Kelela: O futuro começa agora
Há cerca de um mês, Björk colocou no seu Instagram uma fotografia de uma cantora em palco. Era Kelela Mizanekristos em Nova Iorque, num concerto “louco”, “cru e gracioso”, um dos melhores que a islandesa já vira.
“É um privilégio. Ela é provavelmente o membro da audiência ideal, aquele que eu mais gostaria de ter no meu concerto. É muito fixe e belo. Estou contente, mais do que contente”, confessa-nos Kelela ao telefone, a partir de Nova Iorque, semanas antes de se estrear em Portugal – é hoje, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, com o cúmplice Total Freedom a assegurar o controlo da maquinaria.
Com apenas uma mixtape no currículo (Cut 4 Me, lançada em Outubro de 2013), Kelela, nascida em Washington e fixada em Los Angeles, começa a ficar habituada a tantos elogios.
O impacto de Cut 4 Me foi tal que muitos – incluindo o Ípsilon – consideram-na um álbum e puseram-na na lista dos melhores de 2013. Beyoncé gostou e a irmã, Solange Knowles, chamou-a para uma compilação da sua Saint Records, na qual juntou nomes de uma nova vaga R&B que esbate as fronteiras entre o mainstream e o indie (de Sampha à própria Solange). Kelela ainda está a preparar maquetas para o seu álbum, com produtores que trabalharam com Kanye West, entre outros, e já tem várias editoras interessadas em lançá-lo.
Ri-se quando lhe perguntamos se já sofre a pressão de ser uma pequena estrela no underground (termo que começa a ser redutor para ela). “Não. É um sonho. É muito fixe porque sempre quis participar no desenho da minha carreira. Nunca quis entregar isso a alguém”, conta, antes de ir tomar o pequeno-almoço com Nick Weiss, dos Teengirl Fantasy.
A ascensão de Kelela passou também por esta dupla que opera nas fronteiras da pop e da música de dança. Então praticamente desconhecida, Kelela deu voz a EFX, momento sublime de Tracer, o álbum de 2012 dos Teengirl Fantasy. Sobre um monumento de requinte digital, uma voz doce mostrava uma elasticidade fora do comum. Na altura, excitados, escrevemos nestas páginas: “É uma das melhores canções de 2012: enquanto dura acreditamos que há futuro para a pop.” Sempre que a ouvimos, renovamos a fé.
“Lembro-me de ouvir o instrumental e de sentir que era tão bom descobrir produtores com uma mente semelhante à minha”, diz. Gostou da coabitação entre “referências pop muito clássicas”, coisas “que sabem muito bem”, e elementos “muito desafiantes”, “como o facto de haver apenas um verso e um refrão e ir directamente para a ponte” (elemento que numa canção pop costuma aparecer depois do segundo refrão). “Isso é louco.”
EFX foi o momento em que o mundo a descobriu, mas, naquela altura, Kelela já tinha conhecido os músicos com o coração no futuro que integram as editoras Fade To Mind (de Los Angeles) e Night Slugs (de Londres). Desta ponte transatlântica resultou Cut 4 Me, colecção de canções com o corpo e o cérebro da música de dança mais aventureira e a volúpia do R&B.
Ao ouvir as produções futuristas que Nguzunguzu, Kingdom, Jam City e outros lhe deram a ouvir, Kelela sentiu o mesmo “O que se passa aqui?” (palavras da própria) que a assaltou quando escutou a canção dos Teengirl Fantasy. Kelela encontrara um som, uma ideia estética, “a versão instrumental” do que queria fazer com a voz: “a intersecção exacta entre algo que ressoa e algo que desafia”.
Adeus à imitação
O encontro com a Fade To Mind (e depois com a editora “irmã” Night Slugs) deu-se depois de se mudar para Los Angeles à procura de uma carreira na música. Para trás ficaram Washington, concertos em bares de jazz e uma licenciatura em Sociologia e Relações Internacionais. “Estava muito perto [de acabar o curso], foi muito pateta, mas consumia a minha psique. Precisava de o abandonar.”
Em Los Angeles, teve que trabalhar fora da música para pagar as contas: deu formação a vendedores de painéis solares, foi ama. Não queria voltar ao circuito de bares. “Foi claro para mim que se fizesse trabalho de estúdio ou música enquanto profissional, mas não enquanto artista, ficaria presa nisso”, justifica.
Kelela não queria voltar a ser uma imitadora: queria criar. Na juventude, copiara os gestos dos telediscos de Janet Jackson na solidão do quarto e teve aulas de violino. Mais tarde, entrou numa banda indie e colaborou com o namorado, o guitarrista Tosin Abasi. No YouTube, um vídeo mostra Tobin e Kelela em estúdio: ele virtuoso, seguro na guitarra de oito cordas; ela com a voz à procura de um lugar ali – uma promessa por cumprir.
A experiência não foi além de sessões de improvisação, mas foi importante para a libertar da mera imitação. “Pude experimentar a composição de canções”, refere. Era composição no momento, com Kelela a cantar o que lhe surgia na mente: estavam ali as raízes do método de composição de Cut 4 Me. “Foi assim que comecei: ‘vamos fazer uma canção agora mesmo’. Eu deixava-me ir. Podia estar a cantar disparates, mas podias ouvir a estrutura das melodias”, desfia. “Desenvolvi esse músculo. Comecei a trabalhar na mixtape logo depois de acabarmos a relação.”
Cut 4 Me foi um triunfo a vários níveis. Para Kelela, naturalmente, porque, finalmente, encontrou a sua voz, a sua missão (“Muitas pessoas ficam comovidas [com a música]. É a moeda mais valiosa”); e para os produtores que a acompanharam, parte de uma geração que cresceu a ouvir R&B, hip-hop e música de dança e que procura o futuro a partir de uma perspectiva sem preconceitos do passado e do presente pop.
Para o álbum que está a fazer, ainda sem data de lançamento, está a trabalhar com alguns dos cúmplices de Cut 4 Me (Bok Bok, Girl Unit, Jam City, Nguzunguzu), mas também Evian Christ, Arca e Hudson Mohawke – curiosamente, todos entram em Yeezus, de Kanye West. Nesta fase, Kelela canta o que lhe vem à cabeça para responder às ideias instrumentais dos produtores. Depois, sentar-se-á com eles a ver que “melodias e letras funcionam e quais não funcionam”.
Muitos viram nela um álbum, mas Cut 4 Me era, orgulhosamente, uma mixtape (até porque andava por lá material antigo, renovado pela voz de Kelela). “Chamei-lhe mixtape porque levo o conceito de mixtape muito a sério”, argumenta. “Tem qualidade de álbum, mas só porque estávamos a tentar criar um corpo estético de qualidade e que soasse como uma coisa coesa”, analisa. “Mas ainda tem o sentimento de uma mixtape: uma introdução a quem nunca me ouviu.”
Muitas canções de Cut 4 Me parecem incompletas – não é defeito, é feitio. “Muitas canções não têm uma ponte. Gosto disso, gosto de deixar as coisas assim. Mas, no álbum, quero levar todas as canções ao nível máximo”, revela.
Contrapomos: o charme de Cut 4 Me está também no mistério, nas elipses, no que não é dito. Ela sossega-nos: “Não significa que cada canção do álbum vá ter um verso, um refrão e uma ponte. Mas significa que estou a tentar que cada uma dessas partes – se as incluir – seja a mais perfeita possível. Gosto que a forma das canções seja desafiante, mas também que as pessoas se sintam bem. É a intersecção entre prazer e desafio. É essa experiência que quero criar para a audiência: quando estás a ouvir, sentires que é intuitivo num certo nível, que sabes para onde vai e sabe bem saber para onde vai, mas, no momento seguinte, não sabes de onde aquilo veio”.
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Há cerca de um mês, Björk colocou no seu Instagram uma fotografia de uma cantora em palco. Era Kelela Mizanekristos em Nova Iorque, num concerto “louco”, “cru e gracioso”, um dos melhores que a islandesa já vira.
“É um privilégio. Ela é provavelmente o membro da audiência ideal, aquele que eu mais gostaria de ter no meu concerto. É muito fixe e belo. Estou contente, mais do que contente”, confessa-nos Kelela ao telefone, a partir de Nova Iorque, semanas antes de se estrear em Portugal – é hoje, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, com o cúmplice Total Freedom a assegurar o controlo da maquinaria.
Com apenas uma mixtape no currículo (Cut 4 Me, lançada em Outubro de 2013), Kelela, nascida em Washington e fixada em Los Angeles, começa a ficar habituada a tantos elogios.
O impacto de Cut 4 Me foi tal que muitos – incluindo o Ípsilon – consideram-na um álbum e puseram-na na lista dos melhores de 2013. Beyoncé gostou e a irmã, Solange Knowles, chamou-a para uma compilação da sua Saint Records, na qual juntou nomes de uma nova vaga R&B que esbate as fronteiras entre o mainstream e o indie (de Sampha à própria Solange). Kelela ainda está a preparar maquetas para o seu álbum, com produtores que trabalharam com Kanye West, entre outros, e já tem várias editoras interessadas em lançá-lo.
Ri-se quando lhe perguntamos se já sofre a pressão de ser uma pequena estrela no underground (termo que começa a ser redutor para ela). “Não. É um sonho. É muito fixe porque sempre quis participar no desenho da minha carreira. Nunca quis entregar isso a alguém”, conta, antes de ir tomar o pequeno-almoço com Nick Weiss, dos Teengirl Fantasy.
A ascensão de Kelela passou também por esta dupla que opera nas fronteiras da pop e da música de dança. Então praticamente desconhecida, Kelela deu voz a EFX, momento sublime de Tracer, o álbum de 2012 dos Teengirl Fantasy. Sobre um monumento de requinte digital, uma voz doce mostrava uma elasticidade fora do comum. Na altura, excitados, escrevemos nestas páginas: “É uma das melhores canções de 2012: enquanto dura acreditamos que há futuro para a pop.” Sempre que a ouvimos, renovamos a fé.
“Lembro-me de ouvir o instrumental e de sentir que era tão bom descobrir produtores com uma mente semelhante à minha”, diz. Gostou da coabitação entre “referências pop muito clássicas”, coisas “que sabem muito bem”, e elementos “muito desafiantes”, “como o facto de haver apenas um verso e um refrão e ir directamente para a ponte” (elemento que numa canção pop costuma aparecer depois do segundo refrão). “Isso é louco.”
EFX foi o momento em que o mundo a descobriu, mas, naquela altura, Kelela já tinha conhecido os músicos com o coração no futuro que integram as editoras Fade To Mind (de Los Angeles) e Night Slugs (de Londres). Desta ponte transatlântica resultou Cut 4 Me, colecção de canções com o corpo e o cérebro da música de dança mais aventureira e a volúpia do R&B.
Ao ouvir as produções futuristas que Nguzunguzu, Kingdom, Jam City e outros lhe deram a ouvir, Kelela sentiu o mesmo “O que se passa aqui?” (palavras da própria) que a assaltou quando escutou a canção dos Teengirl Fantasy. Kelela encontrara um som, uma ideia estética, “a versão instrumental” do que queria fazer com a voz: “a intersecção exacta entre algo que ressoa e algo que desafia”.
Adeus à imitação
O encontro com a Fade To Mind (e depois com a editora “irmã” Night Slugs) deu-se depois de se mudar para Los Angeles à procura de uma carreira na música. Para trás ficaram Washington, concertos em bares de jazz e uma licenciatura em Sociologia e Relações Internacionais. “Estava muito perto [de acabar o curso], foi muito pateta, mas consumia a minha psique. Precisava de o abandonar.”
Em Los Angeles, teve que trabalhar fora da música para pagar as contas: deu formação a vendedores de painéis solares, foi ama. Não queria voltar ao circuito de bares. “Foi claro para mim que se fizesse trabalho de estúdio ou música enquanto profissional, mas não enquanto artista, ficaria presa nisso”, justifica.
Kelela não queria voltar a ser uma imitadora: queria criar. Na juventude, copiara os gestos dos telediscos de Janet Jackson na solidão do quarto e teve aulas de violino. Mais tarde, entrou numa banda indie e colaborou com o namorado, o guitarrista Tosin Abasi. No YouTube, um vídeo mostra Tobin e Kelela em estúdio: ele virtuoso, seguro na guitarra de oito cordas; ela com a voz à procura de um lugar ali – uma promessa por cumprir.
A experiência não foi além de sessões de improvisação, mas foi importante para a libertar da mera imitação. “Pude experimentar a composição de canções”, refere. Era composição no momento, com Kelela a cantar o que lhe surgia na mente: estavam ali as raízes do método de composição de Cut 4 Me. “Foi assim que comecei: ‘vamos fazer uma canção agora mesmo’. Eu deixava-me ir. Podia estar a cantar disparates, mas podias ouvir a estrutura das melodias”, desfia. “Desenvolvi esse músculo. Comecei a trabalhar na mixtape logo depois de acabarmos a relação.”
Cut 4 Me foi um triunfo a vários níveis. Para Kelela, naturalmente, porque, finalmente, encontrou a sua voz, a sua missão (“Muitas pessoas ficam comovidas [com a música]. É a moeda mais valiosa”); e para os produtores que a acompanharam, parte de uma geração que cresceu a ouvir R&B, hip-hop e música de dança e que procura o futuro a partir de uma perspectiva sem preconceitos do passado e do presente pop.
Para o álbum que está a fazer, ainda sem data de lançamento, está a trabalhar com alguns dos cúmplices de Cut 4 Me (Bok Bok, Girl Unit, Jam City, Nguzunguzu), mas também Evian Christ, Arca e Hudson Mohawke – curiosamente, todos entram em Yeezus, de Kanye West. Nesta fase, Kelela canta o que lhe vem à cabeça para responder às ideias instrumentais dos produtores. Depois, sentar-se-á com eles a ver que “melodias e letras funcionam e quais não funcionam”.
Muitos viram nela um álbum, mas Cut 4 Me era, orgulhosamente, uma mixtape (até porque andava por lá material antigo, renovado pela voz de Kelela). “Chamei-lhe mixtape porque levo o conceito de mixtape muito a sério”, argumenta. “Tem qualidade de álbum, mas só porque estávamos a tentar criar um corpo estético de qualidade e que soasse como uma coisa coesa”, analisa. “Mas ainda tem o sentimento de uma mixtape: uma introdução a quem nunca me ouviu.”
Muitas canções de Cut 4 Me parecem incompletas – não é defeito, é feitio. “Muitas canções não têm uma ponte. Gosto disso, gosto de deixar as coisas assim. Mas, no álbum, quero levar todas as canções ao nível máximo”, revela.
Contrapomos: o charme de Cut 4 Me está também no mistério, nas elipses, no que não é dito. Ela sossega-nos: “Não significa que cada canção do álbum vá ter um verso, um refrão e uma ponte. Mas significa que estou a tentar que cada uma dessas partes – se as incluir – seja a mais perfeita possível. Gosto que a forma das canções seja desafiante, mas também que as pessoas se sintam bem. É a intersecção entre prazer e desafio. É essa experiência que quero criar para a audiência: quando estás a ouvir, sentires que é intuitivo num certo nível, que sabes para onde vai e sabe bem saber para onde vai, mas, no momento seguinte, não sabes de onde aquilo veio”.