Arquitectura e petróleo: pelas ruas de Riad
Países como o Iraque, o Irão, a Arábia Saudita ou o próprio Kuwait, antes da primeira crise do petróleo de 1973, encomendaram ambiciosos projectos de arquitectura.
É difícil acreditar que, antes desse imenso “parque temático”, tenha havido uma produção arquitectónica criticamente empenhada e consistente. No entanto existiu, e, embora quase inteiramente desconhecida do Ocidente, vão-se agora desvendando obras notáveis, que, por entre guerras, estigmas, repressão e obscurantismo, nunca chegaram até nós. Aliás, uma das grandes expectativas da Bienal de Veneza 2014 estará certamente na exposição The Repository no pavilhão dos EUA, um extenso arquivo de projectos de empresas americanas maioritariamente exportados para o Médio Oriente ao longo século XX, da autoria dos curadores Michael Kubo e Eva Franch.
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É difícil acreditar que, antes desse imenso “parque temático”, tenha havido uma produção arquitectónica criticamente empenhada e consistente. No entanto existiu, e, embora quase inteiramente desconhecida do Ocidente, vão-se agora desvendando obras notáveis, que, por entre guerras, estigmas, repressão e obscurantismo, nunca chegaram até nós. Aliás, uma das grandes expectativas da Bienal de Veneza 2014 estará certamente na exposição The Repository no pavilhão dos EUA, um extenso arquivo de projectos de empresas americanas maioritariamente exportados para o Médio Oriente ao longo século XX, da autoria dos curadores Michael Kubo e Eva Franch.
Países como o Iraque, o Irão, a Arábia Saudita ou o próprio Kuwait, antes da primeira crise do petróleo de 1973, tinham dado início a ambiciosos programas de infra-estruturas, e que, ao contrário do que se supõe, não eram projectos exclusivamente desenvolvidos por empresas americanas. Há casos sobejamente documentados como o Parlamento do Kuwait, de Jørn Utzon, ou o aeroporto de Dhahran, de Minoru Yamaski. Mas alguém imagina George Candilis, do Team X, a projectar habitação social para Doha, um estádio em Bagdad de Le Corbusier, ou, em Teerão, o projecto da imensa biblioteca Reza Pahlavi por Alison & Peter Smithson?
Recentemente, passeando nas ruas de Riad, deparei-me acidentalmente com um notável quarteirão urbano da autoria do Pritzker paponês Kenzo Tange. Conhecida como Fundação Rei Faisal ou Faisaliah, — o equivalente saudita à Gulbenkian —, é um conjunto de edifícios do final dos anos 60 ligados por pontes e terraços imaculadamente pormenorizados em travertino e betão ao espírito “brutalista” do tempo. Aqui, Tange, a trabalhar sem os constrangimentos sísmicos do seu Japão nativo, pode libertar plenamente todo o ímpeto estrutural e escultórico que é lhe tão característico.
Um desses edifícios desenvolve-se a partir de um longo átrio, gerado por um volume em cascata sugestivamente suspenso. Impressionou-me o investimento no desenho, o cuidado e sensibilidade que o mestre japonês dedicou a este projecto. Imagino que Riad, nessa altura, fosse pouco mais do que uma planície desértica, desolada e escaldante. Imagino o fosso cultural entre um arquitecto expoente de uma das sociedades mais sofisticadas do mundo à época e um cliente autocrata representante de uma era ainda pré-industrial. E, no entanto, por mais contraditório e absurdo que este contexto possa parecer, o facto é que permitiu uma obra de excepcional qualidade.
O mesmo já não será válido para a grande torre de Norman Foster que remata o referido quarteirão, projectada três décadas mais tarde. No limite do kitsch, trata-se de uma pirâmide cónica e treliçada, revestida a panéis de alumínio e coroada por uma esfera espelhada em vidro dourado. Esta última, ao que consta, resultante de um assertivo pedido do cliente, contém o inevitável restaurante panorâmico.
Sendo Foster um arquitecto igualmente notável, que aconteceu então nestas últimas décadas à condição do arquitecto, para aceitar uma degradação tão grande da sua autoridade? Curiosamente, penso que este vai ser o tema “fundamental” da Bienal de Veneza; a malaise que Rem Koolhaas identifica na arquitectura contemporânea está evidentemente centrada neste fenómeno, que não é, aliás, exclusivo do Médio Oriente. Tal como noutros mercados emergentes, a região é apenas uma lente que o amplia.
Porém, este quarteirão encerra ainda mais uma inquietante surpresa – em 2008 houve um concurso para a ampliação da fundação em que Foster e Koolhaas se reencontraram. Foster, pragmaticamente, propôs mais do mesmo, ou seja, uma pirâmide cónica com o triplo da altura da anterior. Por sua vez, Koolhaas — o homem que declarou a morte ao arranha-céus — propôs duas elegantes torres em forma de pirâmide cónica invertida. Ambas as propostas implicavam uma demolição substancial da obra de Tange. A Fundação Faisal, num assomo de lucidez, abortou o concurso.
Lembrei-me então de uma conversa de há 20 anos com o crítico Yehuda Safran, à porta da Avery Library de Columbia, em Nova Iorque, enquanto ainda lhe era permitido fumar umas cigarrilhas infectas que partia ao meio para fazer render. Dizia ele, cínico, em jeito de oráculo: “You architects think the world of yourselves, but you are nothing but courtesans, mere courtesans of power...” Talvez não seja exactamente assim. Mas, sem o exercício da autoridade, nem a defesa da integridade, o que ficará para a história desta arquitectura-espectáculo? Créditos de carbono?