Duas canções sobre uma escultura

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NUNO FERREIRA SANTOS

Num ecrã, dois jovens cantam à capela uma canção. O rapaz em francês, a rapariga em kibemba (um dialecto da Republica Democrática do Congo). Por vezes, encontram-se no refrão, mas o que sobressai é a solidão altiva e triste das interpretações. De repente a imagem imobiliza-se e, noutro ecrã, uma banda musical começa a cantar e a tocar. O ritmo é lento mas festivo: um grupo de raparigas dança ao som da canção.

É esta alternância de vozes que torna Indépendance Cha Cha, de Ângela Ferreira (Moçambique, 1958), uma obra cativante. As vozes não se atropelam, dão a vez às outras, para que também elas contem as suas histórias. Entretanto, três anos depois de Carlos Cardoso - Directo ao assunto (na Filomena Soares), a artista continua resgatar as (suas) histórias que são as do passado colonial europeu, da arquitectura modernista, do continente africano. Indépendance Cha Cha não se resume a dois vídeos. Na verdade, consiste numa escultura que reproduz a fachada de um edifício da arquitectura colonial existente em Lubumbashi, no Republica Democrática do Congo. É essa escultura que ampara e mostra as imagens em movimento. E as canções.

“A história deste trabalho começou com um convite que a Elvira Dyangani Ose, a curadora da 3ª Bienal de Lubumbashi, me endereçou e ao Jürgen Bock [curador e responsável pelo Lumiar Cité]”, revela Ângela Ferreira. “O nosso objectivo foi, desde o início, fazer com que o projecto tivesse eco noutro lugar e fazia todo o sentido que Lisboa fosse esse lugar. Quando comecei a reunir material já estava a pensar em duas ‘versões’, num desenvolvimento do que seria a primeira peça”. A história violenta do país da bienal não era estranha à artista. Por causa dos seus recursos naturais (borracha, cobre, urânio) foi e continua a ser um lugar violentado pelos homens. O coração das trevas de Conrad ainda pulsa no seu interior, como insinuam as fotografias expostas na vitrina que documentam as fases do projecto. “A história da exploração mineira, pelo meu passado na África do Sul, é-me muito familiar, e decidi abordá-la. No entanto, o que me fez aceitar o convite foi saber de antemão que tinha havido alguma experimentação arquitectónica [em Lubumbashi]. Lembrava-me de arquitectos que tinham vindo da Cidade do Cabo para trabalhar na região”.



Quando os edifícios cantam

Para Ângela fazer um documentário sobre a vida dos mineiros não chegou a ser opção (não é uma documentarista). Foi o som, a música que despertou o trabalho de campo, o que aliás não é inédito na sua produção (vale a pena recordar, de novo, a exposição na Filomena Soares ou a instalação For Mozambique (Model No 2 of screen-orator-kiosk celebrating a post-independence Utopia). “Procurei na música algo que pudesse apontar poeticamente para a história das minas e encontrei um senhor belga, muito idoso, que tinha conservado as canções tradicionais em cassetes. Encontrei várias, uma das quais se chamava Je vais entrer dans la mine”. É esta a canção que a rapariga e o rapaz interpretam. Escrita do ponto de vista de um rapaz, que descreve, para a sua aldeia natal, a descida às profundezas da mina, é um verso de despedida.

Não haverá regresso. “Tem uma melodia infantil e resume o horror. Ele não sabe, não percebe o que lhe está a acontecer”, acrescenta a artista. “Decidi usá-la na escultura que estava a fazer, inspirada em O Monumento à Terceira Internacional, do [Vladimi] Tatlin e nas peças em néon do Dan Flavin. E depois de encontrar o edifício, coloquei a escultura no seu topo, como se fosse uma antena”.

O edifício, construído em 1958, é uma modesta garagem de serviço, exemplar de uma arquitectura doméstica com recortes e formas modernistas. Mas Ângela Ferreira não fez uma peça sonora. “Tenho-me vindo a interessar muito pela relação entre a arquitectura e a performance. E decidi fazer uma performance no dia da inauguração, colocando os cantores no cimo do edifício, diante da escultura”. O registo da actuação permaneceu no interior da estação, durante a Bienal, antes de se integrar em Indépendance Cha Cha.

O outro filme também nasceu de uma canção, aquela que dá o título à exposição. Da autoria de Le Grand Kallé (Joseph Kabasele), considerado o pai da música moderna congolesa, nasceu numa ocasião simbólica. “Foi composta em Bruxelas, durante as negociações da independência. A delegação congolesa levou músicos, entre os quais o Le Grand Kallé, e acelerou as negociações. Com o entusiasmo, pediram-lhe uma música que assinalasse o momento”. A canção é um hibrido de ritmos africanos e latino-americanos que a dada altura elenca os líderes congoleses presentes nessa conferência, evocando, com alguma ironia, os equívocos que se seguiram à descolonização. “Não é um trabalho que aponte o dedo. Não é isso que pretendo”, atalha a artista. “Quero lidar com a complexidade do tema. Quando olhamos para a história do continente, com os problemas associados à corrupção, com as lutas entre diferentes grupos étnicos e o peso do passado colonial, é isso que posso e devo fazer. Creio que a permanência do edifício em Lubumbashi dá conta dessa complexidade. Quem o conservou? Porquê? ”. Ângela Ferreira convidou a banda de um hotel a tocar Indépendance Cha Cha e gravou a actuação, antes de a colocar sobre a escultura. “A arquitectura que, de certa forma, serviu de plinto ao trabalho da Bienal transforma-se aqui numa escultura de madeira”, sublinha. “Sempre quis fazer um projecto na Lumiar Cité. E procurei perceber como poderia mostrar as imagens de modo que a escultura habitasse o exterior, como se fosse um trabalho de arte pública. O objectivo era ter uma arquitectura dentro de outra arquitectura”. Com efeito, de noite as projecções continuam, ou seja, quem está de fora pode ver e ouvir as actuações, bem como olhar, e talvez até, comentar a totalidade de Indépendance Cha Cha. “Com este trabalho percebi que podemos activar as leituras, as interpretações da arquitectura, a experiência do espaço através do som, da música, dos sentidos das canções. Há uma imediatez que não se consegue apenas com uma escultura. E isso interessa-me cada vez mais”.

 

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Num ecrã, dois jovens cantam à capela uma canção. O rapaz em francês, a rapariga em kibemba (um dialecto da Republica Democrática do Congo). Por vezes, encontram-se no refrão, mas o que sobressai é a solidão altiva e triste das interpretações. De repente a imagem imobiliza-se e, noutro ecrã, uma banda musical começa a cantar e a tocar. O ritmo é lento mas festivo: um grupo de raparigas dança ao som da canção.

É esta alternância de vozes que torna Indépendance Cha Cha, de Ângela Ferreira (Moçambique, 1958), uma obra cativante. As vozes não se atropelam, dão a vez às outras, para que também elas contem as suas histórias. Entretanto, três anos depois de Carlos Cardoso - Directo ao assunto (na Filomena Soares), a artista continua resgatar as (suas) histórias que são as do passado colonial europeu, da arquitectura modernista, do continente africano. Indépendance Cha Cha não se resume a dois vídeos. Na verdade, consiste numa escultura que reproduz a fachada de um edifício da arquitectura colonial existente em Lubumbashi, no Republica Democrática do Congo. É essa escultura que ampara e mostra as imagens em movimento. E as canções.

“A história deste trabalho começou com um convite que a Elvira Dyangani Ose, a curadora da 3ª Bienal de Lubumbashi, me endereçou e ao Jürgen Bock [curador e responsável pelo Lumiar Cité]”, revela Ângela Ferreira. “O nosso objectivo foi, desde o início, fazer com que o projecto tivesse eco noutro lugar e fazia todo o sentido que Lisboa fosse esse lugar. Quando comecei a reunir material já estava a pensar em duas ‘versões’, num desenvolvimento do que seria a primeira peça”. A história violenta do país da bienal não era estranha à artista. Por causa dos seus recursos naturais (borracha, cobre, urânio) foi e continua a ser um lugar violentado pelos homens. O coração das trevas de Conrad ainda pulsa no seu interior, como insinuam as fotografias expostas na vitrina que documentam as fases do projecto. “A história da exploração mineira, pelo meu passado na África do Sul, é-me muito familiar, e decidi abordá-la. No entanto, o que me fez aceitar o convite foi saber de antemão que tinha havido alguma experimentação arquitectónica [em Lubumbashi]. Lembrava-me de arquitectos que tinham vindo da Cidade do Cabo para trabalhar na região”.



Quando os edifícios cantam

Para Ângela fazer um documentário sobre a vida dos mineiros não chegou a ser opção (não é uma documentarista). Foi o som, a música que despertou o trabalho de campo, o que aliás não é inédito na sua produção (vale a pena recordar, de novo, a exposição na Filomena Soares ou a instalação For Mozambique (Model No 2 of screen-orator-kiosk celebrating a post-independence Utopia). “Procurei na música algo que pudesse apontar poeticamente para a história das minas e encontrei um senhor belga, muito idoso, que tinha conservado as canções tradicionais em cassetes. Encontrei várias, uma das quais se chamava Je vais entrer dans la mine”. É esta a canção que a rapariga e o rapaz interpretam. Escrita do ponto de vista de um rapaz, que descreve, para a sua aldeia natal, a descida às profundezas da mina, é um verso de despedida.

Não haverá regresso. “Tem uma melodia infantil e resume o horror. Ele não sabe, não percebe o que lhe está a acontecer”, acrescenta a artista. “Decidi usá-la na escultura que estava a fazer, inspirada em O Monumento à Terceira Internacional, do [Vladimi] Tatlin e nas peças em néon do Dan Flavin. E depois de encontrar o edifício, coloquei a escultura no seu topo, como se fosse uma antena”.

O edifício, construído em 1958, é uma modesta garagem de serviço, exemplar de uma arquitectura doméstica com recortes e formas modernistas. Mas Ângela Ferreira não fez uma peça sonora. “Tenho-me vindo a interessar muito pela relação entre a arquitectura e a performance. E decidi fazer uma performance no dia da inauguração, colocando os cantores no cimo do edifício, diante da escultura”. O registo da actuação permaneceu no interior da estação, durante a Bienal, antes de se integrar em Indépendance Cha Cha.

O outro filme também nasceu de uma canção, aquela que dá o título à exposição. Da autoria de Le Grand Kallé (Joseph Kabasele), considerado o pai da música moderna congolesa, nasceu numa ocasião simbólica. “Foi composta em Bruxelas, durante as negociações da independência. A delegação congolesa levou músicos, entre os quais o Le Grand Kallé, e acelerou as negociações. Com o entusiasmo, pediram-lhe uma música que assinalasse o momento”. A canção é um hibrido de ritmos africanos e latino-americanos que a dada altura elenca os líderes congoleses presentes nessa conferência, evocando, com alguma ironia, os equívocos que se seguiram à descolonização. “Não é um trabalho que aponte o dedo. Não é isso que pretendo”, atalha a artista. “Quero lidar com a complexidade do tema. Quando olhamos para a história do continente, com os problemas associados à corrupção, com as lutas entre diferentes grupos étnicos e o peso do passado colonial, é isso que posso e devo fazer. Creio que a permanência do edifício em Lubumbashi dá conta dessa complexidade. Quem o conservou? Porquê? ”. Ângela Ferreira convidou a banda de um hotel a tocar Indépendance Cha Cha e gravou a actuação, antes de a colocar sobre a escultura. “A arquitectura que, de certa forma, serviu de plinto ao trabalho da Bienal transforma-se aqui numa escultura de madeira”, sublinha. “Sempre quis fazer um projecto na Lumiar Cité. E procurei perceber como poderia mostrar as imagens de modo que a escultura habitasse o exterior, como se fosse um trabalho de arte pública. O objectivo era ter uma arquitectura dentro de outra arquitectura”. Com efeito, de noite as projecções continuam, ou seja, quem está de fora pode ver e ouvir as actuações, bem como olhar, e talvez até, comentar a totalidade de Indépendance Cha Cha. “Com este trabalho percebi que podemos activar as leituras, as interpretações da arquitectura, a experiência do espaço através do som, da música, dos sentidos das canções. Há uma imediatez que não se consegue apenas com uma escultura. E isso interessa-me cada vez mais”.