Há uma casa Raul Lino no Porto

É uma moradia em ruína e à venda junto à Avenida da Boavista. Quem a identificou foi a arquitecta e investigadora Carla Garrido de Oliveira, que vê nesta obra um bom exemplo da qualidade da arquitectura do autor de Casas Portuguesas.

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A verdade é que há uma casa projectada por Raul Lino e que sobreviveu no Porto, cidade que se imaginava fora, ou pelo menos distante, da cartografia de um arquitecto cuja obra mais relevante se encontra na linha entre Sintra e Lisboa.

A autora da descoberta é a arquitecta Carla Garrido de Oliveira (n. Barcelos, 1974), que actualmente desenvolve uma dissertação de doutoramento sobre a bibliografia de Raul Lino – com o título provisório A Nossa Casa: Proposta de reforma moderna da arquitectura portuguesa. “Há sempre uma dimensão muito grande de sorte, mas também de intuição e de vontade”, diz a arquitecta e professora de História da Arquitectura Portuguesa na Universidade do Porto, a explicar as circunstâncias que a levaram à identificação daquela casa.

Trabalhando sobre os livros em que Raul Lino defendeu e documentou a sua posição estética sobre a arquitectura doméstica em Portugal, entre 1918 e 1933, Carla Garrido de Oliveira deparou com uma estampa do projecto de uma “casa num subúrbio do Porto”, datado de 1930. Pensou que poderia tratar-se de um projecto não realizado, mas, atendendo a que Raul Lino tinha escrito, no livro A Nossa Casa (1918), que “o seu propósito era divulgar projectos construídos”, a investigadora lançou-se a percorrer a cidade de olhos atentos. Paralelamente consultou a base de dados da Fundação Gulbenkian relativa à obra do arquitecto da Casa do Cipreste (Sintra) – onde se encontram “listados uma dezena de projectos para o Porto”, nota –, e também o arquivo da Câmara Municipal do Porto.

Cruzando estas diferentes fontes documentais, acabou por identificar a localização da moradia, que foi mandada construir pelo médico João de Almeida – e cujo projecto enviado à câmara aparece assinado não por Raul Lino, mas pelo arquitecto José dos Santos.

Deslocou-se depois à Rua de Ciríaco Cardoso e, no nº 31, no vértice com a Rua de Carlos Dubini (aberta já posteriormente, no início da década de 1950, aquando da construção do bairro do arquitecto Mário Bonito), deparou-se com a moradia desabitada, degradada e à venda.

“Apesar da degradação evidente, a casa mostra ainda uma grande solidez construtiva”, realça Carla Garrido de Oliveira, mostrando, in loco, ao PÚBLICO a relevância da descoberta.

Edificada na parte posterior e mais alta de uma propriedade cercada de muros altos, a moradia mantém intactas as paredes de granito caiado, os travamentos, o telhado, os alpendres... Mas perdeu os soalhos, as janelas, os vitrais laterais; e a vegetação tomou já conta de algumas das suas superfícies. Além de que as duas portas principais encontram-se emparedadas com betão.

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A verdade é que há uma casa projectada por Raul Lino e que sobreviveu no Porto, cidade que se imaginava fora, ou pelo menos distante, da cartografia de um arquitecto cuja obra mais relevante se encontra na linha entre Sintra e Lisboa.

A autora da descoberta é a arquitecta Carla Garrido de Oliveira (n. Barcelos, 1974), que actualmente desenvolve uma dissertação de doutoramento sobre a bibliografia de Raul Lino – com o título provisório A Nossa Casa: Proposta de reforma moderna da arquitectura portuguesa. “Há sempre uma dimensão muito grande de sorte, mas também de intuição e de vontade”, diz a arquitecta e professora de História da Arquitectura Portuguesa na Universidade do Porto, a explicar as circunstâncias que a levaram à identificação daquela casa.

Trabalhando sobre os livros em que Raul Lino defendeu e documentou a sua posição estética sobre a arquitectura doméstica em Portugal, entre 1918 e 1933, Carla Garrido de Oliveira deparou com uma estampa do projecto de uma “casa num subúrbio do Porto”, datado de 1930. Pensou que poderia tratar-se de um projecto não realizado, mas, atendendo a que Raul Lino tinha escrito, no livro A Nossa Casa (1918), que “o seu propósito era divulgar projectos construídos”, a investigadora lançou-se a percorrer a cidade de olhos atentos. Paralelamente consultou a base de dados da Fundação Gulbenkian relativa à obra do arquitecto da Casa do Cipreste (Sintra) – onde se encontram “listados uma dezena de projectos para o Porto”, nota –, e também o arquivo da Câmara Municipal do Porto.

Cruzando estas diferentes fontes documentais, acabou por identificar a localização da moradia, que foi mandada construir pelo médico João de Almeida – e cujo projecto enviado à câmara aparece assinado não por Raul Lino, mas pelo arquitecto José dos Santos.

Deslocou-se depois à Rua de Ciríaco Cardoso e, no nº 31, no vértice com a Rua de Carlos Dubini (aberta já posteriormente, no início da década de 1950, aquando da construção do bairro do arquitecto Mário Bonito), deparou-se com a moradia desabitada, degradada e à venda.

“Apesar da degradação evidente, a casa mostra ainda uma grande solidez construtiva”, realça Carla Garrido de Oliveira, mostrando, in loco, ao PÚBLICO a relevância da descoberta.

Edificada na parte posterior e mais alta de uma propriedade cercada de muros altos, a moradia mantém intactas as paredes de granito caiado, os travamentos, o telhado, os alpendres... Mas perdeu os soalhos, as janelas, os vitrais laterais; e a vegetação tomou já conta de algumas das suas superfícies. Além de que as duas portas principais encontram-se emparedadas com betão.

Casa burguesa típica
Sobre esta “casa burguesa típica”, de três pisos e com uma área de 97 m2, Carla Garrido de Oliveira faz notar que ela “não tem – se calhar, é por isso que passou despercebida até agora –aqueles aspectos superficiais, os clichés mais folclóricos normalmente associados à arquitectura de Raul Lino: o beiralinho, a faixa de azulejo e esses aspectos decorativos que depois se tornaram o modelo propagandeado pelo Estado Novo”. Mesmo se há o alpendre – “um pequeno devaneio romântico”, como lhe chamou o arquitecto –, uma cimalha, um poial para flores, um azulejo – com uma inscrição que é uma nota de acolhimento: “Que a esta casa uma amizade certa/ Ou qualquer alma, que se sinta aflita/ Venha bater e ser-lhe-ha aberta/ A porta e o coração de quem a habita”…

“O que esta casa de Raul Lino tem é aquilo que é normalmente mais difícil identificar na obra dele, que é todo um discurso de qualidade espacial, uma concepção de espaços com uma escala acolhedora”, diz Carla Garrido de Oliveira, realçando a organização do espaço interior, que se adivinha a partir da rua e se confirma na planta que a arquitecta traz no seu dossier.

A investigadora chama ainda a atenção, na organização da planta, para “a relação diagonal das portas com as janelas, como se cada espaço tivesse as suas próprias regras”. “Ele não desenha as portas de ligação numa estrita relação de ortogonalidade nem segundo uma grelha cartesiana”, nota a arquitecta, realçando “o movimento” que é possível entrever a partir da entrada. “É muito bonito, porque, de um lado ao outro da casa, conseguimos ver de fora para fora em enfiamentos diagonais”.

Um pré-moderno
Carla Garrido de Oliveira encontra aqui a marca da arquitectura de Raul Lino e, se não arrisca em chamar-lhe “moderno” – como o fizeram já alguns historiadores e críticos, como Pedro Vieira de Almeida, por exemplo, esclarecendo, no entanto, a diferença entre aquele conceito e o de “modernista” –, vê na sua obra um claro impulso de pré-modernidade, radicado tanto no ideário da cidade-jardim inglesa como na obra do arquitecto alemão Hermann Muthesius, um dos fundadores do movimento Deutscher Werkbund que viria a dar origem à Bauhaus.

“É preciso lembrar que estamos no início do século XX, antes de todas as vanguardas que irão marcar o século, e Raul Lino tem a mesma vontade de ser moderno que qualquer pessoa do seu tempo”, nota Carla Garrido de Oliveira, lembrando a importância da formação que o (futuro) arquitecto português – que só viria a conseguir o diploma oficial em 1926 – teve, primeiro em Inglaterra, para onde foi estudar quando tinha apenas 11 anos, e depois na Alemanha, onde frequentou, adolescente, a Escola Superior Técnica de Hanôver, e trabalhou no atelier de Albrecht Haupt, um especial conhecedor da arquitectura portuguesa do século XVI.

Raul Lino manifestará a sua “modernidade” não através de rupturas, mas de uma adequação ao seu tempo da herança de um certo nacionalismo clássico. Uma marca que é evidente na casa do Porto.

Classificação patrimonial?
Michel Toussaint, professor da Faculdade de Arquitectura na Universidade Técnica de Lisboa, considera “uma boa notícia” a identificação da casa Raul Lino no Porto. Diz tratar-se de uma descoberta “com relevância para a história da arquitectura portuguesa”, e que vem confirmar, de resto, que o arquitecto construiu em todo o país, incluindo “também nas ex-colónias”.

Toussaint, que interveio no colóquio Raul Lino em Sintra, realizado no início de Abril no Palácio de Seteais – a pretexto dos 40 anos da morte do arquitecto e do centenário da Casa do Cipreste –, diz que “continua ainda por fazer o levantamento dos projectos que Raul Lino divulgou nos seus livros e que foram realmente concretizados”.

Sobre a casa no Porto – que conhece apenas da estampa publicada no livro de Raul Lino –, o arquitecto defende que, pelas suas características e pela sua raridade nesta cidade, ela “deveria ter uma protecção patrimonial”, gesto que caberá, em primeira instância, à Câmara Municipal.

Contacta pelo PÚBLICO, a autarquia não respondeu em tempo útil à questão de saber se vai considerar a sua classificação.

A casa Raul Lino da Rua de Ciríaco Cardoso começou – descobriu também Carla Garrido de Oliveira – com um requerimento à câmara para a construção de uma garagem à face da via. O lançamento da casa aconteceu a seguir, e entre a entrada principal e a moradia propriamente dita há todo um percurso por um jardim com entre árvores, que inclui também uma fonte, construída também posteriormente.

“Esta é uma casa periurbana, que permite ao seu proprietário usufruir simultaneamente do melhor da cidade e do melhor do campo”, diz a arquitecta, lembrando que a ideia de subúrbio de então é bastante diferente da actual.
A arquitecta acrescenta que a sua “intuição” lhe diz que não haverá mais casas de Raul Lino que tenham sobrevivido no Porto. Já o mesmo não acontecerá no resto do país, e Carla Garrido de Oliveira quer prosseguir esse levantamento. “Do Tejo para cima, já recolhi um grande manancial de informação”, diz, citando o caso particular de Abrantes, onde “Raul Lino tem para aí uns vinte projectos”. E destaca o caso da Assembleia de Abrantes, no centro histórico. “Parecendo uma casa, não é uma casa”, diz, realçando a cuidada integração do edifício na cidade, que vem mostrar ser “também errada a ideia de que Raul Lino não é um arquitecto urbano”.