A censura ainda funcionou no dia 25 de Abril na Madeira
Antigo governador militar tentou impedir a realização da primeira manifestação de apoio à Revolução dos Cravos e contra a presença de Américo Thomaz e Marcelo Caetano na ilha. À Madeira, Abril chegou em Maio.
“Tive de levar os textos do CF à censura no dia 25 de Abril”, revelou ao PÚBLICO Vicente Jorge Silva, responsável editorial pelo semanário madeirense conhecido por “jornal cor-de-rosa”, a cor do inconfundível papel em que era impresso.
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“Tive de levar os textos do CF à censura no dia 25 de Abril”, revelou ao PÚBLICO Vicente Jorge Silva, responsável editorial pelo semanário madeirense conhecido por “jornal cor-de-rosa”, a cor do inconfundível papel em que era impresso.
“Nos dias que imediatamente se seguiram à queda da ditadura, viveu-se na Madeira um tempo de confusão verdadeiramente surreal, em que as autoridades locais fingiam comportar-se como se nada se tivesse passado, apesar de Américo Thomaz e Marcelo Caetano terem sido enviados sob prisão para o Funchal”, recorda o jornalista Vicente Jorge Silva.
Alguns agentes da PIDE/DGS apareciam nos cafés do centro da cidade, alegando em voz alta, para serem ouvidos nas mesas vizinhas do Apolo ou do Golden Gate, que nunca fizeram mal a ninguém. As instalações daquela polícia secreta continuam imperturbáveis, tal como as da Legião, à porta das quais se mantinham os respectivos membros. O brigadeiro Lopes da Eira continuava como governador militar, ignorando as directivas da Junta de Salvação Nacional. Na comissão de censura, o “lápis azul” do tenente-coronel Eleutério Valeriano Melim e do capitão Caetano José Soares continuava bem afiado para riscar, sobretudo, os textos do Comércio do Funchal, como se a liberdade de expressão já não tivesse sido restituída aos portugueses.
Antes da revolução, “eu chegava a passar horas a fio a discutir com o censor que estava ali para cortar e proibir textos do jornal. Mesmo assim era possível dialogar com ele, eventualmente persuadi-lo e convencê-lo a mudar uma decisão em que parecia irredutível”, acrescenta o ex-director do CF. “Hoje imagino que nada disso seria possível se a censura aos jornais fosse exercida por um apaniguado de Alberto João Jardim”, acrescenta.
A censura, o instrumento mais torturante dos jornalistas portugueses no antigo regime, impediu o CF de abordar abertamente os problemas da Madeira, obrigando a contornar as questões de fundo ou a escrever de forma indirecta e sem apontar frontalmente os responsáveis administrativos locais. Por exemplo, numa reportagem sobre a empresa Electrónica, escrito para a edição de 4 de Abril de 1974, foram suprimidas as partes relativas às péssimas condições de trabalho das operárias. O “lápis azul” suprimiu, entre tantas queixas das operárias, que “a fábrica não tem médico” e que “se não fizéssemos horas extraordinárias não pagas, quando aumentavam as exportações, eles mandavam-nos para casa”.
Nalguns casos, os originais foram “cortados” em mais de 75%, afectando ou deturpando as partes publicadas fora do seu contexto, correndo o jornal o risco de suspensão se pretendesse emitir qualquer justificação do corte. Integralmente cortado pela censura foi o artigo escrito em Setembro de 1973, aquando da inauguração do novo hospital, pelo almirante Américo Thomaz, na sua última visita à Madeira antes do exílio. Apesar de “extremamente moderado” para escapar ao “exame prévio”, os leitores não chegaram a ler o estudo sobre o panorama da saúde pública na Madeira, com a elevada taxa de mortalidade infantil (70 por mil nascidas, quando a taxa nacional era de 49,7) e a falta de médicos (43 por cem mil habitantes, com a média nacional de 95). O último artigo do CF proibido pela censura, precisamente na semana do 25 de Abril, tinha por título “A ITT e a indústria de matéria eléctrica em Portugal”, versando a dura realidade da fábrica de Cascais.
Apesar desses cortes, parciais ou totais, Vicente Jorge Silva reconhece que as contradições da época, o isolamento e a quietude social e política da Madeira “permitiram que o Comércio do Funchal tivesse beneficiado de um ambiente menos hostil à sua difusão local e ao seu crescimento posterior no Continente e, até, entre núcleos de destacados nas colónias que assinavam o jornal”.
Se, por exemplo, não fosse possível o contacto directo e pessoal com o censor – ao contrário do que acontecia em Lisboa, onde isso não podia acontecer, pois os censores eram muitos e anónimos –, “teria sido inviável aquele trabalho de persuasão que eu pessoalmente fazia para impedir que alguns textos fossem cortados ou proibidos”, conta. No entanto, o ex-director fundador do PÚBLICO ressalva que “essas boas graças não foram eternas e, a partir de uma edição sobre o Maio de 68 em França, arrancada quase a ferros ao censor local da época, veio uma ordem do poder central para o CF ser censurado em Lisboa”.
“Desobedecemos a essa ordem, o que equivaleria a suspender a publicação do jornal, mas sabíamos que se nos tivéssemos submetido teríamos criado um precedente irremediável e para sempre”, diz. Os responsáveis pelo CF intercederam então junto dos deputados madeirenses na Assembleia Nacional e, contra a medida “claramente discriminatória", invocaram “precisamente o regime de autonomia, embora puramente formal, atribuído às chamadas ilhas adjacentes”.
Só que foi preciso Salazar cair da cadeira e Marcelo Caetano tomar o seu lugar, dando início à ilusória primavera política, para que aquela pressão junto dos deputados obtivesse um resultado prático. Foi a partir dessa altura, conta o jornalista, que o Comércio do Funchal, “já lido por um público fiel fora da Madeira, entrou em força no Continente, chegando a vender 15 mil exemplares, o que era, então, de longe, a maior difusão da imprensa madeirense”, com uma tiragem que hoje não é superada pelo Diário de Noticias ou pelo Jornal da Madeira.
Preparar o 1º de Maio
Foi na redacção do
CF, à Rua do Carmo, que, entre apreensões e receios, os jovens libertários do jornal cor-de-rosa e de movimentos católicos progressistas prepararam para 1 de Maio a primeira manifestação de apoio à revolução e de protesto contra a presença dos cônsules da ditadura, deportados para a ilha no dia imediato ao do golpe triunfado. Apreensões por verem ainda em funções o antigo governador militar, brigadeiro Lopes da Eira, “empenhado em que a transformação política que se registou no país não afecte a vida da Madeira”, como o próprio declarou numa conferência de imprensa, a 29 de Abril. E receios porque, passados alguns dias sobre o golpe militar, os agentes da PIDE passeavam calmamente, alguns deles armados, pelas ruas do Funchal.
“O governador militar tentou proibir a manifestação”, revela Vicente Jorge Silva. Sem cedências, os promotores do que constituiria uma das maiores expressões de mobilização popular que a Madeira jamais conheceu, fizeram chegar ao comando operacional do MFA, na Cova da Moura, informações sobre o ambiente local, as quais viriam a resultar no afastamento do governador militar, passado à reserva, e na desactivação dos pides com a tomada das instalações na polícia política à Rua da Carreira.
Até então, nada acontecera no Funchal que marcasse, de imediato, uma transformação condizente com o derrube do regime ditatorial. Silenciosamente, certas personalidades ofereciam uma relutante resistência ao desenrolar dos acontecimentos. Os emissores regionais da Emissora Nacional e da RTP haviam passado todo o dia 25 silenciosos, sem fazer referência ao movimento militar e sem transmitir os noticiários nacionais Só a partir do dia 27 se rendem aos factos, depois de os dois matutinos funchalenses noticiarem o golpe como se se tratasse de um outro em Chipre ou no Egipto.
Na prática, o 25 de Abril chegou à Madeira a 1 de Maio, com a adesão popular ao movimento militar, apoio de que os representantes locais do MFA precisavam para concretizar as necessárias mudanças. “Não somos caixote de lixo” e “Fascismo nunca mais”, gritou a multidão em frente do Palácio de São Lourenço, residência dos governadores onde ficaram alojados Américo Thomaz e Marcello Caetano (com os ministros também depostos Moreira Baptista e Silva Cunha), até partirem, na madrugada de 20 de Maio, no barco Pirata Azul, para a ilha do Porto Santo, de onde seguiram, num Boeing da TAP, para o exílio no Brasil.
Carta ao governador denunciou atraso da Madeira
Uma carta enviada por várias personalidades ao governador da Madeira, a 22 de Abril de 1969, constitui a mais significativa ofensiva regional contra a ditadura de velho e caduco Estado Novo, que persistia teimosamente na sua eternização, através do programa marcelista da “renovação na continuidade”, relegando o arquipélago para o seu ancestral atraso social, político, económico e cultural.
A carta desafiava o governador a um diálogo “franco e leal” sobre a toda a essa problemática da região. Por um lado, “o problema nacional das liberdades democráticas, sem as quais considerávamos que o próprio desenvolvimento era impossível”. Por outro, “o problema regional (e afinal também nacional) da autonomia, sem cuja resolução qualquer projecto de desenvolvimento seria vazio”, recorda o historiador António Loja, um dos principais subscritores do documento.
Já então, “o problema da ligação necessária entre democracia e a autonomia estava claramente definido como essencial, tal como continua a estar nos nossos dias. Enquanto sentirmos que a democracia é imperfeita, a autonomia será insatisfatória, porque pode transportar dentro de si os germes de perigosos poderes pessoais”, frisa Loja. “Enquanto subsistir a ideia de que a autonomia não é eficaz, fica a certeza de que a democracia é inoperante e, deste modo, existe sempre o risco de ser posta em causa”, alerta.
Na génese e elaboração do documento entregue a Braamcamp Sobral, o último governador do anterior regime, foi decisiva a intervenção de dois núcleos de acção cívica e politica que se centravam no “grupo do Pombal”, ideologicamente católico progressista, e no jornal Comércio do Funchal, recorda Loja.
Entre os signatários da carta encontravam-se os jornalistas Vicente Jorge Silva, José Manuel Barroso e Helena Marques, os advogados Fernando Rebelo, Sales Caldeira e Rui Nepomuceno, o cartoonista Paulo Sá Brás, os ex-padres Cruz Nunes, Rufino Silva e António Ramos, o músico Artur Andrade e a professora Natália Pais, na maioria ligados à candidatura democrática que enfrentou a União Nacional nas eleições de 1969.