O século XXI e o regresso do racismo da pobreza

A propaganda chega de cima: não somos a Grécia, lembram-se? De facto, não, mas parecemos o Burkina Faso; se não queres ser equiparado aos mais pobres, não ajas como os mais analfabetos

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Paulo Pimenta

Enquanto o mundo se revolta (e bem) com a pobreza de espírito de actos racistas, inflamados por gente mais ou menos ignorante, e reage com indignação — seja por actos espontâneos, por reacções sociais em cadeia, ou mesmo campanhas publicitárias - julgo ser importante alertar para outro tipo de racismo, típico de séculos idos e, infelizmente, novamente em forte crescendo: o racismo da pobreza.

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Enquanto o mundo se revolta (e bem) com a pobreza de espírito de actos racistas, inflamados por gente mais ou menos ignorante, e reage com indignação — seja por actos espontâneos, por reacções sociais em cadeia, ou mesmo campanhas publicitárias - julgo ser importante alertar para outro tipo de racismo, típico de séculos idos e, infelizmente, novamente em forte crescendo: o racismo da pobreza.

Durante séculos, ser pobre era uma característica particular de um indivíduo que, sendo praticamente inalterável, o demarcava da sociedade dita civilizada. Os pobres eram-no por karma; nada a fazer. A civilização vivia; aos pobres, já se sabe, cabia sobreviver se outra alternativa mais agradável não existisse.

Houve quem quisesse ser diferente e surge, na idade média, uma classe que, não sendo nobre, era no entanto fortemente dotada de capital — a burguesia — dessa forma conquistando o seu lugar na civilização e demarcando-se dos pobres. Foi, aliás, importante para a burguesia manter tal discriminação: na falta de sangue nobre, era o capital que a distinguia da ralé.

E nada de misturas, que misturas são fraquezas.

Já no século XX, quando a monarquia à antiga (não as modernas que ainda vigoram, vá, sem risos) era fortemente desconsiderada em relação à república, enquanto modelo de organização social moderno que advogava a igualdade de oportunidades para todos (vá lá, sem risos...), a classe burguesa apoderou-se do topo da hierarquia nas sociedades capitalistas, e tornou, assim, ainda mais importante a discriminação pela pobreza.

Mas diversas revoluções — políticas e educativas (como Abril), tecnológicas e económicas (como o micro-crédito), ou sociais (como a Cais) — deram voz e corpo à protecção da pobreza e à sua desmistificação enquanto inevitabilidade. De repente, foi possível acreditar que erradicar a pobreza era possível.

Mas bastou a crise; ou melhor, bastou que a alta burguesia mundial se apercebesse que o mundo caminhava para uma redução da discriminação (que as classes ficariam muito difusas) e os alarmes soaram. Não quero aqui dizer que reformas não fossem necessárias, mas sabemos agora que uma consequência do ajustamento foi o tal 1% ver aumentada a sua riqueza; interessante, não é?

A crise engordou quem devia; emagreceu quem não sabia.

E o racismo da pobreza aumentou, agora entre pobres. Porque podíamos sempre estar pior e por isso interessa diferenciar a nossa classe da dos outros pobres. A propaganda chega de cima: não somos a Grécia, lembram-se? De facto, não, mas parecemos o Burkina Faso; se não queres ser equiparado aos mais pobres, não ajas como os mais analfabetos.

Somos rápidos a agir por impulsos sociais, mas nem sempre por motivos sociais. Numa sociedade em que a tolerância em relação à cor de pele, etnia ou orientação sexual tem sido promovida, a igualdade de oportunidades na sua dimensão económica permanece cada vez mais frágil.

Todo o racismo é estúpido; mas o da pobreza é cruel.

Por isso continua (e bem) a defender as máximas “não ao racismo” e “todos diferentes, todos iguais”, mas entende que a raça tem muitas dimensões.