Caetano Veloso: "Parece que não abandono o espírito tropicalista de deslocar palavras, imagens e ideias dos seus contextos"
Abraçaço, o muito elogiado disco de Caetano Veloso, chega ao Coliseu de Lisboa. Esta segunda-feira, às 21h30. Numa entrevista por email, o cantor explica-o e explica-se.
Mais de um ano após o seu lançamento, em Dezembro de 2012, Abraçaço chega aos palcos portugueses e às lojas, num DVD gravado ao vivo em Agosto de 2013, no Rio de Janeiro (ed. Universal). Com Caetano Veloso, no Coliseu de Lisboa (hoje, às 21h30) estarão os três músicos da Banda Cê: Pedro Sá, guitarra e vozes; Ricardo Dias Gomes, baixo, piano Rhodes e vozes; e Marcello Calado, bateria e vozes. A 5 de Junho, o espectáculo será apresentado também no Porto, no âmbito do Optimus Primavera Sound 2014, depois de duas noites no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada (Açores), a 2 e 3 de Junho.
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Mais de um ano após o seu lançamento, em Dezembro de 2012, Abraçaço chega aos palcos portugueses e às lojas, num DVD gravado ao vivo em Agosto de 2013, no Rio de Janeiro (ed. Universal). Com Caetano Veloso, no Coliseu de Lisboa (hoje, às 21h30) estarão os três músicos da Banda Cê: Pedro Sá, guitarra e vozes; Ricardo Dias Gomes, baixo, piano Rhodes e vozes; e Marcello Calado, bateria e vozes. A 5 de Junho, o espectáculo será apresentado também no Porto, no âmbito do Optimus Primavera Sound 2014, depois de duas noites no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada (Açores), a 2 e 3 de Junho.
Muita gente, no Brasil e fora dele, tem apontado Abraçaço como obra-prima e disco genial. Mas você, ainda há menos de um mês, escreveu no seu site: "foi um disco que me surpreendeu e intrigou". De que forma descreveria essa surpresa e essa intriga?
A surpresa se deve justamente ao entusiasmo que muitos demonstraram com o disco. Mesmo as plateias brasileiras tiveram reacção diferente da demonstrada diante de Cê e de Zii e Zie: em todas as cidades brasileiras, as pessoas cantam as canções novas como se fossem conhecidas de longa data. Viajei para a Argentina e Uruguai (e agora vou à Europa e aos Estados Unidos), sem saber como as plateias iriam aguentar, sem cair no tédio, essas canções novas e sem definição muito alta aos meus olhos (ou ouvidos). Mas os públicos argentino e uruguaio reagiram como que maravilhados. Muitos críticos destacaram Abraçaço como excelente. Como, para mim, Cê foi mais satisfatório artisticamente, intriga-me que seja assim. Atribuo ao amadurecimento da banda e ao total relaxamento e à despretensão com que Abraçaço foi feito. Mas ainda resta mistério.
A sua ligação criativa à Banda Cê atingiu o auge neste disco, confirmando-se claramente no registo ao vivo. Apercebeu-se disso durante as gravações no estúdio?
Como disse, percebi que o som tinha amadurecido e que estávamos muito relaxados. Mas não dava para ter uma sensação de "auge". Isso me fascina.
Em O Império da Lei, sobre o assassinato de Dorothy Mae Stang, e Um Comunista, sobre Marighella, você fala de coisas tão sensíveis quanto a utopia e a justiça. O que o impeliu a abordar estes dois temas no disco?
Acho que são duas canções com textos demasiado explícitos – e um tanto desequilibrados. A Base de Guantánamo também tem texto explicativo, porém é mais coesa e com palavras pelas quais respondo em estado de prosaísmo total. Já as duas de Abraçaço estão cheias de camadas de naturezas diferentes. As duas só se salvam pela captação poética, de que elas próprias fingem prescindir, com suas frases meio didácticas. Comove-me ouvir plateias cantando o refrão de Um Comunista e a segunda parte de O Império da Lei. Mas são canções um tanto paródicas, sobretudo Um Comunista. Acho que há um certo abuso de liberdade na composição dessas canções. Respondendo ao centro da sua pergunta, fiz Um Comunista porque senti que chegara o tempo de falar em Marighella, por cuja dissidência do Partido Comunista Brasileiro para encetar a luta armada me atraiu em 1968: eu tinha sido preso e estava exilado quando uma revista de grande circulação pôs uma foto de Gil ao meu lado, em Londres, sorrindo, na capa, a qual era encimada pela fotografia de Marighella morto. Ele foi emboscado e morto na rua, em São Paulo. Escrevi, então, um texto para o jornal O Pasquim em que dizia que Gil e eu estávamos mortos e que "ele está mais vivo do que nós". Ninguém entendeu o que eu queria dizer, embora eu, no texto, me referisse explicitamente à capa da revista. A principal razão para isso é que a luta armada não tinha nenhum apoio da população em geral – e isso chegava até meus amigos cineastas, escritores e cantores que viviam no Brasil. Marighella era algo que os comunistas organizados do partido não aprovavam – e o povo ignorava solenemente. Jorge Amado, no entanto, morreu dizendo que a Bahia devia erguer um monumento a Marighella. Escrevi a canção pensando em Jorge, lembrando o episódio da capa da revista, meditando sobre eu ter combinado com uma amiga ligada à luta armada a dar apoio logístico (coisa de que quem me prendeu nem fazia ideia). Na mesma época, isto é, no ano passado, foi publicado um livro e foi lançado um filme sobre Marighella. Era o tempo de o Brasil voltar a falar sobre ele. Quanto a O Império da Lei, nasceu de eu ter visto um filme brasileiro chamado Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. A história passa-se no Pará e há assassinatos anunciados, como aconteceu com Chico Mendes e com a freira Dorothy Stang. Usei essa expressão "império da lei", tão repetida na lista de características das democracias liberais do Ocidente, o que é meio estranho. Parece que não abandono o espírito tropicalista de deslocar palavras, imagens e ideias dos seus contextos.
O jogo de palavras em A Bossa Nova É Foda é um desafio, mesmo para os conhecedores da música do Brasil. Ao lê-la, primeiro, e ouvi-la, depois, pressente-se que esta canção lhe deu um enorme prazer compor. Foi a sua “vingança” contra a ignorância?
É mesmo verdade que escrever A Bossa Nova É Foda me deu um imenso prazer. É a canção de que mais gosto em todo o disco. As palavras aparecem como numa charada. Quem conhece música, percebe logo que "o bruxo de Juazeiro" é João Gilberto (o que remete a Machado de Assis, conhecido como "o bruxo do Cosme Velho"). Mas quase ninguém reconheceu Carlos Lyra debaixo das palavras "o Magno instrumento grego antigo" – que parece um conceito para se adivinhar num jogo de palavras cruzadas. É muito abuso, mas nesse caso é legítimo que seja assim: o tema e o tratamento já liberam a mente pra qualquer maluquice, o que não é o caso com O Império da Lei ou Um Comunista. E a banda faz tudo se ligar ao Cê. Aliás, essa canção foi a única do Abraçaço que levei aos elementos da banda com o esboço do arranjo todo estruturado, como fiz com as canções do Cê. A menção aos lutadores de MMA é complementação da homenagem a João, que gosta dessas lutas – e da presença cultural brasileira, inventiva e misturadora, que está na bossa nova e no nascedouro do UFC.
O reencontro com o tropicalista Rogério Duarte em Gayana é um outro marco digno de registo neste trabalho. O que proporcionou essa parceria?
Rogério me enviou a canção por email. Era um vídeo, e a figura dele, de barba longa, com um tapa-olho, cantando e tocando violão, apaixonou os músicos da banda e os técnicos do estúdio, além de Moreno, o produtor, que é afilhado de Rogério. É uma canção única. Muito directa e ao mesmo tempo misteriosa. Rogério é sempre uma referência importante para mim. Tem sido assim ao longo de todos esses anos. Antes ele só tocava violão clássico. Agora, de repente, começou a compor canções. Essa me encantou.
Estou Triste é uma belíssima canção sendo, ao mesmo tempo, tristíssima. Ouvindo-a várias vezes, damo-nos conta de que ela altera o ambiente da sala de audições, como se ali nos fosse imposto, pela letra e pela música, um estranho arrepio. O que o levou a escrever uma canção assim?
Eu estava muito triste.
Na passagem a palco de Abraçaço, você revisitou discos da sua carreira como Transa, Jóia, Bicho, Uns e, naturalmente, Cê, além de canções suas gravadas por Gal e Bethânia, como Mãe e Reconvexo. E parece haver uma opção por canções com maior ligação temática à Bahia. Foi intencional?
Não tive intenção de me referir à Bahia. Não mais do que sempre. Escolhi as canções por sua adequação ao novo repertório. Quis cantar Triste Bahia porque, das canções de Transa, é a única toda composta em português e também, dentre as conhecidas, a que eu não tinha cantado nos shows referentes a Cê e a Zii e Zie. Reconvexo, quis cantar porque minha mãe tinha morrido e eu queria estar como que cantando com Bethânia o nome dela. A Bahia terminaria por aparecer.
Na rodagem pelos palcos, tem havido alterações ao roteiro que ficou registado no DVD? Em Portugal, por exemplo, conta fazer modificações no alinhamento?
Não planeei mudanças. Nas apresentações mais recentes, aqui, no Brasil, retirei Mãe, porque, embora me parecesse sempre bela, me trazia sofrimento cantá-la. Para a Europa, ainda não sei se vou mudar mais alguma coisa. Sempre há mudanças. Mas a estrutura do show será a mesma que se pode ver no DVD.
O seu próximo disco será gravado com a Banda Cê, como os três anteriores, ou tem outro projecto em mente? Já tem alguma ideia para esse disco? Ou só começará a trabalhar nele quando Abraçaço sair dos palcos?
Só começarei a trabalhar nisso quando Abraçaço sair dos palcos. A não ser que, de hotel em hotel, na Europa, eu venha a ser tomado por alguma ideia irresistível. Espero que não, pois preciso descansar entre os shows e os voos.