25 de Abril: como se vive uma revolução no Portugal profundo?
Dei-me ao trabalho de viajar até à aldeia dos meus avós para fazer a devida pergunta: como foi aqui o 25 de Abril de 1974?
Toda a gente conhece, tintim por tintim, o procedimento que libertou um país de uma ditadura que durava há demasiado tempo. O que pouca gente sabe é como é que o resto desse país, para além da sua capital, lidou com a chamada revolução. Por isso mesmo, dei-me ao trabalho de viajar até à aldeia dos meus avós para fazer a devida pergunta: como foi aqui o 25 de Abril de 1974? A resposta poderá surpreender alguns: foi um dia igual aos outros.
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Toda a gente conhece, tintim por tintim, o procedimento que libertou um país de uma ditadura que durava há demasiado tempo. O que pouca gente sabe é como é que o resto desse país, para além da sua capital, lidou com a chamada revolução. Por isso mesmo, dei-me ao trabalho de viajar até à aldeia dos meus avós para fazer a devida pergunta: como foi aqui o 25 de Abril de 1974? A resposta poderá surpreender alguns: foi um dia igual aos outros.
Estamos na Ribeira da Isna, concelho de Oleiros, distrito de Castelo Branco. Pergunta-se às pessoas pelo fatídico dia e vê-se nos seus olhos uma busca pelos arquivos mais poeirentos da mente, quase como se ouvíssemos o arquivista dizer: “Ó caraças, onde raio enfiei com esse ficheiro?” Se, nas cidades, os postos de trabalho estavam encerrados e as pessoas regressaram ordeiramente a casa, na aldeia mal se deu conta da Revolução.
As televisões, essas, eram ficção científica. Havia dois ou três transístores, numa povoação de mais de duzentas almas. Hoje sobram trinta pessoas no mesmo espaço de terra. E ninguém recorda o dia, propriamente dito. “A gente andava nervosa, mas nada de especial”, conta Carmita Castanheira, “ouvimos qualquer coisa no rádio mas nem ligámos. É quase como hoje, ouve-se falar de uma manifestação em Lisboa ou que caiu o Governo e, para nós, é igual”. O seu marido andava emigrado em França, clandestino, fugido depois de ter estado na Guiné a combater pelas cores lusas no Ultramar.
Ironicamente, o avô deste que vos escreve, Acácio Nunes, soube de imediato da Revolução dos Cravos. Mas não estava na aldeia. Estava na Alemanha, também emigrado. Tinha, por coincidência, viagem marcada para solo nacional. Naturalmente, viu o voo ser cancelado e justificaram-se com um golpe de Estado. Preocupou-se, mas nada o impediu de seguir viagem. Voou para Madrid e depois pegou num comboio que seguia para Lisboa. Trasfega de comboio em Santa Apolónia e fez-se chegar a Castelo Branco, para junto da mulher e dos dois filhos.
Numa aldeia erma do Portugal profundo estavam, maioritariamente, as mulheres de quem tinha emigrado para França, Suíça ou Alemanha, ou de quem combatia ainda na guerra do Ultramar. Era uma terra de mulheres cultivando as suas terras nas encostas das montanhas que a cerca. E o dia 25 foi igual ao 24 e igual ao 26. A vida, eventual e gradualmente, acabou por melhorar. Mas o cheiro dos cravos não se fez sentir por estas bandas, naquela quinta-feira.
A distância para Lisboa era maior do que hoje, à época. E não falo em distância física, mas sim simbólica. Não queria parafrasear o grande Eça, mas lá terá de ser: Politicamente, Portugal é mesmo Lisboa; o resto é mesmo paisagem. Ou, pelo menos, assim o era em ’74. Há um sentimento de irrealidade quando se fala de Lisboa, em todos os sentidos. Um pouco como quem lê um livro de fantasia e consegue apenas imaginar “a grande cidade”, como por cá dizem. Talvez por isso, o 25 de Abril não seja aqui comemorado. Reconhece-se a sua importância, ainda que haja sempre quem o relativize ou acredite que “hoje estamos pior que no tempo do Salazar”, numa evidente prova de que a liberdade nos deu também o direito a dizer coisas erradas.