Quando a arte reverbera no espaço

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Com a exposição Esquírolas, inaugurada em Guimarães, e AB OVO, disco dos @C, Pedro Tudela convida-nos a pensar e a ouvir o elemento sonoro Fernando Veludo/NFactos

O som como matéria plástica. A indistinção entre música, ruído e som. A contaminação entre os trabalhos. A relação com os processos, com os acontecimentos que decorrem nos espaços. A espacialização do som. Entrar no universo de Pedro Tudela (Viseu, 1962) é estabelecer uma relação com estas realidades ou condições. Mesmo tratando-se de um artista que não obedece apenas a um suporte (pinta, fotografa), continua a encontrar no som a matéria eleita, a ferramenta privilegiada de um trabalho iniciado nos anos 90. E, agora, as circunstâncias revelam-se oportunas para uma (re)descoberta dos método e interesses que têm guiado esse trabalho. Com a exposição Esquírolas, inaugurada na semana passada em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor, e AB OVO, disco dos @C, Pedro Tudela convida-nos a pensar e a ouvir o elemento sonoro. Para lá ou, mesmo, contra a saturação imposta pelas tecnologias do “audiovisual”. 

A exposição em Guimarães divide-se pelos dois pisos do centro cultural. No piso térreo, destaca-se um trabalho inédito feito de tubos de vidro e troncos de árvores, desenhos, uma escultura vertical com duas molas em tensão, fotografias. No piso de cima, “caixas de som”, partituras gráficas, instalações, uma das quais assaz inusitada: dois altifalantes virados na direcção de uma parede que recebe, numa tela, uma espécie de mortalha esmagada (trata-se do cone de um altifalante). A ideia de esmagamento, de acumulação de informação surge, em simultâneo, diante da imagem do objecto e sob a reverberação dos altifalantes. Não se anda longe do conceito de sinestesia. Pedro Tudela aprecia as contaminações, as justaposições, como o espectador reparará diante da circulação do som. “Há uma contaminação entre os trabalhos. Não há leitura individual das peças, o que aconteceria se utilizasse headphones. O som é editado por altifalantes o que permite uma ligação entre os objectos e entre os objectos e os sons.” 

Manipulação e composição

O espectador é convocado para uma deambulação, para uma audição sensível dos ruídos, dos ecos. Não há qualquer narrativa prévia ou duração definidas. Pese embora a força visual da maior parte dos trabalhos, o que Pedro Tudela propõe é uma relação com o espaço, com as variações de uma nova realidade. O tempo é que o espectador quiser. Prolonga-se ou não. “O título da exposição remete para uma fragmentação, para a ideia de fragmento [de um osso fracturado]. Para uma parte de algo que não sabemos que forma vai ter. Por isso, o percurso [na exposição] é livre. Quero fazer novas ligações, novas imagens”. A liberdade do espectador só é “condicionada” pela manipulação sonora. À medida que explora as salas, descobre dois tipos de sonoridades. “Na parte de cima, o som surge fragmentado, com glitch, erros digitais. No outro piso, é mais atmosférico, mais contínuo, como se congelasse o tempo. Os sons partem da mesma fonte, que são as campânulas, os tubos de vidro, mas o resultado é muito diferente”.

Pedro Tudela pensa as exposições enquanto olha para o espaço, tendo sempre em conta as condições que encontra nos lugares. “Se há uma coisa importante é a forma com as obras se instalam [no espaço]. Tem um protagonismo muito forte. Não quero combater isso. Mas também quero que as obras tenham autonomia”, diz. A propósito, vale a pena sublinhar que algumas peças, originárias de outros contextos, reivindicam a condição site-specific. “Estão refém dos sítios, são difíceis de replicar. Mas outras ganharam novos contextos. Foram recuperadas, como aconteceu, por exemplo, com Fifty Ways [2013] onde introduzi novos sons. Por isso, esta exposição não pode ser considerada uma antológica. Recupero peças antigas, recontextualizo-as. E não há uma montagem linear”.

Outra das vertentes da actividade de Pedro Tudela é a produção de composições musicais, como a que preenche AB OVO, sob a assinatura dos @C, projecto de música electrónica concebido com Miguel Carvalhais. “Esse disco resultou de uma revisitação de um trabalho que fizemos para uma peça de teatro de marionetas. Não é uma transcrição rigorosa da banda sonora, mas pegámos no material e fizemos uma composição que vai sobrevivendo para além da peça”. A par da edição, existe tambémM.M.M.M. instalação patente no Teatro de Marionetas do Porto, que contou com a colaboração da artista austríaca Lia. “É também uma revisitação mas do trabalho dos marionetistas. Recolhemos e manipulámos vários sons, dos tecidos, do ferro, da madeira. Queríamos que as pessoas se confrontassem com essa experiência, não tanto com a história. Não procurámos ilustrar ou apresentar o processo. O que era interessante era a combinação ou a repetição de sons.” Longe desta abordagem está também qualquer preocupação com a ideia de documentação ou memória. Pedro Tudela prefere de falar de armazenamento de informação. Se existir uma memória, está fragmentada ou recombinada. Transformada em som e portanto irreconhecível. “Na verdade, a memória funciona mais como pretexto do que como fim”, resume o artista.

Ouvir melhor

O percurso de Pedro Tudela no campo da música e da cenografia revela aproximações à actividade enquanto artista plástico, nomeadamente nos anos 90, quando se partilharam territórios contíguos (os artistas também eram músicos). “No meu caso, na composição e na produção artística as abordagens são as mesmas, mas nos C@ há dois autores a trabalhar. Não tenho formação clássica em música, apesar de ter tido experiências na rádio e noutros projectos musicais [Mute Life Dept], inclusive com instrumentos tradicionais. Mas a minha aproximação ao som é a de um artista plástico. Trato o som enquanto matéria plástica que manipulo com processos mais ou menos arcaicos. Interessa-me a sua propagação no espaço, a sua reverberação, a sua dinâmica”. 

Em Portugal, Pedro Tudela não é o único artista que privilegia o som. Basta lembrar que na década em que o seu trabalho começou a ter exposição pública, outros nomes se salientaram pela apropriação e uso da música ou do som, assinalando o que parecia ser uma “tendência” em vias de afirmação. Mais de 10 anos depois, aquela revelou-se afinal muito minoritária, quase residual. “Contam-se pelos dedos de uma mão os artistas que trabalham regularmente com o som. A arte portuguesa sempre preferiu o silêncio. Há depois exposições subordinadas ao tema que incluem muitos artistas que praticamente não fazem arte sonora, o que para mim é incompreensível”.

Em Esquírolas vemos fotografias, desenhos, obras mudas, mas é a descoberta do som, por vezes espantada, por vezes ponderada, que melhor identifica a produção de Pedro Tudela. Daí a importância do repto que as suas obras reiteram: ouça-se melhor, ouça-se com mais atenção, com outro discernimento. “Essa atenção ao som é muito importante. Não diria que seja esse o fim de um artista, chamar a atenção das pessoas para a importância dos sons, mas há pouco tempo um dos meus alunos, que toca numa banda, disse-me que começou a ouvir de outra forma os sons dos aparelhos domésticos. Foi um comentário curioso e muito simbólico. Hoje o som parece muito democrático até em termos de qualidade, mas as experiências sonoras das pessoas são continuamente esmagadas, saturadas. Eu procuro contrariar isso sublinhando a espacialidade do som e a existência de outras realidades, como os erros sonoros e a estática”. O silêncio também passa por aqui.

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O som como matéria plástica. A indistinção entre música, ruído e som. A contaminação entre os trabalhos. A relação com os processos, com os acontecimentos que decorrem nos espaços. A espacialização do som. Entrar no universo de Pedro Tudela (Viseu, 1962) é estabelecer uma relação com estas realidades ou condições. Mesmo tratando-se de um artista que não obedece apenas a um suporte (pinta, fotografa), continua a encontrar no som a matéria eleita, a ferramenta privilegiada de um trabalho iniciado nos anos 90. E, agora, as circunstâncias revelam-se oportunas para uma (re)descoberta dos método e interesses que têm guiado esse trabalho. Com a exposição Esquírolas, inaugurada na semana passada em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor, e AB OVO, disco dos @C, Pedro Tudela convida-nos a pensar e a ouvir o elemento sonoro. Para lá ou, mesmo, contra a saturação imposta pelas tecnologias do “audiovisual”. 

A exposição em Guimarães divide-se pelos dois pisos do centro cultural. No piso térreo, destaca-se um trabalho inédito feito de tubos de vidro e troncos de árvores, desenhos, uma escultura vertical com duas molas em tensão, fotografias. No piso de cima, “caixas de som”, partituras gráficas, instalações, uma das quais assaz inusitada: dois altifalantes virados na direcção de uma parede que recebe, numa tela, uma espécie de mortalha esmagada (trata-se do cone de um altifalante). A ideia de esmagamento, de acumulação de informação surge, em simultâneo, diante da imagem do objecto e sob a reverberação dos altifalantes. Não se anda longe do conceito de sinestesia. Pedro Tudela aprecia as contaminações, as justaposições, como o espectador reparará diante da circulação do som. “Há uma contaminação entre os trabalhos. Não há leitura individual das peças, o que aconteceria se utilizasse headphones. O som é editado por altifalantes o que permite uma ligação entre os objectos e entre os objectos e os sons.” 

Manipulação e composição

O espectador é convocado para uma deambulação, para uma audição sensível dos ruídos, dos ecos. Não há qualquer narrativa prévia ou duração definidas. Pese embora a força visual da maior parte dos trabalhos, o que Pedro Tudela propõe é uma relação com o espaço, com as variações de uma nova realidade. O tempo é que o espectador quiser. Prolonga-se ou não. “O título da exposição remete para uma fragmentação, para a ideia de fragmento [de um osso fracturado]. Para uma parte de algo que não sabemos que forma vai ter. Por isso, o percurso [na exposição] é livre. Quero fazer novas ligações, novas imagens”. A liberdade do espectador só é “condicionada” pela manipulação sonora. À medida que explora as salas, descobre dois tipos de sonoridades. “Na parte de cima, o som surge fragmentado, com glitch, erros digitais. No outro piso, é mais atmosférico, mais contínuo, como se congelasse o tempo. Os sons partem da mesma fonte, que são as campânulas, os tubos de vidro, mas o resultado é muito diferente”.

Pedro Tudela pensa as exposições enquanto olha para o espaço, tendo sempre em conta as condições que encontra nos lugares. “Se há uma coisa importante é a forma com as obras se instalam [no espaço]. Tem um protagonismo muito forte. Não quero combater isso. Mas também quero que as obras tenham autonomia”, diz. A propósito, vale a pena sublinhar que algumas peças, originárias de outros contextos, reivindicam a condição site-specific. “Estão refém dos sítios, são difíceis de replicar. Mas outras ganharam novos contextos. Foram recuperadas, como aconteceu, por exemplo, com Fifty Ways [2013] onde introduzi novos sons. Por isso, esta exposição não pode ser considerada uma antológica. Recupero peças antigas, recontextualizo-as. E não há uma montagem linear”.

Outra das vertentes da actividade de Pedro Tudela é a produção de composições musicais, como a que preenche AB OVO, sob a assinatura dos @C, projecto de música electrónica concebido com Miguel Carvalhais. “Esse disco resultou de uma revisitação de um trabalho que fizemos para uma peça de teatro de marionetas. Não é uma transcrição rigorosa da banda sonora, mas pegámos no material e fizemos uma composição que vai sobrevivendo para além da peça”. A par da edição, existe tambémM.M.M.M. instalação patente no Teatro de Marionetas do Porto, que contou com a colaboração da artista austríaca Lia. “É também uma revisitação mas do trabalho dos marionetistas. Recolhemos e manipulámos vários sons, dos tecidos, do ferro, da madeira. Queríamos que as pessoas se confrontassem com essa experiência, não tanto com a história. Não procurámos ilustrar ou apresentar o processo. O que era interessante era a combinação ou a repetição de sons.” Longe desta abordagem está também qualquer preocupação com a ideia de documentação ou memória. Pedro Tudela prefere de falar de armazenamento de informação. Se existir uma memória, está fragmentada ou recombinada. Transformada em som e portanto irreconhecível. “Na verdade, a memória funciona mais como pretexto do que como fim”, resume o artista.

Ouvir melhor

O percurso de Pedro Tudela no campo da música e da cenografia revela aproximações à actividade enquanto artista plástico, nomeadamente nos anos 90, quando se partilharam territórios contíguos (os artistas também eram músicos). “No meu caso, na composição e na produção artística as abordagens são as mesmas, mas nos C@ há dois autores a trabalhar. Não tenho formação clássica em música, apesar de ter tido experiências na rádio e noutros projectos musicais [Mute Life Dept], inclusive com instrumentos tradicionais. Mas a minha aproximação ao som é a de um artista plástico. Trato o som enquanto matéria plástica que manipulo com processos mais ou menos arcaicos. Interessa-me a sua propagação no espaço, a sua reverberação, a sua dinâmica”. 

Em Portugal, Pedro Tudela não é o único artista que privilegia o som. Basta lembrar que na década em que o seu trabalho começou a ter exposição pública, outros nomes se salientaram pela apropriação e uso da música ou do som, assinalando o que parecia ser uma “tendência” em vias de afirmação. Mais de 10 anos depois, aquela revelou-se afinal muito minoritária, quase residual. “Contam-se pelos dedos de uma mão os artistas que trabalham regularmente com o som. A arte portuguesa sempre preferiu o silêncio. Há depois exposições subordinadas ao tema que incluem muitos artistas que praticamente não fazem arte sonora, o que para mim é incompreensível”.

Em Esquírolas vemos fotografias, desenhos, obras mudas, mas é a descoberta do som, por vezes espantada, por vezes ponderada, que melhor identifica a produção de Pedro Tudela. Daí a importância do repto que as suas obras reiteram: ouça-se melhor, ouça-se com mais atenção, com outro discernimento. “Essa atenção ao som é muito importante. Não diria que seja esse o fim de um artista, chamar a atenção das pessoas para a importância dos sons, mas há pouco tempo um dos meus alunos, que toca numa banda, disse-me que começou a ouvir de outra forma os sons dos aparelhos domésticos. Foi um comentário curioso e muito simbólico. Hoje o som parece muito democrático até em termos de qualidade, mas as experiências sonoras das pessoas são continuamente esmagadas, saturadas. Eu procuro contrariar isso sublinhando a espacialidade do som e a existência de outras realidades, como os erros sonoros e a estática”. O silêncio também passa por aqui.