Elegia para Vasco Graça Moura

A União Europeia é um ensaio, como bem intuía Vasco: um género que procede por apalpação, que serpenteia, que digressa, que vai à experiência. E no entanto move-se.

Assumiu-se desde cedo herdeiro e elo transmissor da complexa identidade cultural europeia, sobre a qual escreveu o seu derradeiro livro, identificando-lhe, como característica mais persistente, o dom do autoquestionamento. Enquanto intelectual de uma velha nação europeia, sabia-se assembleia de mitos, símbolos, valores, ideias, ficções, consciente de que “a dois mil anos da morte de Virgílio”, nós, modernos, é que somos os velhos, e de que por isso a escrita não pode deixar de ser também trabalho de luto pela linguagem – pela própria cultura. O ethos renascentista da sua obra não é só evidente nos mestres que convoca, mas na inteira disponibilidade para o homem no que tem de estranho e elevado como no que tem de mundano e patético, na abertura à novidade do mundo e no desencanto com o seu desconcerto.

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Assumiu-se desde cedo herdeiro e elo transmissor da complexa identidade cultural europeia, sobre a qual escreveu o seu derradeiro livro, identificando-lhe, como característica mais persistente, o dom do autoquestionamento. Enquanto intelectual de uma velha nação europeia, sabia-se assembleia de mitos, símbolos, valores, ideias, ficções, consciente de que “a dois mil anos da morte de Virgílio”, nós, modernos, é que somos os velhos, e de que por isso a escrita não pode deixar de ser também trabalho de luto pela linguagem – pela própria cultura. O ethos renascentista da sua obra não é só evidente nos mestres que convoca, mas na inteira disponibilidade para o homem no que tem de estranho e elevado como no que tem de mundano e patético, na abertura à novidade do mundo e no desencanto com o seu desconcerto.

Enquanto escritor, estreado em 1963 com Modo Mudando (cuja génese editorial “ali prò Carvalhido” evoca num poema entre os muitos que convocam o Porto, cidade onde nasceu), cultivou uma “escrita omnívora// do mundo, comovida de prender o antes ao agora”, perseguindo o real no seu conjunto, na sua mudança, no visível e no invisível, no histórico e no fortuito, no episódico e no essencial, no exterior e no interior, no perene e no efémero, ciente de que toda a representação é mediada pela cultura herdada, de que o talento individual só pode emanar de uma tradição consabida e refundida sem descanso, de “que o mundo/ é uma cópia dos livros”, de que também a arte fornece modelos à vida, ou, dito de outro modo, de que também a vida imita a arte.

Na apreciação que dele se fez como poeta e escritor não deixaram de incidir preconceitos de cariz ideológico e até político-partidário (como de cariz geográfico em Manuel António Pina e académico em Jorge de Sena, também eles poetas de cultura desmesurada, sofrida, indócil). Mas descontados aqueles, fica-nos o autor de um dos mais relevantes corpus da poesia portuguesa contemporânea, marcada pela tensão “entre/ o pudor e o poder”, entre uma ética humanista, exercida na documentação da realidade empírica, consciente de que “toda a observação modifica a realidade” (e que, portanto, “a observação é um trabalho político”) e uma ética linguística, visível no facto de não ter desaproveitado um só dos recursos figurativos e estilísticos que a língua portuguesa põe ao alcance do virtuoso, num trabalho ímpar de amor à língua pátria, tão mais comovente quanto é nas suas inigualáveis traduções que se revela, de Dante a Villon, de Shakespeare a Molière e a Rilke, entre tantos outros.

Entre a percepção de que a vida é informe e o impulso de lhe dar uma forma, a sua obra foi exemplar na decantação desse “medo morno” que nos invade os domingos – por cá sempre e incuravelmente provincianos –, subtilizado nessa “estranha ameaça ocidental” que é a melancolia “que os avós nos deixaram e que vai prós nossos netos”. Mas foi também exímio na diatribe e na sátira, no retrato de um país tantas vezes pusilânime, bem como na auto-sabotagem irónica, no desprendimento com que confessava fraquezas, peripécias, cumplicidades, seduções, com a pose do flanêur, “europeu e burguês, liberal e decadente, ne du tout fol ne du tout sage”, como nos desarma nessa obra maior que é O Testamento de VGM, onde se faz gato-sapato dos clichés literatos, a começar pelo do escritor “do regime”.

Ciente de que “todo o mundo é composto de mudança”, como o Camões sobre o qual escreveu ensaios luminosos, e sempre civicamente interventivo – como prova a militância destemida contra o novo acordo ortográfico –, Vasco Graça Moura ainda encontrou forças para, no final do doutoramento honoris causa que lhe atribuiu a Universidade do Porto no dia 7 de Março, alertar quanto ao risco de colonização do ensino superior pela lógica empresarial e da sua subalternização a metas economicistas. De facto, o espírito humanista que o escritor e o homem personificaram não tem tarefa fácil pela frente: servir de consciência crítica a uma época superficial e leviana, que desvaloriza a erudição, a um mundo sobrecarregado de informação que flui e reflui sem critério e sem escrutínio.

A sua morte é triste porque é a sua morte. E porque é também dos seus amigos. E ainda triste porque dela se despega um travo a ocaso – o ocaso daquela Europa feita de cafés e passeios a pé de que fala Steiner, que é ideia humanista, e se prende com a noção de que o que realmente vale a pena só se alcança ao cabo de muitas tribulações, de muito trabalho penoso, de rasuras e recuos, de paciência itacense, de estoicismo, de alguns triunfos e incontáveis fracassos. Mas essa ideia carece de uma vivência do tempo mais vagarosa, e os europeus estão cada vez menos dispostos a esperar. Exigimos que nos digam qual é a próxima pedra no edifício da União Europeia, se amanhã teremos eurobonds e mutualização das dívidas soberanas, que nos digam ao certo para onde vamos, como vai ser o futuro. Esquecemos que a União Europeia é uma singularidade histórico-política, sem modelo prévio, sem precedente; que a UE, e a ideia mesma de Europa, é uma construção dos europeus e não alguma essência que emane da geografia ou decorra de medievos contratos nupciais. Se a União Europeia fosse um género literário, não seria um romance, tal a secura do enredo, a escassez de personagens; nem seria um poema, não obstante as aproximações de Victor Hugo, Lamartine e alguns outros; nem seria um texto dramatúrgico, porque não induz catarses, nem o riso reparador. A União Europeia é um ensaio, como bem intuía Vasco: um género que procede por apalpação, que serpenteia, que digressa, que vai à experiência. E no entanto move-se.

Pertencemos à Europa pela herança cultural comum. E pelos horrores comuns. O peso dela é tremendo. A consciência desse peso é dolorosa. Mas uma herança beneficia os herdeiros, contanto que estes não a desbaratem. É por Homero, Shakespeare, Bach, Picasso ou Pessoa que pertencemos à Europa. É neles que estamos em casa. Mesmo que as paredes nos pareçam outras, ou que nem as vejamos. Vasco Graça Moura outra coisa não fez senão recordar-nos isso. No mais, “qual vida, a vida é breve/ e não vale um poema, ou só o vale se transformada nele”.

Nota: citados entre aspas, versos de Vasco Graça Moura (Poesia Reunida, Lisboa, Quetzal, 2012, 2 vols.)

Escritor