A festa privadíssima do preso político
Género literário caído em desuso pela evolução da tecnologia, o epistolar sobrevive hoje, sobretudo, pelo passado, ajudando a recuperar um pouco da história vista pela intimidade, pela atmosfera de cumplicidade estabelecida entre quem escrevia e quem lia e entre os dois e o papel e a escrita, à luz de uma uma prosa menos condicionada pelas regras da ficção ou do ensaio. Ao privilegiar a velocidade em detrimento do conteúdo, a troca de correspondência ganhou em imediatez o que perdeu em jogo, mistério, confissão; o pragmatismo venceu e o epistolar rendeu-se à sua condição episódica.
Sem ter perdido a guerra (pelo menos ainda), a palavra está envolvida nessa contenda sem quartel para manter a atracção na era das imagens, para justificar a sua existência para lá da mensagem burocrática, para se sustentar em si e por si. E se a palavra ainda resiste, a carta, essa, é um anquilosado meio de comunicação de um passado que parece quase tão longínquo como o papiro para as gerações da idade informática, do iPhone e da sms.
Como explicar, então, o prazer de um livro destes, assente numa troca de correspondência espaçada entre dois cubanos (um exilado e um detido) que partilham apelido e não sendo irmãos se tratam como tal? Como explicar o valor destas cartas em pleno século XXI e como explicar a importância que teve no pensamento político progressista da segunda metade do século XX essa revolução de barbudos nas barbas do imperialismo?
E como explicar a dimensão do sucedido: de tocar tão alto na Sierra Maestra e descer tão baixo nas prisões do regime, onde os presos políticos são colocados entre presos de delito comum, longe de casa, confinados em celas sem condições sanitárias, entre baratas e ratos, comida imprestável e visitas espaçadas a cada três meses (os privilegiados conseguem-nas a cada 21 dias)?
E como explicar também que este livro ganhe vida hoje, quando parece vindo de outra época, de tempos em que os heróis se mediam ao anonimato citando romanticamente palavras de poetas, Neruda, Darío, José Martí, e os pais imbuídos de espírito revolucionário davam nomes aos filhos de companheiros tombados na luta?
Podia resumir-se em traços largos que se trata de uma série de cartas trocadas entre Miguel Rivero, jornalista cubano que um dia – depois de ter sido correspondente no Vietname, professor de espanhol na China, jornalista e editor dos principais órgãos de informação de Cuba, representante da União de Jornalistas Cubanos junto da OIJ –, por esses itinerários próprios do amor, aportou em Lisboa, enamorou-se da luz, do rio, de Fernando Pessoa; e o seu amigo Raúl Rivero, jornalista e poeta, detido em 2003 na triste estação do ano cubana que ficou conhecida como “Primavera Negra”, onde 75 vozes críticas do regime dos Castro, entre elas 21 jornalistas independentes, acabaram detidas e condenadas a pesadas penas de prisão.
No entanto, ficaria de fora aquilo que, para lá da imediatez da explicação pragmática, é a essência deste livro. Em primeiro lugar, a história de uma profunda amizade entre dois homens unidos durante anos pela fé inquebrantável na revolução que livrou os cubanos de Fulgéncio Batista e prometeu ao mundo uma nova era; dois homens que percorreram um longo caminho, de fiéis servidores do socialismo cubano até desiludidos arautos de um regime que já nem as térmitas engana com as suas frases de madeira.
Como escreve Raúl Rivero numa das cartas escritas na sua cela da Prisão Provincial de Canaleta, cadeia de máxima segurança a 460 quilómetros de Havana, onde cumpriu 19 meses da sua pena de 20 anos “por actos contra a integridade territorial do Estado” e da qual só sairia por razões de saúde em direcção ao exílio em Espanha: “Cada carta tua é uma festa privadíssima e cálida que desfruto”.
Em segundo, e não menos despiciendo, a forma como todo este livro prefere a salvação epistolar do humor no meio da descarnada tragédia – o humor como último reduto de resistência, o humor que desconstrói e desarma e dá aos fracos a fisga com que ameaça os desconcertados algozes: “Espero que o censor não se aborreça com todos estes relatos”, escreve Miguel Rivero, numa das muitas vezes em que envia recados aos leitores prévios de cada missiva.
Por fim, e a razão última para a existência deste livro: o empenho da viúva de Miguel Rivero (falecido em 2011), a jornalista Ana Glória Lucas, em dar um jeito de livro àquilo que eram cartas escritas entre dois amigos cubanos, de um espanhol feito de coloquialismos e cumplicidades – as do poeta Raúl Rivero caligrafadas à mão em letra miudinha para aproveitar papel –, naquilo que fica como testemunho de que a desilusão pode ser um combustível para incendiar uma luta quase tão forte como a ilusão.
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Género literário caído em desuso pela evolução da tecnologia, o epistolar sobrevive hoje, sobretudo, pelo passado, ajudando a recuperar um pouco da história vista pela intimidade, pela atmosfera de cumplicidade estabelecida entre quem escrevia e quem lia e entre os dois e o papel e a escrita, à luz de uma uma prosa menos condicionada pelas regras da ficção ou do ensaio. Ao privilegiar a velocidade em detrimento do conteúdo, a troca de correspondência ganhou em imediatez o que perdeu em jogo, mistério, confissão; o pragmatismo venceu e o epistolar rendeu-se à sua condição episódica.
Sem ter perdido a guerra (pelo menos ainda), a palavra está envolvida nessa contenda sem quartel para manter a atracção na era das imagens, para justificar a sua existência para lá da mensagem burocrática, para se sustentar em si e por si. E se a palavra ainda resiste, a carta, essa, é um anquilosado meio de comunicação de um passado que parece quase tão longínquo como o papiro para as gerações da idade informática, do iPhone e da sms.
Como explicar, então, o prazer de um livro destes, assente numa troca de correspondência espaçada entre dois cubanos (um exilado e um detido) que partilham apelido e não sendo irmãos se tratam como tal? Como explicar o valor destas cartas em pleno século XXI e como explicar a importância que teve no pensamento político progressista da segunda metade do século XX essa revolução de barbudos nas barbas do imperialismo?
E como explicar a dimensão do sucedido: de tocar tão alto na Sierra Maestra e descer tão baixo nas prisões do regime, onde os presos políticos são colocados entre presos de delito comum, longe de casa, confinados em celas sem condições sanitárias, entre baratas e ratos, comida imprestável e visitas espaçadas a cada três meses (os privilegiados conseguem-nas a cada 21 dias)?
E como explicar também que este livro ganhe vida hoje, quando parece vindo de outra época, de tempos em que os heróis se mediam ao anonimato citando romanticamente palavras de poetas, Neruda, Darío, José Martí, e os pais imbuídos de espírito revolucionário davam nomes aos filhos de companheiros tombados na luta?
Podia resumir-se em traços largos que se trata de uma série de cartas trocadas entre Miguel Rivero, jornalista cubano que um dia – depois de ter sido correspondente no Vietname, professor de espanhol na China, jornalista e editor dos principais órgãos de informação de Cuba, representante da União de Jornalistas Cubanos junto da OIJ –, por esses itinerários próprios do amor, aportou em Lisboa, enamorou-se da luz, do rio, de Fernando Pessoa; e o seu amigo Raúl Rivero, jornalista e poeta, detido em 2003 na triste estação do ano cubana que ficou conhecida como “Primavera Negra”, onde 75 vozes críticas do regime dos Castro, entre elas 21 jornalistas independentes, acabaram detidas e condenadas a pesadas penas de prisão.
No entanto, ficaria de fora aquilo que, para lá da imediatez da explicação pragmática, é a essência deste livro. Em primeiro lugar, a história de uma profunda amizade entre dois homens unidos durante anos pela fé inquebrantável na revolução que livrou os cubanos de Fulgéncio Batista e prometeu ao mundo uma nova era; dois homens que percorreram um longo caminho, de fiéis servidores do socialismo cubano até desiludidos arautos de um regime que já nem as térmitas engana com as suas frases de madeira.
Como escreve Raúl Rivero numa das cartas escritas na sua cela da Prisão Provincial de Canaleta, cadeia de máxima segurança a 460 quilómetros de Havana, onde cumpriu 19 meses da sua pena de 20 anos “por actos contra a integridade territorial do Estado” e da qual só sairia por razões de saúde em direcção ao exílio em Espanha: “Cada carta tua é uma festa privadíssima e cálida que desfruto”.
Em segundo, e não menos despiciendo, a forma como todo este livro prefere a salvação epistolar do humor no meio da descarnada tragédia – o humor como último reduto de resistência, o humor que desconstrói e desarma e dá aos fracos a fisga com que ameaça os desconcertados algozes: “Espero que o censor não se aborreça com todos estes relatos”, escreve Miguel Rivero, numa das muitas vezes em que envia recados aos leitores prévios de cada missiva.
Por fim, e a razão última para a existência deste livro: o empenho da viúva de Miguel Rivero (falecido em 2011), a jornalista Ana Glória Lucas, em dar um jeito de livro àquilo que eram cartas escritas entre dois amigos cubanos, de um espanhol feito de coloquialismos e cumplicidades – as do poeta Raúl Rivero caligrafadas à mão em letra miudinha para aproveitar papel –, naquilo que fica como testemunho de que a desilusão pode ser um combustível para incendiar uma luta quase tão forte como a ilusão.