Os censores perdem sempre
A Austrália, que vive em democracia há mais de cem anos, ainda tem um livro proibido oficialmente. Já teve centenas, sobretudo entre os anos 1950 e 1970. Sobrou um. O que resta é o Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, publicado em 1991. Em toda a Austrália o livro só pode ser vendido selado e a maiores de 18 anos. Mas no estado de Queensland, que tem quatro milhões de habitantes, não pode mesmo ser vendido. Como em relação às bebidas alcoólicas nos dry counties norte-americanos, quem quiser o livro tem de atravessar a “fronteira” ou comprá-lo clandestinamente. Tento imaginar becos escuros em Brisbane, mas as imagens são tão feias que desisto.
Agora que no mundo democrático já são raros os casos de censura de livros políticos — e há alguns, desde logo o Mein Kampf, de Adolf Hitler — é particularmente impressionante a censura feita com base no politicamente correcto. É assim desde a Grécia Antiga. Perguntem a Aristófanes, que 2000 anos depois de ter escrito Lisístrata ainda era censurado na sua própria Grécia, entretanto moderna.
Nos Estados Unidos esta é uma batalha diária. Com o seu colete anti-censura vestido, a American Library Association — a mais antiga e maior associação de bibliotecas do mundo, fundada no século XIX — publica todos os anos a lista dos livros que alguém, em território americano, tentou censurar. Chamam-lhe os challenged books. Lá está o Capitão Cuecas, um livro infantil e um clássico desta lista. Desde 2000 que é retirado de escolas porque as crianças podem começar a repetir os comportamentos rebeldes do personagem. Lá está de novo Toni Morrisson, Pulitzer e Nobel da Literatura. Como se dizia antes do 25 de Abril, os seus livros são “tão realistas” que se tornam “pornográficos”. Hoje, como ontem, tudo incomada os censores. Ler estas listas é tão extraordinário como ler os relatórios da Direcção dos Serviços de Censura do Estado Novo português. A primeira sensação é a de que mergulhamos num mundo estranho. A segunda é a de que afinal nada mudou na humanidade — nem os adjectivos para censurar. Em 1969, o capitão Pereira de Mello aconselha no seu relatório oficial a proibição do livro Escritos Políticos, de Mário Soares, argumentando que era “inconveniente” e “inoportuníssimo”. Nos EUA, as Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, tiveram de ir a tribunal já nos anos 1990 para continuarem a ler lidas nas escolas de Phoenix. A linguagem é “inconveniente”. Nos últimos 30 anos, houve quase sempre casos destes em tribunal. Como os EUA são uma democracia, os censores perderam sempre.