Troncos de árvores atirados para o fundo do mar ganham vida a 3200 metros de profundidade
Milhões de toneladas de madeira são arrastadas para o mar anualmente. O que acontece a esta matéria orgânica no fundo dos oceanos? É comida, mas nem sempre. Um estudo dá indicações de como se estabelece um ecossistema a partir de troncos de acácia.
Mas há ainda um festim nutricional inesperado: a madeira. Todos os anos, os rios levam milhões de toneladas de madeira das florestas para os oceanos. Ao encher de água salgada, a madeira afunda-se. E o que acontece de seguida a esta matéria vegetal e que comunidade de animais alberga ainda não está completamente compreendido.
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Mas há ainda um festim nutricional inesperado: a madeira. Todos os anos, os rios levam milhões de toneladas de madeira das florestas para os oceanos. Ao encher de água salgada, a madeira afunda-se. E o que acontece de seguida a esta matéria vegetal e que comunidade de animais alberga ainda não está completamente compreendido.
Por isso, em 2006, dois investigadores norte-americanos atiraram 36 troncos de acácias para o oceano Pacífico, a 3200 metros de profundidade. Cinco anos depois, foram buscar metade dos troncos e analisaram os animais que tinham colonizado a madeira. O que aconteceu aos troncos variou muito. Houve alguns que se mantiveram intocados, mas os troncos maiores tinham, em média, comunidades mais complexas de seres vivos, revela um artigo publicado na revista Biology Letters.
Na introdução do artigo, há uma referência ao tufão Morakot, que assolou o Leste asiático em Agosto de 2009. Na altura, um milhão de chineses foi obrigado a deslocar-se das suas casas. O tufão acabou por matar centenas de pessoas e fez estragos na ordem dos milhares de milhões de euros. Um efeito colateral foram as árvores arrancadas pelos ventos e que foram parar ao mar.
“Um total de 8,4 milhões de toneladas de detritos de madeira foram transportados para a costa oceânica asiática”, lê-se no artigo assinado por Craig McClain, do Centro Nacional de Síntese Evolutiva, em Durham, na Carolina do Norte, e James Barry, do Instituto de Investigação do Aquário da Baía de Monterey, na Califórnia. Uma quantidade de madeira equivalente ao peso de 23.900 aviões Boeing 747.
As espécies vegetais com porte arbóreo apareceram na Terra há quase 400 milhões de anos, por isso há uma longa história de madeira a afundar-se nos oceanos. Ao longo desse tempo, alguns moluscos acabaram por se adaptar e fizeram desta madeira a sua refeição.
No fundo do Pacífico, quem coloniza primeiro a madeira é o molusco bivalve Xylophaga zierenbergi. Tem uma concha na zona da cabeça, o resto do corpo é tubular e sem carapaça. Na região da concha, tem dentes serrilhados capazes de roer a madeira, produzindo buracos onde depois se esconde. Tal como as térmitas, o Xylophaga zierenbergi tem uma relação simbiótica com bactérias que o ajudam a digerir a celulose da madeira.
É esta actividade, no fundo do mar, que disponibiliza a matéria orgânica a uma comunidade de seres. Ao roer a madeira e ao alimentar-se dela, o Xylophaga zierenbergi lança lascas de madeira e dejectos para o chão marinho, que são utilizados por bactérias que degradam esta matéria e produzem enxofre. Em seguida, o enxofre é usado por microrganismos que produzem energia e matéria orgânica, tal como fazem as plantas com a luz solar. Esses microrganismos são quimiossintéticos.
As bactérias servem ainda de alimento para os gastrópodes, que por sua vez atraem predadores e necrófagos. E depois de morrer, os buracos que o Xylophaga zierenbergi faz na madeira tornam-se um habitat protegido para outras espécies.
O Xylophaga zierenbergi é um “criador de ecossistemas”, diz Craig McClain. “Como as ostras, os castores e as térmitas, estes [bivalves] alteram a paisagem e proporcionam um novo habitat para outras espécies”, compara o investigador, citado num comunicado do Instituto de Investigação do Aquário da Baía de Monterey. “Sem estes bivalves, a energia do carbono que existe na madeira não ficaria disponível para outras espécies.”
Segundo os autores do artigo, muitos estudos sobre estas comunidades centravam-se na descrição das espécies que as compunham, ou na forma como a matéria orgânica acabava por estar disponível para os microrganismos que fazem a quimiossíntese. Mas pouco se sabe como a comunidade é construída.
Seis vacas ao largo de Portugal
“Não se conhecem as diferentes proporções das espécies ou a forma como os indivíduos estão distribuídos”, explica por sua vez ao PÚBLICO Luciana Génio, que trabalha no grupo de Ecologia Marinha e Estuarina do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (Cesam) da Universidade de Aveiro. A investigadora esteve envolvida no projecto europeu Chemeco, que analisou o aparecimento de comunidades marinhas a diferentes profundidades a partir de madeira, da erva alfalfa (também conhecida por luzerna) e de um substrato inorgânico de carbonato. “Diferentes tipos de madeira vão influenciar a diversidade da comunidade”, resume a cientista portuguesa.
Na sua experiência, Craig McClain e James Barry lançaram, em Novembro de 2006, 36 pedaços de troncos de acácia perto da costa da Califórnia. A equipa preferiu usar madeira de uma só espécie. Os troncos pesavam entre os 600 gramas e os 20,6 quilos, e foram depositados a 3200 metros de profundidade, numa área de 500 metros quadrados (equivale a um quadrado com cerca de 22,4 metros de lado). Passados cinco anos, em Outubro de 2011, a equipa retirou 18 dos 36 troncos e analisou as espécies de animais que lá viviam.
Além do Xylophaga zierenbergi, os cientistas encontraram vermes poliquetas, diferentes espécies de gastrópodes, um lírio-do-mar e crustáceos semelhantes a camarões.
No entanto, as comunidades eram muito diferentes conforme o pedaço de madeira analisado. Alguns troncos tinham uma panóplia de espécies, enquanto noutras madeiras o Xylophaga zierenbergi mal tinha conseguido pôr os dentes.
“A parte que mais me entusiasma e que me confunde é que nem todos os blocos de madeiras foram colonizados ao mesmo tempo”, diz Craig McClain. “No final da experiência, algumas madeiras não estavam esburacadas ou estavam muito pouco esburacadas. Mas isso não era um reflexo do local onde estava a madeira, do tamanho, da forma como estava cortada ou da área superficial dos troncos. Parece que o recrutamento das larvas [dos bivalves] para os pedaços de madeira caída foi um processo quase aleatório, mesmo em relação a troncos que estavam a poucos metros de distância uns dos outros.”
Os cientistas associaram os troncos maiores a comunidades de animais mais diversificadas, já que permitiam um fornecimento de alimento durante mais tempo. “Os gastrópodes têm uma grande necessidade metabólica. Podem necessitar de muita energia para suportar uma população viável, como aquela que se encontra num grande tronco”, diz Craig McClain.
Este tipo de sucessão trófica associada a uma fonte orgânica temporária, neste caso os troncos de madeira, também se encontra nas carcaças de animais. Luciana Génio está a terminar um projecto orientado por Ana Hilário, também investigadora do Cesam, para estudar as comunidades marinhas que vivem das carcaças de animais.
Em Março de 2011, o grupo colocou seis carcaças de vacas a 1000 metros de profundidade ao largo de Setúbal e da ilha do Faial. Dezoito meses depois, foi buscar ossos para identificar as espécies colonizadoras. A carne tinha sido consumida por necrófagos, algo que não acontece com os troncos de madeira.
“Os ossos ficam expostos e há semelhanças com as madeiras: há organismos que os alteram”, diz Luciana Génio. O verme poliqueta do género Osedax é o equivalente no osso ao Xylophaga zierenbergi na madeira. À volta dos ossos das vacas também surgiu uma comunidade como a dos troncos de madeira. Tanto na madeira como no osso, havia gastrópodes e poliquetas do mesmo género.
Para a investigadora, animais como os mexilhões, que fazem parte destas comunidades transitórias, têm uma “estratégia oportunista”: enquanto há alimento, “colonizam, crescem e atingem a maturidade sexual rapidamente”. Mas se a base destes ecossistemas é finita, como no caso dos troncos de madeira ou das carcaças de animais, como é que as espécies destas comunidades sobrevivem a longo prazo? Luciana Génio diz que esta é a grande questão: “Deverá haver um input contínuo [de madeira ou carcaças no mar] que permite a existência destas comunidades.”