O barco desejado foi “ao fundo” num mar de consenso político

O Atlântida foi mais bandeira eleitoral do que um negócio entre armador e estaleiros. O novo concurso que a Região Autónoma dos Açores abriu para o sucessor do navio polémico volta a tropeçar num calendário eleitoral.

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Paulo Ricca/Arquivo

“Os governos [da República e da Região Autónoma] não se entenderam, foi uma pena que a situação política nos Açores não permitisse tal entendimento, pois havia uma comissão de inquérito no Parlamento regional”, lamentou em 1 de Abril aos deputados da Assembleia da República o antigo ministro da Defesa Nacional, Augusto Santos Silva.

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“Os governos [da República e da Região Autónoma] não se entenderam, foi uma pena que a situação política nos Açores não permitisse tal entendimento, pois havia uma comissão de inquérito no Parlamento regional”, lamentou em 1 de Abril aos deputados da Assembleia da República o antigo ministro da Defesa Nacional, Augusto Santos Silva.

Nos Açores, a condenação do navio foi também maioritária.  A comissão parlamentar de inquérito, em relatório aprovado em 7 de Julho de 2010, com a oposição do PSD, foi peremptória: considerou a inexistência de responsabilidades políticas que levaram à revogação, em 23 de Dezembro de 2009, dos contratos entre o armador açoriano, a holding pública Atlânticoline, e o construtor, os ENVC [Estaleiros Navais de Viana do Castelo].

No entanto, o PSD/Açores não poupou reparos ao navio. A líder regional Berta Cabral, actual secretária de Estado da Defesa Nacional, sempre criticou o processo do Atlântida. “Se o PSD fosse governo rescindia de imediato o contrato com os estaleiros relativamente à construção do navio Atlântida. O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Se estamos perante ‘uma espécie de navio’ mais vale cortar o mal pela raiz e começar de novo, de forma segura e transparente”, afirmou em 26 de Março de 2009.

Em Abril de 2012, a seis meses das eleições regionais, Berta Cabral voltou a referir-se à questão: “É preciso ter muito descaramento para justificar que erros crassos na construção do Atlântida se devem à ânsia de recuperar o tempo perdido na governação do PSD.”

A mera possibilidade de uma negociação que garantisse a viabilidade do navio à margem do âmbito institucional e fruto de bons ofícios políticos por os executivos da República e da Região Autónima serem, então, ambos do PS, foi liminarmente recusada por Santos Silva em São Bento: “Não me poderia ir entender por debaixo da mesa por sermos camaradas ou companheiros, por eu estar na direcção do PDS e também Carlos César.”

O antigo presidente regional, num breve comentário ao PÚBLICO, afinou pelo mesmo diapasão: “Este foi um assunto entre duas empresas e não entre dois governos, embora se tratassem de empresas públicas e, só nessa medida, há uma responsabilidade dos governos porque as tutelam”. Mas reconhece a transcendência do caso Atlântida na região: “Nos Açores teve um grande alarde político pois recuperava o transporte marítimo de passageiros entre o Faial e o Pico”.

Aliás, a empresa pública açoriana procurava com esta operação assinalar uma mudança histórica. “O transporte marítimo de passageiros inter-ilhas na Região Autónoma dos Açores esteve suspenso durante 30 anos, só se retomando o transporte marítimo de passageiros muito recentemente”, dizia o conselho de administração da Atllânticoline à secção dos Açores do Tribunal de Contas, em auditoria de 19 de Março de 2009.

Carlos César recusa que o fim do contrato com a Atlânticoline tenha sido a “machadada final” nos estaleiros de Viana: “Não nos deixamos responsabilizar pelo que aconteceu, tenho uma opinião pessoal de quem por acção ou omissão é responsável mas não a digo, nós tratamos aqui da nossa vida como nos compete.” Um argumento idêntico ao do ex-ministro socialista da Defesa: “ Não houve caixão fechado [nos ENVC ] em 2009, são desculpas de mau pagador.” Também em Ponta Delgada os reparos são recebidas com incredulidade. Toda a gente critica a Região Autónoma dos Açores por não ter aceitado um navio defeituoso, e ninguém questiona porque foi feito um navio defeituoso, é o comentário crítico.

“Os estaleiros cometeram um erro crasso na questão da velocidade”, assumiu Santos Silva, na comissão de inquérito Assembleia da República aos estaleiros, referindo-se ao incumprimento de 19 nós de velocidade prevista no contrato. “Nós, o Estado português e a empresa, falhámos”, sintetizou.

Estas declarações tiveram a contundência de conclusão definitiva. À margem das múltiplas alterações técnicas ao projecto que levaram ao aumento do peso do Atlântida com consequências na estabilidade e velocidade do navio. Sem consideração, ainda, de pareceres jurídicos de Novembro de 2009, encomendados pela administração dos ENVC a António Pinto Monteiro e António Menezes Cordeiro, catedráticos de Direito. Ambos consideraram “abusiva” a devolução do ferry. “A resolução (fim do contrato) foi precipitada, tendo provocado danos”, sustenta o parecer de Menezes Cordeiro.

A opinião do antigo ministro também faz omissão da auditoria conjunta da Inspecção Geral de Finanças e da Inspecção Geral de Defesa Nacional de 13 de Julho de 2009: “Cremos que a responsabilidade pelo não cumprimento do contrato, verificado pela diferença entre a velocidade contratada e a apurada nas provas de mar, não poderá ser imputada exclusivamente à ENVC”.

Do mesmo modo, não foram consideradas outras soluções. Da venda com desconto do barco proposta pela inspecção conjunta, ao regime de comodato sugerido pelos estaleiros, ou seja a cessão do gozo do Atlântida ao armador durante um período de tempo. O PÚBLICO sabe que este regime de comodato não foi considerado pelo governo regional por uma questão de princípio. Em causa não estava a que título a região autónoma utilizava o navio, mas se o Atlântida tinha condições de utilização. Isto apesar do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM) ter comunicado aos inspectores estar “em condições de emitir os correspondentes certificados de navegabilidade”.

A redução do preço do navio foi a medida defendida pela auditoria conjunta das Finanças e da Defesa, através de um acordo extra-judicial, por entender que o cancelamento do contrato tinha “custos para o interesse público muito superiores ao incumprimento por um nó na velocidade do navio”.

O fim do contrato entre o armador e os estaleiros, duas empresas públicas, que implicou a devolução à Atlânticoline dos 40 milhões de euros que já avançara foi antecedido de um despacho conjunto dos ministros das Finanças e da Defesa, respectivamente Teixeira dos Santos e Augusto Santos Silva, autorizando à Empordef, a holding das indústrias da Defesa com a tutela dos ENVC, o endividamento em 37 milhões de euros. Foi em 12 de Agosto de 2009, um mês e duas semanas antes das legislativas de 27 de Setembro que deram uma maioria relativa ao PS e levaram à formação do último executivo de José Sócrates.

Contudo, a função do navio não era supérflua. De tal modo, que nos planos do executivo de Ponta Delgada existia a meta de 2015 para as ligações, de passageiros e viaturas, entre as ilhas do arquipélago.

Definida como um dos 14 grandes projectos, a aquisição de dois ferries para operação inter-ilhas esteve prevista para o próximo ano de 2015. “O indicador ‘Navios de transporte de passageiros adquiridos” que estabelece uma meta de duas unidades para 2010, poderá vir a ser objecto de revisão por via da desistência da candidatura em que assentava a previsão, mantendo-se no entanto inalterada a meta para 2015”, consta do relatório de 2009 de execução do Proconvergência, o programa da responsabilidade da Região Autónoma.

O relatório é claro: “O Governo Regional pretende, contudo, manter a estratégia definida para o transporte marítimo inter-ilhas, intenção que se deverá traduzir no lançamento de um novo concurso público internacional para o fornecimento do navio de transporte de passageiros e viaturas entre as ilhas do Arquipélago dos Açores”.

Esta intenção teve continuidade na resolução de 8 de Novembro de 2010 do executivo regional, ainda presidido por Carlos César, que aprovou mais um processo para a construção de dois navios monocasco para transporte de passageiros e viaturas “que se realiza todo o ano nas ilhas do Triângulo (Faial, Pico e São Jorge)”. A operacionalidade das ligações marítimas admitidas para 2015, um ano antes do cumprimento da actual legislatura regional, deixou de ser possível.

Em 21 de Fevereiro passado, a Atlânticoline lançou mais um concurso internacional para a concepção e construção de dois navios. Nos planos da empresa, os navios entrarão em actividade no final de 2016, por altura do fim da presente legislatura regional, e deverão ser também candidatos ao programa europeu sucessor do Proconvergência. O calendário ora escolhido não deverá permitir que os navios cheguem a tempo da operação sazonal daquele ano, que começa entre Abril e Maio.

O tempo político, ou seja, os calendários eleitorais, não foram acessórios no caso Atlântida. O contrato de 8 de Setembro de 2006 da Atlânticoline com os ENVC estipulou um prazo de 565 dias para a entrega dos dois navios, ou seja, 8 de Abril de 2008. As eleições regionais estavam marcadas para 19 de Outubro daquele ano e, após os aditamentos, a meta para o Atlântida passou a ser 30 de Setembro de 2008, pouco mais de duas semanas antes da ida às urnas.

Uma data não cumprida. E, por isso, o Atlântida passou de meio de transporte vital a arma de arremesso político. Um ferry encomendado com critérios de urgência por reatar as ligações marítimas no Arquipélago, foi joguete numa agenda de ciclos políticos e calendários eleitorais. Acabou por se tornar num incómodo.

Com Tolentino da Nóbrega