25 de Abril: a "playlist" de Paulo de Carvalho 40 anos depois
Se o 25 de Abril fosse hoje, que músicas sairiam à rua? A "playlist" de Paulo de Carvalho foi o ponto de partida para uma conversa sobre o país — musical e não só — 40 anos depois
Hoje, como há quarenta anos, “a cantiga é uma arma”. Hoje, como há quarenta anos, há barreiras a quebrar para que a música se faça ouvir. Quem o diz é Paulo de Carvalho, cantor da música que serviu de primeira senha para a revolução de 1974, que aceitou o desafio do P3 para compor uma "playlist" de música de intervenção dos dias de hoje e falar sobre o país musical (e não só), 40 anos depois do 25 de Abril.
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Hoje, como há quarenta anos, “a cantiga é uma arma”. Hoje, como há quarenta anos, há barreiras a quebrar para que a música se faça ouvir. Quem o diz é Paulo de Carvalho, cantor da música que serviu de primeira senha para a revolução de 1974, que aceitou o desafio do P3 para compor uma "playlist" de música de intervenção dos dias de hoje e falar sobre o país musical (e não só), 40 anos depois do 25 de Abril.
Recuámos quase meio século no calendário. Paulo de Carvalho estava no início de carreira. Era “um puto ingénuo”, fazia a música pela música e sabia pouco de política. Diferente da geração de hoje, que “leva 40 e tal anos de avanço” e tem tudo aí – “para se ouvir e para se saber”.
O Portugal democrático mudou a forma como fazemos música? “Fundamentalmente, diria que fazemos muito boa música actualmente, como fazíamos antes. Mas o problema principal subsiste e é o meu enquanto músico: a dificuldade em divulgar o trabalho”, respondeu ao P3, numa entrevista telefónica.
Para essa dificuldade, o cantor — que completou recentemente 52 anos de carreira — tem uma explicação: “Há novas formas de censura, por parte das rádios principalmente, mas também das televisões e dos jornais.” E a meritocracia? “Isso já acabou há muito tempo”. “A importância que nos é dada tem a ver com frequentar ou não os meios que fazem a divulgação [da música].”
O apontamento, “talvez pessimista”, de Paulo de Carvalho não é um baixar de braços, salienta: “Acredito em novas formas, que todos temos, de descobrir e de divulgar o nosso trabalho. Acredito que, como dizia e diz o José Mário Branco, a cantiga é uma arma. Penso que tão forte como era dantes, assim as pessoas tenham conhecimento da sua existência, cantiga por cantiga.”
Música que transborda liberdade
E no Portugal democrático não falta música “corajosa”, a transbordar liberdade nas letras e a denunciar o que nos aprisiona: o desemprego, a precariedade, a ausência de futuro.
O desafio do P3 foi esse mesmo: compor uma "playlist" para uma “revolução moderna” (a expressão é nossa). Que músicas (e que músicos) fazem actualmente cantigas de intervenção? Se o 25 de Abril fosse hoje, que sons sairiam à rua?
"Parva Que Sou", dos Deolinda; "Sexta-feira", dos Boss AC; "A Gente Dura", Rita Dias; "Exporto Tristeza", dos Virgem Suta; e o álbum "Rapressão", de Chullage. A selecção de Paulo de Carvalho (em vídeo, à esquerda) foi mais complicada de completar do que imaginava: “Conheci muita gente que não conhecia; e não se pode dizer que seja alguém que não se interessa pelo que se faz. O problema é que vivemos numa época de excesso de comunicação e acabamos por andar desinformados”, avaliou.
O que mais o impressionou nos cinco seleccionados, disse Paulo de Carvalho, foram as letras: “Os nossos interesses enquanto miúdos não eram tão fortes como os interesses e o conhecimento dos miúdos de hoje.” Já as sonoridades, não desta selecção mas de outras criações com as quais se cruzou, pareceram-lhe, muitas vezes, “perfeitamente primárias”: “Podiam ser, em alguns casos, dos Sheik, que ajudei a formar nos anos 60.”
Há 40 anos...
Às 22h55 do dia 24 de Abril de 1974, quando a música "E Depois de Adeus" foi transmitida pelos Emissores Associados para avisar subtilmente as tropas que deveriam estar a postos, Paulo de Carvalho estava longe de imaginar o que se passava.
“Estava à porta de um café que frequentei na minha juventude, um café com alguma importância intelectual e política, o Zazá, em Lisboa. Como o carro do amigo com quem estava não tinha telefonia, nós não sabíamos o que se estava a passar”, recordou.
Só quando acordou, à uma da tarde do dia seguinte, soube que uma revolução tinha acontecido no país e que a música que havia cantado no Festival da Canção tinha sido a primeira senha para que isso acontecesse.
A escolha foi uma surpresa. Afinal, estávamos a falar de uma música sem conteúdo político, escolhida exactamente “para não levantar suspeitas”. “É por isso que continuo a dizer que se estou na história é por acaso. O cantor de Abril é o Zeca Afonso”, sorriu.
... "a revolução principal ficou por fazer"
No Portugal de hoje — um país com uma “economia falida” e “cidadãos adormecidos” — falta ainda cumprir Abril, lamenta: “A revolução principal ficou por fazer, era a revolução das mentalidades.”
“É muito fácil culparmos sempre um Governo que lá está, seja ele qual for, quando uma maioria de nós o colocou lá. E colocam sempre os mesmos há 40 anos”, afirmou, aproveitando a oportunidade para falar para aqueles que o apontam como o “cantor do regime”: “Nunca votei em quem foi Governo, nunca tive um emprego, ando há 52 anos à procura de trabalho, não de emprego, e nunca tive um subsídio estatal.”
Liberdades à parte, Paulo de Carvalho acredita que fazer um 25 de Abril hoje seria mais difícil do que foi fazê-lo há 40 anos: “Estamos numa Europa com países mais ricos do que nós e com países que têm força suficiente para não nos deixarem ir acima ou abaixo”, justificou.
“O que me preocupa, principalmente, é que o poder — e o poder não é necessariamente o Governo — está cada vez mais a tirar-nos a capacidade de sonhar.”
Cerca de dois anos depois do lançamento do CD “Duetos de Lisboa”, o que anda a fazer Paulo de Carvalho em 2014? “O mesmo que sempre fiz, a tentar que a minha música seja ouvida. Enquanto não estiver a morrer de fome e tiver de ir trabalhar para outra coisa qualquer, hei-de continuar a fazer música.”