Exemplos alemães para um melhor financiamento da ciência e tecnologia
Algumas propostas para a ciência em Portugal a partir de um olhar na Alemanha.
Na Alemanha, impera a lei da eficiência e dos grandes números, e deve haver uma das maiores transmissões de tecnologia entre as universidades e as empresas. Há muitíssimos doutoramentos, cerca de 25.000 novos doutorados por ano, mas um doutoramento não é um handicap no mundo empresarial alemão. Muitos dos melhores alunos optam por fazer um doutoramento, apenas para terem a oportunidade única de realizar um trabalho perfeito e profundo, e fazerem avançar a universidade, mas depois vão directamente trabalhar em empresas. Isto porque todos os doutorados, até mesmo os doutorados em áreas mais abstractas – em matemática e em física – acabam por ser úteis nas empresas.
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Na Alemanha, impera a lei da eficiência e dos grandes números, e deve haver uma das maiores transmissões de tecnologia entre as universidades e as empresas. Há muitíssimos doutoramentos, cerca de 25.000 novos doutorados por ano, mas um doutoramento não é um handicap no mundo empresarial alemão. Muitos dos melhores alunos optam por fazer um doutoramento, apenas para terem a oportunidade única de realizar um trabalho perfeito e profundo, e fazerem avançar a universidade, mas depois vão directamente trabalhar em empresas. Isto porque todos os doutorados, até mesmo os doutorados em áreas mais abstractas – em matemática e em física – acabam por ser úteis nas empresas.
Bolsas em todas as áreas
Dizem-me os meus colegas alemães que cada professor universitário tem automaticamente, de uma forma inerente, atribuídas duas bolsas de doutoramento (ou de pós-doutoramento) para oferecer aos seus alunos. Estas são as bolsas de doutoramento mais tradicionais, atribuídas directamente pelas universidades, existentes em todas as possíveis áreas da ciência e da tecnologia. Para além disso, há ainda financiamento (de diversas agências) para os professores dos grupos mais produtivos cientificamente, ou de áreas estratégicas, concorrerem a programas de alguns milhões de euros e poderem atribuir mais bolsas a alunos.
Em Portugal, o Governo ignorou que todos os professores e todas as áreas são importantes para uma ciência e tecnologia sólidas, e decidiu concentrar praticamente todas as bolsas em programas doutorais muito específicos, que julga terem “mais qualidade”. Estes programas doutorais do Governo (cada programa doutoral aprovado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, dedicado a um tema particular, recebe dezenas bolsas de doutoramento) estão a deixar de fora as áreas principais investigadas nas universidades, e estão a criar um terramoto no sistema das universidades portuguesas. A maioria dos grupos de investigação fica sem financiamento e sem alunos de doutoramento. O sistema está a patinar, pois:
– Falta fazer o trabalho de base, mantendo todas as áreas da ciência e tecnologia bem activas, porque são todas importantes para a academia e para as empresas;
– Os programas doutorais que supostamente seriam “de qualidade” são mal seleccionados por existirem falhas graves nos critérios, nos procedimentos e nos júris.
Critérios e júris
Os critérios da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) estão a falhar por terem requisitos demasiado permissivos, o que aumenta a arbitrariedade na atribuição de bolsas. Por exemplo, a cada candidato a bolsa de pós-doutoramento da FCT, pede-se apenas que tenha um artigo publicado numa revista científica, mesmo que tenha feito o doutoramento há mais de três anos. Há uns anos disse-me um colega espanhol: “Aqui em Espanha um candidato recém-doutorado, que tenha publicado menos de oito artigos científicos de qualidade, nem sequer é considerado pelo júri, porque só consideramos candidatos fora de série.” Ou seja, os critérios portugueses permitem a mediocridade e frequentemente os melhores candidatos, os fora de série, não obtêm bolsa enquanto alguns candidatos bem mais fracos têm sorte.
Outro exemplo de mediocridade é o júri escolhido pela FCT para atribuir programas doutorais. Na grande área da física a que pertenço, no painel do ano passado havia apenas um jurado. Ele era especialista numa área a meio caminho entre a física e a biomédica. Era responsável por avaliar todos os programas doutorais para a física, com um valor de dezenas de milhões de euros. Como seria de esperar, fez um julgamento sumário, dando demasiado valor a aspectos irrelevantes.
Isto não se passa na Alemanha, onde os júris são muito rigorosos e consistentes a tomar as suas decisões. Por exemplo, neste momento na Universidade de Frankfurt onde me encontro, está em decisão a atribuição de um financiamento de dez milhões de euros. O tópico é estratégico, pois desenvolve investigação relacionada com o futuro grande acelerador de partículas alemão, a para Investigação de Antiprotões e Iões, que está a ser desenvolvido em Darmstadt. Esse projecto tem o objectivo de financiar bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, missões, computadores e visitas de consultores (como eu). Mas apesar de se tratar de um financiamento comparável ao de um programa doutoral apenas do Governo português, está a ser decidido por um júri internacional do mais alto nível. O júri é composto por especialistas do mesmo tópico (não de um tópico desconexo do tópico a financiar), que inclui por exemplo o director de um grande laboratório nacional norte-americano. Este júri está a entrevistar muitos investigadores, desde os professores mais eminentes aos alunos que estão a iniciar o doutoramento.
Relações entre universidades e empresas
Outra questão importante é a dos doutoramentos nas empresas. Em Portugal, o Governo diz que grande parte dos doutoramentos deve passar a ser feito nas empresas. Isto pode funcionar nalguns casos particulares, mas no geral é muito difícil. Ao contrário das universidades, as empresas não estão vocacionadas para organizar doutoramentos.
Segundo os meus colegas na Alemanha, um professor que realize trabalho tecnológico ou de consultoria relevante para alguma empresa pode receber dessa empresa até um milhão de euros por ano sem perder o seu vínculo com a universidade. Isto ocorre frequentemente, por exemplo com a indústria automóvel, e cria pontes fortíssimas entre as empresas e a universidade. As próprias empresas querem que as universidades sejam fortes. Os pagamentos das empresas às universidades permitem não só que alguns professores possam ter excelentes salários como financiam ainda muitas bolsas de doutoramentos, não nas empresas, mas sim nas universidades.
O Governo português quer ainda que muitas mais patentes industriais sejam produzidas nas universidades. Realmente as universidades conseguem ter know-how para fazer muitas patentes, e até é bom que lancem muitas patentes para aproveitarem a criatividade dos professores e alunos. Mas é difícil prever qual dessas patentes frutificará, pois as universidades não são empresas industriais. E presentemente as universidades portuguesas têm poucos recursos financeiros para defender patentes internacionais. Disse-me um amigo, director de uma grande empresa bastante tecnológica: “A minha empresa não quer que as universidades façam patentes, primeiro porque nós é que sabemos quais são as patentes que precisamos; se precisamos de uma patente, fazemo-la nós. Em segundo lugar, nunca compramos patentes às universidades, essas patentes só nos empatam.”
Para concluir, estamos a gastar muito dinheiro com programas muito ambiciosos. Mas a atribuição do financiamento é pouco rigorosa. E não sobra financiamento para muitas áreas e tópicos, o que está a deixar em grandes dificuldades a maioria da ciência e tecnologia portuguesas. É uma crítica que ouço da parte de muitos colegas portugueses de todas as áreas.
Que tal se o financiamento de Governo para a ciência fosse maioritariamente para as universidades e os laboratórios do Estado fazerem o seu trabalho de investigação e de desenvolvimento em todas as áreas da ciência e tecnologia, um trabalho honesto, consistente e de qualidade? Se não houver financiamento para cada professor ou investigador poder orientar dois ou mais alunos de doutoramento, pelo menos os professores com um bom currículo deveriam poder gerir uma bolsa. E que tal se o Governo facilitasse a abertura de canais directos entre as empresas e as universidades, em vez de financiar programas público-privados complicados e burocráticos? Só depois de estes dois mecanismos básicos funcionarem pode frutificar o apoio de programas específicos. Por favor deixem a academia e os jovens trabalharem para melhorar a nossa ciência, a nossa tecnologia, a nossa economia e o nosso futuro.
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa