Abril e a escola pública: somos livres porque sabemos
Abril abriu caminho para que a educação deixasse de ser um privilégio da elite, democratizando-a
A conversa já cansa: assistimos diariamente a um discurso que valoriza a liberdade de expressão conquistada com Abril, mas que alerta que as utopias democráticas de igualdade e solidariedade na educação levaram à proliferação de mandriões e chico-espertos. Enfim...
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A conversa já cansa: assistimos diariamente a um discurso que valoriza a liberdade de expressão conquistada com Abril, mas que alerta que as utopias democráticas de igualdade e solidariedade na educação levaram à proliferação de mandriões e chico-espertos. Enfim...
Eu, tal como tu, não vivi o Abril que nos deu esta liberdade de dizer o que nos vai na alma. Bom, dirás que foi o Novembro, mais novo, que a deu; que o Abril foi totalitário. E eu, talvez enviesado pela educação que tive, direi que sem Abril não haveria Novembro, pelo que acabo por ter mais carinho pelo primeiro; adiante.
Apesar de ter sido mediaticamente associado à liberdade de expressão, Abril foi muito mais do que isso, e sempre que diminuímos as suas vitórias a essa, tudo o resto parecem banalidades. A liberdade é mais do que poder dizer; é saber ouvir. Quarenta anos é muito tempo, e importa assim reforçar que só é livre quem, em paz, vive, come, sente e sabe; uma vez mais, sabe.
Para isso, a escola pública é (e será sempre) muito importante. Mas os media inundam-nos com ilustres a relembrar-nos que no Portugal não democrático é que havia ensino de excelência. Eu não estive lá, mas desconfio; o ensino não era de excelência, era da elite. A excelência (termo incerto) que se observava, existia por selecção “contextual” das famílias, e não “natural” como advogam os mais liberais. A vida era assim; devíamos aceitá-la como a encontrávamos. Cada um é para o que nasce, dizia-se.
Mas foi exactamente por se aceitar que o seio familiar é diferenciador que foram necessárias políticas que permitissem equilibrar as oportunidades - um desígnio da república que Maio foi esquecendo durante quase 50 anos. Abril abriu caminho para que a educação deixasse de ser um privilégio da elite, democratizando-a. E desconfio que o nível de literacia alcançado não é sequer comparável, atingindo um patamar civilizacional completamente novo.
Então, que queixa é essa de falta de excelência? Ficou mais difícil ensinar e obter, em média, bons resultados? Possivelmente, uma vez que agora todos entram e contam, não apenas os que vão sobrando após aplicado o crivo certo. Mas o que importa é que o objectivo é todos contarem, e serem contados.
Agora, com o vício da “má escola pública”, alenta-se o direito a escolher a escola privada com um suposto reembolso de impostos que mais não será que um cheque de apoio ao retrocesso e ao agravamento das desigualdades. De facto, continua a existir o factor de confundimento familiar que faz com que nem todas as crianças tenham iguais apoios e oportunidades. Também aqui, ainda importa defender Abril.
Mas, felizmente, o povo sabe, hoje, muito mais do que sabia; e é, com isso, mais livre. Somos mais livres porque sabemos. Mais livres para tomarmos decisões possivelmente erradas, mas livres; porque sabemos.
Aceito que o caminho estaria já a ser traçado antes de Abril, com as reformas que sucessivamente foram sendo instituídas, até à de Veiga Simão que Abril parou. Mas não estranho sentir que, sem Abril, não tínhamos ido lá.