A Córsega fora de horas como nunca a vimos antes

Um crime real serviu de inspiração para Les Apaches, primeira longa-metragem do francês Thierry de Peretti, a concurso no IndieLisboa, que filma a sua Córsega natal pelo prisma de um filme de género realista com actores não-profissionais.

Fotogaleria

Estreado na Quinzena dos Realizadores de Cannes 2013, Les Apaches é uma das melhores selecções da competição internacional do IndieLisboa, objecto entre a tradição do filme de género e uma vontade de realismo quase documental – Thierry de Peretti evoca ao mesmo tempo o cinema americano dos anos 1980 com o qual cresceu, o chinês Jia Zhang-ke, Roman Polanski, Elia Kazan e Arthur Penn.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Estreado na Quinzena dos Realizadores de Cannes 2013, Les Apaches é uma das melhores selecções da competição internacional do IndieLisboa, objecto entre a tradição do filme de género e uma vontade de realismo quase documental – Thierry de Peretti evoca ao mesmo tempo o cinema americano dos anos 1980 com o qual cresceu, o chinês Jia Zhang-ke, Roman Polanski, Elia Kazan e Arthur Penn.

A partir de um fait-divers real que chocou a Córsega, envolvendo um grupo de adolescentes e uma festa que acaba mal, o filme foi rodado nos próprios locais onde o caso decorreu com actores adolescentes não profissionais da zona, como o realizador explicou ao PÚBLICO numa pequena conversa.

Les Apaches é um filme que nos mostra a Córsega como nunca a tínhamos visto.

É um local relativamente pouco representado no cinema francês, e um local muito específico do território francês que é muito pouco filmado. Era importante, para mim, fazer uma primeira longa-metragem passada em locais que temos a impressão de nunca ter visto no cinema. O ponto de partida é um acontecimento real, que foi determinante quanto à forma do filme: tinha de ter qualquer coisa de filme negro clássico, mas também qualquer coisa de misterioso e arcaico, com uma abordagem de documentário mesmo que o filme não o seja. Sítios como Porto-Vecchio, onde o filme se passa, estão um bocado “entalados”: são estâncias balneares que nunca vemos no Inverno, onde se sente a ideia de uma sociedade do divertimento permanente, das festas, dos night-clubs, do dinheiro. Mas existe um poder do mal escondido a trabalhar, que tive vontade de desmascarar um pouco. É um sítio onde as regras não são bem as mesmas, onde pode coexistir a ilusão da modernidade e o conservadorismo mais arreigado, que teve um grande boom por causa do turismo, onde quatro ou cinco famílias partilham tudo, mas onde continuam a existir princípios de outra idade, muito românticos e muito violentos.

Daí a dimensão trágica desta história...

Porto-Vecchio é uma espécie de grande parque de atracções a céu aberto, com as vilas, as praias, os bairros populares. São universos estanques, excepto quando acontece alguma coisa e de repente os vasos comunicantes abrem-se para que a tragédia aconteça. A Córsega é uma sociedade onde a impunidade é possível, é um local submetido a forças para-mafiosas, ou pré-mafiosas. O crime acontece porque pode acontecer – porque pode ser um modo de aceder a outro grau de realidade, e porque há a possibilidade de não ser punido.

É um filme extremamente clássico a muitos níveis.

Um dos pontos de partida foi uma pequena novela do Stephen King chamada The Body, que deu origem a um dos meus filmes preferidos, Conta Comigo [Rob Reiner, 1986, com River Phoenix], que faz parte do cinema com que eu e o meu argumentista crescemos. Desde o princípio que o projecto era fazer um filme acessível. E, como sou corso, tinha de ser compreensível a vários níveis: para os locais, para os meus contemporâneos, tem um valor de exorcismo, de aceder imediatamente a esta violência e esta escuridão através de um efeito de realidade. Apesar de o filme ser extremamente construído, há muito pouca improvisação durante a rodagem. Houve um processo de ano e meio de casting. Uma vez encontrados os quatro actores, passámos tempo juntos, que usei para os conhecer, para os ouvir falar, para tomar nota do modo como eles falam e integrá-lo no guião. A minha vontade era estar com estas quatro personagens, segui-las, ver como eles se movem e como falam, como reagem aos acontecimentos.

Sente-se uma tensão racial muito forte, entre os corsos “nativos” e os imigrantes de origem árabe...

Quando li o fait-divers nos jornais, o que me atraiu foi que dois deles fossem de origem marroquina. A Córsega é um local de clichés – o cantor Tino Rossi, a vendetta, a omertà, são coisas que já não existem bem assim... Dizer que há aqui marroquinos, que eles são daqui e têm sotaque corso, criava outra coisa. Não escrevo problemas, tento escrever personagens. Não tenho vontade de criar personagens sintomáticas, antes personagens que não possam ser reduzidas a nada – não são ricas, mas também não são remediadas, são uma espécie de lumpen-burguesia (risos), com televisores de écrã planos e telemóveis, mas sem dinheiro para muito mais. Falo de jovens que se confrontam com problemas identitários e sociais, e que têm os meios e as potencialidades de lutar contra isso, mas que não têm nenhum tipo de reivindicação política. A questão central que trabalha o filme é quem faz parte da festa e quem nunca lhe vai ter acesso.

Les Apaches passa sexta, dia 2, às 19h no Cinema City Campo Pequeno