Padres casados na Igreja Católica?
A nível mundial, neste momento, o cenário de paróquias sem eucaristia e o que isso significa, pressupõe e exige, não pode deixar nenhum católico tranquilo. Continuar a insistir nas mesmas condições para ser ordenado padre, é demasiada confiança no milagre da sua multiplicação. Consta que o papa Francisco está aberto à ordenação de homens casados. Será isso suficiente?
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A nível mundial, neste momento, o cenário de paróquias sem eucaristia e o que isso significa, pressupõe e exige, não pode deixar nenhum católico tranquilo. Continuar a insistir nas mesmas condições para ser ordenado padre, é demasiada confiança no milagre da sua multiplicação. Consta que o papa Francisco está aberto à ordenação de homens casados. Será isso suficiente?
Os papas do pós-Vaticano II, em nome de opções pré-conciliares acerca do celibato eclesiástico, foram muito eficazes em calar as vozes que mostravam que essas opções já não serviam nem o presente nem o futuro da Igreja. Os bispos, por seu lado, ao não quererem contrariar a cúria romana, não aceitando muitos milhares de padres casados dispostos a continuar no seu ministério, abdicaram da sua responsabilidade colegial e colaboraram numa progressiva desertificação,
Essa recusa coexiste com outro paradoxo: as comunidades religiosas não devem abdicar da Missa quotidiana, mas as multidões de leigos católicos podem ser abandonados, por longos períodos, sem a Eucaristia dominical, a que têm direito, sem que isso provoque qualquer sobressalto pastoral.
2. Sem entrar, neste apontamento, pelo complexo desenvolvimento histórico que nos conduziu a esta situação, é consensual dizer que foi no âmbito das reformas de Gregório VII (1073-85), na continuação de medidas anteriores, que se consolidou a convicção de que o estado matrimonial era irreconciliável com o sacerdócio e que se tratava, simplesmente, de dar execução a uma antiga lei eclesiástica. Como destaca H. Jedin, nesta questão não se tratava sempre de reforma interna da Igreja, mas da conservação dos seus bens que, pelo matrimónio dos clérigos, passavam com muita facilidade para os seus filhos.
Não vamos discutir essa questão. Vamos adoptar a síntese de um autor pouco suspeito (1). A atitude do referido papa contra a clerogamia suscitou muita agitação e oposições em vários países. Note-se que o sínodo de Paris, de 1074, definiu a lei do celibato como insustentável e irracional; muitos bispos alemães, e não só, não foram muito rigorosos na sua aplicação; o baixo clero revoltou-se em diversos lugares, por vezes de forma violenta. O papa Gregório não cedeu. O sínodo romano de 1078 ameaçou de suspensão os bispos que, mediante pagamento em dinheiro, se mostrassem indulgentes para com o concubinato dos eclesiásticos, seus súbditos. Por fim, a lei do celibato conseguiu impor-se com dificuldade e nunca de maneira completa. De facto, em alguns países, como na Polónia, Silésia, Morávia, Dinamarca e Escandinávia, o velho estado de coisas prolongou-se até aos séculos XII e XIII. Ao longo da Idade Média as transgressões não foram raras.
O papa Urbano II deu mais um passo em frente no sínodo de Melfi (1089), decretando não só a punição dos subdiáconos desposados, como a perda do ofício; nos casos de persistência, a mulher era declarada escrava do senhor feudal. Essa disposição tinha por base a premissa de que o matrimónio dos eclesiásticos de ordens maiores não só era ilícito, como também inválido. Esse parecer foi expresso, em forma juridicamente mais definida, no sínodo de Pisa de 1135 e no Concílio Lateranense de 1139.
A Igreja grega conservou uma atitude de tolerância relativa ao matrimónio dos eclesiásticos. Difundiu-se o costume, possivelmente desde o século XIII e a começar pela Rússia, de designar como párocos e curas de almas apenas padres casados que, por isso, contraem matrimónio geralmente antes de receber a ordenação diaconal. Posto que os bispos têm a obrigação do celibato, eram e são eleitos geralmente de entre os monges.
3. Em toda essa contenda, segundo Hans Küng, o clero alemão levantou três objecções à legislação do celibato eclesiástico: será que o papa não conhece a palavra do Senhor: ”Quem puder compreender, compreenda”? (Mt 19,12); o papa obriga os homens a viver como anjos: ele quer interditar o curso da natureza. Isto só pode conduzir à fornicação; intimados a escolher entre o sacerdócio e o casamento, escolherão o casamento: então, o papa que vá recrutar anjos para o serviço da Igreja!
Dir-se-á, e com verdade, que a história já deu muitas voltas, já passou por fases muito diferentes, antes e depois do Concílio de Trento. Não se tendo conseguido respeitar a possibilidade de optar pelo celibato ou pelo casamento, as consequências estão à vista. As comunidades cristãs são privadas da Eucaristia, o sacramento dos sacramentos. Sem olhar de frente esta questão, continuaremos a lamentar obstáculos que nós próprios criamos.
1) Karl Bihlmeyer–Hermann Tuechle, História da Igreja, Volume Segundo, Idade Média, Paulinas, São Paulo, 1964, 163ss; ver também: Hubert Jedin, Manual de Historia de la Iglesia, III, Herder, Barcelona, 1970; Hans Küng, O Cristianismo. Essência e História, Círculo de Leitores, Lisboa 2012.