ele próprio inventou, erguendo cada novo espectáculo com excelente minúcia. O actual, Atento aos Sinais, dá de algum modo continuidade à exuberância de Inclassificáveis (pelo meio houve Beijo Bandido, mais suave, porém não menos intenso) mas, em termos de cenário e figurinos, tem novos e acertados recursos: projecções (quatro enormes telas vídeo, verticais, no fundo do palco) e luzes extraordinariamente sincronizadas com as flutuações musicais.

Sem concessões, o espectáculo recria o disco (que, por sua vez, embora gravado em estúdio, nasceu da rodagem do espectáculo no início de 2013). Ney surge no palco numa vertigem de animal alado com Rua da passagem (trânsito) e explode literalmente em Incêndio, enquanto pela tela passam imagens de um mundo em forte convulsão, das Primaveras árabes à Nigéria. Vida louca, vida breve (que Lobão escreveu e Cazuza celebrizou) foi o tema seguinte, fortíssimo, intenso: “Vida louca vida/ vida breve/ já que eu não posso te levar/ quero que você me leve.” Roendo as unhas, samba de Paulinho da Viola transfigurado por Ney, abriu caminho à belíssima e melancólica Noite torta, de Itamar Assunção (quem ouviu Caetano, na mesma sala, cantar Estou triste, poderia ter estabelecido um paralelo na atmosfera criada): “Minh’alma chora/ lá fora, está tão gelado.” A ilusão da casa, de Vítor Ramil, prolongou o fascínio e a melancolia, já depois de vermos Ney sombrio e magistral, silhueta negra sob um intenso foco de luz azul, enquanto os sopros elevavam a canção por sobre o tremolo misterioso da guitarra.

E o camaleão, excelentíssimo, trocou de pele: as vestes negras deram lugar à prata, num “strip” calculado para agarrar o público (e feito junto a uma cadeira de espaldar alto, toda ela revestida a espelho), enquanto se ouviam assobios como nos cabarés. Ney sorriu, giocondidamente, e passou à frente. Ou seja, a Two naira fifty kobo, de Caetano, bem a propósito quando o Brasil anda revolvido por “Copa” e futebol: “No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé/ faz força com o pé na África”. E a África, exuberante, nas telas, seguida por imagens de índios da Amazónia, mulheres e bebés na água, felizes.

Freguês da meia-noite, de Criolo, e Isso não vai ficar assim, de Itamar Assunção, guinaram ao amor e aos seus sinais, evoluindo de um bolero e acabando com o cantor junto à plateia a ser salpicado por pétalas de rosas vermelhas por uma admiradora, enquanto cantava “Beije-me, beije-me muito/ como se fosse esta noite… la ultima vez.” Piscadela de olho à velha canção mexicana de Consuelo Velásquez. Não era a última noite, claro. Do “happening” Ney trouxe uma rosa, inteira, consigo para o palco.

Nas canções, o lugar era já dos novos. Depois de Criolo, ouvimos Beto Boing (Pronomes, com Ney a simular ondulações do sexo à boca do palco), Jerry Espíndola (Beijos de ímã, com duas bocas a preto e branco, na tela, a trocarem beijos) e Rafael Rocha (Não consigo, numa atmosfera sensualmente densa e vibrante). Para ficar ainda pelos novos, Ney apresentou Tupi fusão, do rapper alagoano Vítor Pirralho, alegoria à chegada dos portugueses ao Brasil mas olhada do ponto de vista dos índios. O resto continuou como no disco: primeiro o divertido Samba do Blackberry (um sujeito que se queixa porque a mulher o trocou por um telemóvel) e Todo o mundo o tempo todo, final perfeito para o concerto. Mas não era o final. Com a sala às escuras passaram, um a um, nas telas, evitando a apresentação oral do costume, os nomes e imagens dos músicos. E que músicos! Sacha Amback (teclas), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussões), Maurício Negão (guitarra), Dunga (baixo), Everson e Aquiles Moraes (sopros). Tal como com os figurinos e luzes, a exigência de Ney com os músicos é acertada e total.

Ainda ouviríamos mais quatro canções, depois disso. Amor, do tempo dos Secos & Molhados; Astronauta lírico, um verdadeiro achado de Vítor Ramil; e, num segundo encore, Poema (Cazuza, de novo) e um samba de Martinho da Vila, Ex-amor, que fez levantar a audiência inteira, da plateia à cúpula, num mar de dança. Intenso, depurado e certeiro, Atento aos Sinais mostra Ney Matogrosso no zénite da sua luminosidade.