Ucrânia: comentando as notícias da semana
O Ocidente tem um problema russo e tem de repensar a sua relação estratégica
Relatou Piotr Smolar, enviado do Le Monde, na cidade de Kramatorsk, a 100km de Donetsk: “O sol estava esplêndido. As árvores de fruto não disfarçavam as emanações dos velhos carros de combate BMD, de fabrico soviético. Perante centenas de habitantes, os soldados foram forçados a intermináveis conversações. Acabaram a infligir-se uma castração simbólica: entregaram, em sacos de plástico, os percutores das suas espingardas, a fim de poderem passar entre a multidão.” Outros 15 carros foram abandonados e muitos soldados entregaram as armas.
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Relatou Piotr Smolar, enviado do Le Monde, na cidade de Kramatorsk, a 100km de Donetsk: “O sol estava esplêndido. As árvores de fruto não disfarçavam as emanações dos velhos carros de combate BMD, de fabrico soviético. Perante centenas de habitantes, os soldados foram forçados a intermináveis conversações. Acabaram a infligir-se uma castração simbólica: entregaram, em sacos de plástico, os percutores das suas espingardas, a fim de poderem passar entre a multidão.” Outros 15 carros foram abandonados e muitos soldados entregaram as armas.
“Como qualificar um exército que se desarma?”— pergunta o jornalista. Os seis BMD foram levados como um troféu para Slaviansk, praça forte dos “pró-russos”. Os soldados da operação “antiterrorismo” acabaram a debandar, protegidos pelos “terroristas” — milicianos “pró-russos” que se intitulam “força de autodefesa” e que, na versão de Kiev, são soldados de elite russos que já actuaram na Crimeia.
As acções “separatistas” começaram por ser obra de um punhado de homens armados. A maciça propaganda russa sobre “a agressão” aos russófonos começa a assustar e a mobilizar mais gente.
O Presidente Vladimir Putin cria caos e depois dramatiza a situação. Previne os ucranianos — e os ocidentais — contra o risco de “guerra civil”, se Kiev usar a força no Leste. Diz que espera “não ser obrigado” a enviar tropas para a Ucrânia. A Rússia continua a ter alguns milhares de soldados na fronteira. Graças a tudo isto, Putin está em vantagem na frente diplomática: negociar a “normalização” da Ucrânia nos seus próprios termos — uma federalização da Ucrânia que garanta a tutela russa.
As conversações de Genebra (Rússia, UE, EUA e Ucrânia) começaram na quinta-feira — dia em que escrevo este texto. Foi acordada uma “desescalada por etapas”: desarmamento dos “grupos armados ilegais”, fim das “acções violentas e intimidações”, uma amnistia para os implicados e um “largo diálogo nacional”. Irá à Ucrânia uma missão da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa. Nada foi dito sobre a articulação entre estas medidas e as eleições presidenciais de 25 de Maio.
Comentou um pessimista: a Crimeia é já passado e todos ficarão gratos a Putin, se não invadir a Ucrânia.
2. De facto, pouco mudou nestes dias. Escreveu-se no PÚBLICO a 8 de Abril: “O objectivo [de Putin é] desorganizar e dividir a Ucrânia, de forma a impedir as eleições de 25 de Maio que, calcula, legitimariam um poder político hostil e pró-ocidental. (...) Impor referendos regionais que consagrariam um sistema federal e a autonomia das regiões, inclusive em política externa, ‘balcanizando’ a Ucrânia. Pretende acentuar a polarização entre o Leste e o Oeste e convencer os ucranianos de que o seu modelo federal será a solução mais realista e pacífica.”
A diferença é que tudo se passou depressa e com mais facilidade do que se poderia prever. Os últimos dias voltaram a ilustrar a impotência do Governo provisório de Kiev. Se o Leste e o Sul boicotarem as eleições, os eleitores do centro e do Oeste elegerão um poder hostil a Moscovo, que as regiões “pró-russas” não reconhecerão.
A maioria da população do Leste e do Sul não quer ser anexada pela Rússia. É uma população russófona, mas ucraniana — os chamados “russos étnicos” são minoritários. No entanto, uma dinâmica de polarização pode mudar o quadro. Será um dos objectivos do Kremlin.
Os analistas russos chamam a atenção para o investimento pessoal de Putin, cuja popularidade subiu acima dos 80%. Está refém desta popularidade, o que o incentiva a correr mais riscos. As sanções ferem — se forem elevadas a nível mais alto —, mas não serão neste caso uma arma de dissuasão. Moscovo sabe que, em nenhum caso, os EUA usarão da força para proteger a Ucrânia. E a aparência de um “cerco da Rússia” poderia até reforçá-lo politicamente.
Mas uma intervenção militar russa na Ucrânia não só parece desnecessária como perigosa. Teria efeitos diplomáticos devastadores. Moscovo dispõe de outros meios — políticos e económicos — para enfraquecer e fazer ceder o débil e caótico Estado ucraniano. Se a ocupação da Crimeia, com 60% de russos, foi uma operação low cost, uma intervenção na Ucrânia, para lá do seu custo internacional, despertaria uma resistência nacional ucraniana. Explica a analista russa Maria Lipman: “O hard power está do lado da Rússia. Se a Rússia procurar usurpar território ucraniano (...), consegui-lo-á. Mas não poderá ter segurança perante o ressentimento popular e a resistência.”
A ameaça de intervenção faz parte da retórica de intimidação de Putin. É para lhe dar credibilidade — e estimular os “pró-russos” — que tem tropas na fronteira.
3. A atrapalhada reacção ocidental e a hesitação sobre as sanções não têm apenas a ver com interesses económicos e diplomáticos. O problema é maior.
Os ocidentais equivocaram-se quanto à reacção de Moscovo, o que suscitou o esboço de uma discussão académica, sintetizada pela historiadora Angela Stent na pergunta “Por que é que a América não compreende Putin?”. Em parte por desconhecimento da História russa. Mas a agressão à Ucrânia ultrapassa a dimensão regional. As políticas de reset de Washington — o “reiniciar” da cooperação com a Rússia — revelaram-se condenadas e vazias de sentido.
A analista russa Lilia Chevtsova questiona a natureza do regime russo. Frisa que Putin não só está a tentar desmantelar a ordem “pós-Guerra Fria” como o que resta da “ordem pós-Ialta” — desafiando as fronteiras internacionalmente reconhecidas. É o significado da anexação da Crimeia. A nova “doutrina Putin” visaria “assegurar a sobrevivência de um poder autocrático, restaurando na Rússia o militarismo e a mentalidade de fortaleza cercada”. A Rússia não vai começar a invadir outros países, mas “pretende criar uma perpétua atmosfera de suspense e de incerteza”. Abriu uma fase de confronto estratégico.
O americano Walter Russell Mead vai ao cerne da questão: “O Ocidente tem um problema russo e é necessário repensar toda a relação estratégica com a Rússia como primeiro passo para formular uma resposta à agressão de Putin [na Ucrânia]. É improvável formular depressa tal política, mas não podemos ter uma política sensata na Ucrânia sem uma séria política russa; e desenvolver uma séria política russa requer uma estratégia euro-asiática de longo curso.”