Farmácias: de negócio rico a negócio remediado
Já não há trespasses milionários nem ordenados chorudos nas farmácias. Mais de metade têm díividas a fornecedores e quatro centenas estão insolventes ou com penhoras.
A Farmácia Teixeira, na Baixa da Banheira, Moita, era um bom negócio. Tão bom que, há alguns anos, chegaram a oferecer-lhe três milhões de euros pelo alvará. Agora, Manuela acabou por fazer a transacção por 850 mil euros. “Não foi mal vendida”, admite, satisfeita porque a Teixeira passou para as mãos de uma jovem farmacêutica, em vez de ir para um grupo, “um desses que compram farmácias para fazer exportação paralela [venda de medicamentos para o estrangeiro, onde são mais caros]”.
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A Farmácia Teixeira, na Baixa da Banheira, Moita, era um bom negócio. Tão bom que, há alguns anos, chegaram a oferecer-lhe três milhões de euros pelo alvará. Agora, Manuela acabou por fazer a transacção por 850 mil euros. “Não foi mal vendida”, admite, satisfeita porque a Teixeira passou para as mãos de uma jovem farmacêutica, em vez de ir para um grupo, “um desses que compram farmácias para fazer exportação paralela [venda de medicamentos para o estrangeiro, onde são mais caros]”.
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“Fui vítima da crise”, afiança. Reconhece que deu dois “passos de gigante”, o primeiro em 1999, quando mudou de instalações (de uns exíguos 50 metros quadrados para um espaço quase quatro vezes maior), o segundo em 2006, quando comprou e adaptou um antigo stand de automóveis para poder ter todas as condições com que sempre sonhara.
Quinta farmácia do país a receber o certificado de qualidade, a Teixeira alargou o leque de serviços, dispunha de dois gabinetes de atendimento personalizado, um deles com nutricionista, fazia troca de seringas para toxicodependentes, acompanhamento de diabéticos, hipertensos e asmáticos, tinha quatro farmacêuticas e três técnicas. “As condições eram excelentes, mas não opulentas. Há quem vá à falência por má gestão, mas eu fui vítima da crise. Todas as minhas dificuldades têm a ver com investimentos”, alega Manuela, lembrando que o seu caso é um entre muitos. “Em 20 farmácias, três estão a lutar pela sobrevivência”, calcula, sublinhando que, ao longo do penoso período de dificuldades que enfrentou, apenas reduziu um ordenado, o da filha, que lhe seguiu as pisadas na profissão.
Mais de 400 insolventes
De negócio rico, as farmácias passaram, em poucos anos (menos de uma década), a negócio remediado. Se há alguns anos se falava em trespasses milionários, da ordem dos quatro a cinco milhões de euros, agora há farmácias à venda que ficam sem comprador e a situação financeira de muitas está, garante a ANF, periclitante. Em Dezembro de 2013, mais de metade (1567) tinham fornecimentos suspensos e o montante global da dívida litigiosa ultrapassava os 306 milhões de euros, contabiliza a associação, que traça um cenário negro do sector. Os números da ANF indiciam, de facto, uma degradação progressiva: em Fevereiro deste ano, 130 farmácias estavam em processo de insolvência, duas vezes mais do que em Dezembro de 2012, e 281 tinham processos de penhora (mais 56% do que no final de 2012).
Desdramatizando a situação, os responsáveis do Ministério da Saúde alegam que, na prática, as farmácias que abriram nos últimos anos até suplantam as que fecharam. Desde 2010, encerraram 43 farmácias, segundo a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). Os fechos, que em 2010 e em 2011 foram um em cada ano, multiplicaram-se a partir de 2012 (16 casos). No ano passado, outras 27 farmácias encerraram e, este ano, até 15 de Abril, o mesmo aconteceu a mais nove. Algumas voltaram a abrir, entretanto, o que justifica a contabilidade final do Infarmed.
Como se explica que a maior parte das farmácias se mantenha aberta, se enfrentam um cenário de tantas dificuldades, como garante a ANF? “Estão abertas porque os credores tentam encontrar condições, os próprios bancos querem que o alvará [que caduca ao fim de um ano, em caso de encerramento] se mantenha. Muitas estão a ser geridas por administradores de insolvência. Por vezes, para não perderem o alvará, abrem e fecham”, justifica Paulo Duarte, presidente da ANF.
Nem na farmácia há de tudo
Os problemas começaram “quando José Sócrates chegou ao poder”, recorda Manuela Teixeira, que não esconde o ressentimento pelas medidas políticas que “arrasaram” o sector. O então ministro da Saúde Correia de Campos mudou a legislação, acabou com a exclusividade da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica nas farmácias, reduziu as margens de 20% para 18%. Sucederam-se várias descidas do preço dos fármacos e, por fim, seguiu-se a liberalização parcial da propriedade. O actual ministro Paulo Macedo deu “a machadada final”, acrescenta Manuela, lembrando a acentuada quebra dos preços, para cumprir o memorando de entendimento assinado com a troika.
“Sofremos o duplo efeito da redução do mercado e da margem [de lucro]”, sintetiza Paulo Duarte, notando que a troika pediu “uma contribuição de 50 milhões de euros” às farmácias. “Acabaram por ser 310 milhões de euros, entre farmácias e grossistas. Qual é o sector que aguenta?”, pergunta. “As pessoas quando vão à farmácia sentem a diferença. Actualmente, nem na farmácia há de tudo”, lamenta. “Era um sector muito rentável, que deu muito lucro e levou muita gente a meter-se em loucuras, mas actualmente sucedem-se as insolvências. Conheço farmácias bem geridas que vão subsistindo, não com os lucros astronómicos de antes, mas aguentam-se”, contrapõe Diamantino Elias, secretário-geral do Sindicato Nacional dos Profissionais de Farmácia, para quem a ANF é “muito culpada” do estado a que o sector chegou. “Fomentou investimentos e deixou crescer ilusões. Mas também houve má gestão. Hoje, [os proprietários] querem reduzir os vencimentos, fazer despedimentos e muitas farmácias substituem farmacêuticos por estagiários”, critica.
Actualmente há farmacêuticos a ser contratados por “700 a 800” euros e acabaram-se os trespasses milionários. “Agora fazem-se transacções por menos de metade da facturação anual, quando antes a média era duas vezes a facturação”, explica Paulo Duarte.
“O negócio nunca mais vai ser o que era. Andámos para trás 20 anos. O que é mais grave é que há muitas farmácias insolventes, estão totalmente na mão dos bancos”, resume Aranda da Silva, ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e antigo presidente do Infarmed. O que vai acontecer, vaticina, é que enquanto algumas vão fechar, “outras terão que baixar a qualidade”.
Quanto aos excessos do passado, admite que “algumas farmácias eram um negócio da China e havia ostentação de riqueza”, mas frisa que essas não passavam de excepções: “A farmácia média era um negócio equilibrado”.
Quem continua a não acreditar que a situação seja tão negra quanto a pintam é Jorge de Sá Peliteiro, que em 2012, através do seu blogue Impressões de um Boticário de Província, se propôs comprar uma farmácia por 250 mil euros no triângulo Porto-Viana-Famalicão. Não houve propostas.
“Não há dúvida de que a rentabilidade das farmácias desceu muito. Mas daí a dizer que as farmácias estão de luto e que vão fechar 600 [como fizeram os responsáveis da ANF] vai uma grande diferença. As que foram compradas por grandes valores estão em situação financeira difícil, agora as que nunca se meteram em loucuras continuam a ter capacidade de sobreviver”, assegura Jorge Peliteiro, para quem os preços “ainda estão muito elevados”, rondam “uma vez a 1,2 da facturação anual, quando antes chegavam a três vezes”. “Um negócio que está na falência devia ser mais barato”, remata.
Algo que também era impensável num passado recente e que nos últimos anos se tornou comum é o desemprego na classe. Por ano saem das faculdades cerca de 900 farmacêuticos, há muitos no desemprego e cada vez há mais jovens a pedir à Ordem dos Farmacêuticos a documentação necessária para poder emigrar.
“Aliviada por ter virado uma página complicada”, Manuela Teixeira agora só quer esquecer o passado. Mas avisa: “Se as farmácias começarem a fechar em massa, o povo não vai ter onde comprar medicamentos”.