Não, estas não são as mesmas histórias de sempre

Três grandes filmes na competição do IndieLisboa conjugam a solidez narrativa e o experimentalismo formal com excelentes resultados.

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É essa a ironia: alguns dos filmes mais “radicais” mostrados na Competição (Nacional ou Internacional) do Indie são aqueles que mais se instalam numa construção narrativa sólida, necessária para garantir que não se tomba no experimentalismo gratuito.

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É essa a ironia: alguns dos filmes mais “radicais” mostrados na Competição (Nacional ou Internacional) do Indie são aqueles que mais se instalam numa construção narrativa sólida, necessária para garantir que não se tomba no experimentalismo gratuito.

Pegue-se, por exemplo, na experiência-limite que é O Novo Testamento de Jesus Cristo segundo João, da dupla Joaquim Pinto e Nuno Leonel (quarta 30, 21h30 e sábado 3, 14h30, sempre na Culturgest). Em termos puramente formais, é um dispositivo paredes-meias com a instalação ou com a performance, que evacua tudo o que é supérfluo à palavra da Bíblia tal como traduzida no século XVIII pelo latinista António Pereira de Figueiredo: Luís Miguel Cintra lê o texto integral para um microfone instalado no meio da natureza, durante metade do filme não há sequer imagem para lá do negro.

Mas, ao forçar a concentração do espectador na palavra, nas parábolas e metáforas e lições que Cintra lê de modo extraordinário, O Novo Testamento... arrasta o espectador numa busca da pureza primordial, num questionamento formal que pergunta o que é e o que pode ser o cinema enquanto veículo de transmissão de histórias. Será uma das propostas mais difíceis e exigentes do festival, mas é aquela que se ancora na mais clássica e na mais ancestral de todas as narrativas.

Encontramos também essa vontade de não perder o norte das histórias na mais surpreendente e contagiante descoberta do concurso. Quand je serai dictateur, segunda longa da belga Yaël André (Culturgest, quinta 1, 18h, e Campo Pequeno, sexta 2, 21h30), é uma celebração lúdica e engenhosa do poder da imaginação, um filme que quase parece feito por um menino-prodígio de olhar arregalado e invenção inesgotável. Irresistível, acessível, entusiasmante, Quand je serai dictateur é também um filme de experimentação formal assumida, construído inteiramente a partir de imagens super-8 descartadas ou esquecidas, velhos filmes de família que a realizadora montou com um virtuosismo ofensivo ao ritmo de uma viagem por múltiplos universos paralelos. O ponto de partida é a voz-off reguila de uma narradora que recorda um amigo de infância desaparecido, e que se diverte (e nos diverte) a imaginar as muitas vidas que poderiam ter tido em universos paralelos, se tudo tivesse corrido de modo diferente, sem nunca perder o gosto da aventura que caracteriza a adolescência.

Adolescência que é um tema permanente no IndieLisboa, e Quand je serai dictateur não é o único filme a fazer dele a sua força. Les Apaches, estreia na realização do francês Thierry de Peretti (Culturgest, quarta 30, e Campo Pequeno, sexta 2, sempre 19h), começa por evocar os clássicos do policial; é uma variação sobre a história do gangue inexperiente que “mete a pata na poça” e se vê de súbito na mira dos “tubarões”.

Só que este policial passa-se ao sol escaldante do verão na Córsega, alimenta-se das tensões raciais entre os locais e os emigrantes árabes, e o gangue inexperiente é composto de putos adolescentes a brincarem aos criminosos. Esta ficção inspirada por um caso real, que se alimenta da própria identificação com os seus actores (todos não profissionais locais), funciona como uma rosca que se vai apertando cada vez mais, sem saída possível, e contrapõe à sua solidez dramatúrgica uma atmosfera claustrofóbica de cerco que se aperta.