Nenhum acto inesperado é inesperado
Richard Ford, escritor americano nascido em 1944 no Mississipi, é talvez o mais ignorado em Portugal dos grandes escritores americanos vivos. Não será muito menos lido do que Cormac McCarthy ou Don DeLillo – Philip Roth está noutro campeonato de popularidade –, mas os seus livros, ainda que estejam por cá publicados, raramente geram o mesmo tipo de atenção do que os dos seus contemporâneos, e há nisto alguma injustiça. Ford é o único autor que viu uma mesma obra ser distinguida com os prémios Pulitzer de ficção e PEN/Faulkner – Dia da Independência (ed. Presença). Canadá, originalmente publicado em 2013, foi distinguido em França com o Prix Fémina Étranger. Se os prémios ainda servem para alguma coisa, seria justo que este servisse para que a Europa desse mais atenção a Richard Ford.
É um romance que não é nada daquilo que aparenta ser: não é um bildungsroman, não é um romance de aventura, não é uma saga familiar, não é um romance de descoberta pessoal, não é um romance de estrada – para utilizar a terminologia mais cara ao cinema dos road movies. É um pouco de tudo isso sem optar por uma abordagem definitiva. A história resume-se facilmente – aliás, está toda no texto de contracapa da edição portuguesa: o narrador é Dell Parsons, adolescente, que tem uma irmã gémea, Berner. O pai, reformado da força aérea, mete-se em negócios com índios e acaba com dívidas que colocam em risco a segurança da família. A solução, inesperada, é assaltar um banco na companhia, ainda mais inesperada, da mulher. As coisas correm mal e são apanhados.
Berner foge de casa e Dell é levado por uma amiga da mãe para o Canadá, onde ficará ao cuidado do irmão dessa amiga, Arthur Remlinger, um americano que vive isolado numa pequena vila por motivos obscuros de que aos poucos Dell vai tendo conhecimento. Richard Ford sabota constantemente toda e qualquer hipótese que havia de fazer do livro um romance de surpresas. Tudo nos é dito antes do tempo porque o que aqui interessa não é aquilo que vai acontecer, mas o caminho que leva do ponto A ao ponto B. O romance abre assim: “Contarei em primeiro lugar a história do assalto à mão armada que os nossos pais cometeram. Depois a dos homicídios, que aconteceram mais tarde.” Esta técnica repetir-se-á em diversas ocasiões, revelando factos cujas cenas só serão relatadas dezenas de páginas adiante. O assalto dos pais, para usar o exemplo mais importante e flagrante, só é relatado por volta da centésima página. Tudo o que vem antes é a história da família: uma sequência de eventos aparentemente inofensivos que, todos arrumados, culminam naquele assalto como desfecho lógico.
Esta é, na verdade, a grande tese do romance, se acharmos necessário atribuir-lhe uma tese: nenhum acto inesperado é inesperado, mas é sim fruto de todo o caminho percorrido até lá. No fundo, é uma espécie de anti-Kafka: ninguém acorda um dia transformado em insecto, ou ninguém acorda um dia transformado em assaltante de bancos. Há um percurso, uma série de vivências e experiências e sentimentos, reprimidos ou não, que leva alguém que não tinha ar de assaltante de bancos a tornar-se assaltante de bancos. E quando se olha a posteriori para esse percurso damo-nos conta de que aquela pessoa teve sempre cara de assaltante de bancos.
Não se trata tanto de uma defesa de algo a que podemos chamar destino, como de uma defesa de que as sementes daquilo em que nos tornamos podem ser identificadas muito antes de nos tornarmos nisso. É, portanto, perfeitamente natural que Dell consiga ultrapassar a adolescência atípica que teve para se tornar num adulto bem-sucedido e realizado. Tal como é expectável o desfecho da sua irmã gémea. Canadá não podia ser escrito de outra forma – é o estilo como espelho da ideia defendida.
O romance pode ser dividido em duas partes (há uma terceira, no livro, muito curta, que faz uma espécie de balanço a partir do presente da escrita, em que Dell está a preparar-se para se reformar): a parte dos Estados Unidos e a parte do Canadá. É curioso que Richard Ford tenha escolhido Canadá para título e é interessante tentar perceber o porquê. Se é no Canadá que Dell se estabelece, se é lá que se torna adulto, se faz vida lá ao ponto de obter nacionalidade canadiana e rejeitar a sua, não deixa de ser verdade que foi nos EUA que tudo começou, foi no seu país natal que começaram a germinar as sementes do adulto em que se tornaria.
Em termos literários, a parte americana do livro é mais forte e mais interessante do que a parte canadiana. A história até ao fatídico assalto ao banco é uma mini-saga-familiar recheada de acontecimentos e factos deliciosamente normais e irrelevantes, até que tudo se compõe, como numa partitura (a analogia é do narrador, no final do romance). É nesta primeira parte que a mestria de Richard Ford mais se evidencia, na forma como avança e recua no tempo, preenche buracos, levanta o pano, tapa, destapa mais à frente, em frases curtas, gramaticalmente incompletas, que fazem todo o sentido e não causam qualquer estranheza ao leitor. Como esta. Ou esta. Ou qualquer outra.
Na parte canadiana gravitam duas personagens que, embora aparentem ser bastante mais ricas de passado do que os pais de Dell, nunca ganham a espessura destes e, por isso, nunca prendem tão completamente a nossa atenção: Arthur Remlinger, o irmão de Mildred, a amiga da mãe, e Charley Quarters, empregado deste com quem Dell vai trabalhar. Tudo nesta segunda parte é mais moderado, menos intenso, mais repetitivo e rotineiro. Mesmo havendo no Canadá um acontecimento marcante, que fará parelha com o assalto da primeira parte – os homicídios anunciados na abertura –, esse acontecimento não é tratado com a mesma importância. Isto é, toda a primeira parte é construída como o caminho até ao assalto, ao passo que na segunda parte a meta é menos visível. O efeito curioso é que damos mais atenção e importância ao caminho americano, do qual conseguimos ver mais claramente o desfecho, do que ao canadiano, cujo desfecho é menos antecipado.
Talvez a escolha do título Canadá se prenda com a ideia de fecho, porque é lá que tudo se encerra. É no Canadá que a personagem faz a sua vida, pondo para trás das costas os acontecimentos do seu passado, esquecendo tanto quanto possível a sua família americana. Só não é no Canadá que o romance é mais forte, não é no Canadá que a literatura triunfa nesta obra de Richard Ford. É só por isso que não estamos perante uma obra-prima. Para fazer uma comparação completamente exagerada e descabida, pode dizer-se que, como naquelas comédias em que uma personagem sofre todo o tipo de acidentes e azares, o que acontece a Dell no Canadá parece ser já um exagero do destino, um esticar demasiado a corda, um ligeiro resvalar para a inverosimilhança numa história que, até então, era absolutamente credível e estava irrepreensivelmente bem construída.
Seria, todavia, injusto reduzir Canadá a isso. As escolhas do autor só ao autor pertencem. Tal como nos é apresentado, Canadá é ainda um romance excelente, construído por alguém que não tem medo das frases nem da gramática, por alguém que anda nesta vida há muitos anos. Num estilo anti-climático, num ritmo sereno e recompensador, é uma espécie de versão literária do Benji de Sun Kil Moon: eventos extraordinários numa voz apaziguadora.
A tradução de Francisco Agarez é brilhante. O livro parece fácil de traduzir e quem sabe um pouco do ofício sabe que esses são, muitas vezes, os mais difíceis.
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Richard Ford, escritor americano nascido em 1944 no Mississipi, é talvez o mais ignorado em Portugal dos grandes escritores americanos vivos. Não será muito menos lido do que Cormac McCarthy ou Don DeLillo – Philip Roth está noutro campeonato de popularidade –, mas os seus livros, ainda que estejam por cá publicados, raramente geram o mesmo tipo de atenção do que os dos seus contemporâneos, e há nisto alguma injustiça. Ford é o único autor que viu uma mesma obra ser distinguida com os prémios Pulitzer de ficção e PEN/Faulkner – Dia da Independência (ed. Presença). Canadá, originalmente publicado em 2013, foi distinguido em França com o Prix Fémina Étranger. Se os prémios ainda servem para alguma coisa, seria justo que este servisse para que a Europa desse mais atenção a Richard Ford.
É um romance que não é nada daquilo que aparenta ser: não é um bildungsroman, não é um romance de aventura, não é uma saga familiar, não é um romance de descoberta pessoal, não é um romance de estrada – para utilizar a terminologia mais cara ao cinema dos road movies. É um pouco de tudo isso sem optar por uma abordagem definitiva. A história resume-se facilmente – aliás, está toda no texto de contracapa da edição portuguesa: o narrador é Dell Parsons, adolescente, que tem uma irmã gémea, Berner. O pai, reformado da força aérea, mete-se em negócios com índios e acaba com dívidas que colocam em risco a segurança da família. A solução, inesperada, é assaltar um banco na companhia, ainda mais inesperada, da mulher. As coisas correm mal e são apanhados.
Berner foge de casa e Dell é levado por uma amiga da mãe para o Canadá, onde ficará ao cuidado do irmão dessa amiga, Arthur Remlinger, um americano que vive isolado numa pequena vila por motivos obscuros de que aos poucos Dell vai tendo conhecimento. Richard Ford sabota constantemente toda e qualquer hipótese que havia de fazer do livro um romance de surpresas. Tudo nos é dito antes do tempo porque o que aqui interessa não é aquilo que vai acontecer, mas o caminho que leva do ponto A ao ponto B. O romance abre assim: “Contarei em primeiro lugar a história do assalto à mão armada que os nossos pais cometeram. Depois a dos homicídios, que aconteceram mais tarde.” Esta técnica repetir-se-á em diversas ocasiões, revelando factos cujas cenas só serão relatadas dezenas de páginas adiante. O assalto dos pais, para usar o exemplo mais importante e flagrante, só é relatado por volta da centésima página. Tudo o que vem antes é a história da família: uma sequência de eventos aparentemente inofensivos que, todos arrumados, culminam naquele assalto como desfecho lógico.
Esta é, na verdade, a grande tese do romance, se acharmos necessário atribuir-lhe uma tese: nenhum acto inesperado é inesperado, mas é sim fruto de todo o caminho percorrido até lá. No fundo, é uma espécie de anti-Kafka: ninguém acorda um dia transformado em insecto, ou ninguém acorda um dia transformado em assaltante de bancos. Há um percurso, uma série de vivências e experiências e sentimentos, reprimidos ou não, que leva alguém que não tinha ar de assaltante de bancos a tornar-se assaltante de bancos. E quando se olha a posteriori para esse percurso damo-nos conta de que aquela pessoa teve sempre cara de assaltante de bancos.
Não se trata tanto de uma defesa de algo a que podemos chamar destino, como de uma defesa de que as sementes daquilo em que nos tornamos podem ser identificadas muito antes de nos tornarmos nisso. É, portanto, perfeitamente natural que Dell consiga ultrapassar a adolescência atípica que teve para se tornar num adulto bem-sucedido e realizado. Tal como é expectável o desfecho da sua irmã gémea. Canadá não podia ser escrito de outra forma – é o estilo como espelho da ideia defendida.
O romance pode ser dividido em duas partes (há uma terceira, no livro, muito curta, que faz uma espécie de balanço a partir do presente da escrita, em que Dell está a preparar-se para se reformar): a parte dos Estados Unidos e a parte do Canadá. É curioso que Richard Ford tenha escolhido Canadá para título e é interessante tentar perceber o porquê. Se é no Canadá que Dell se estabelece, se é lá que se torna adulto, se faz vida lá ao ponto de obter nacionalidade canadiana e rejeitar a sua, não deixa de ser verdade que foi nos EUA que tudo começou, foi no seu país natal que começaram a germinar as sementes do adulto em que se tornaria.
Em termos literários, a parte americana do livro é mais forte e mais interessante do que a parte canadiana. A história até ao fatídico assalto ao banco é uma mini-saga-familiar recheada de acontecimentos e factos deliciosamente normais e irrelevantes, até que tudo se compõe, como numa partitura (a analogia é do narrador, no final do romance). É nesta primeira parte que a mestria de Richard Ford mais se evidencia, na forma como avança e recua no tempo, preenche buracos, levanta o pano, tapa, destapa mais à frente, em frases curtas, gramaticalmente incompletas, que fazem todo o sentido e não causam qualquer estranheza ao leitor. Como esta. Ou esta. Ou qualquer outra.
Na parte canadiana gravitam duas personagens que, embora aparentem ser bastante mais ricas de passado do que os pais de Dell, nunca ganham a espessura destes e, por isso, nunca prendem tão completamente a nossa atenção: Arthur Remlinger, o irmão de Mildred, a amiga da mãe, e Charley Quarters, empregado deste com quem Dell vai trabalhar. Tudo nesta segunda parte é mais moderado, menos intenso, mais repetitivo e rotineiro. Mesmo havendo no Canadá um acontecimento marcante, que fará parelha com o assalto da primeira parte – os homicídios anunciados na abertura –, esse acontecimento não é tratado com a mesma importância. Isto é, toda a primeira parte é construída como o caminho até ao assalto, ao passo que na segunda parte a meta é menos visível. O efeito curioso é que damos mais atenção e importância ao caminho americano, do qual conseguimos ver mais claramente o desfecho, do que ao canadiano, cujo desfecho é menos antecipado.
Talvez a escolha do título Canadá se prenda com a ideia de fecho, porque é lá que tudo se encerra. É no Canadá que a personagem faz a sua vida, pondo para trás das costas os acontecimentos do seu passado, esquecendo tanto quanto possível a sua família americana. Só não é no Canadá que o romance é mais forte, não é no Canadá que a literatura triunfa nesta obra de Richard Ford. É só por isso que não estamos perante uma obra-prima. Para fazer uma comparação completamente exagerada e descabida, pode dizer-se que, como naquelas comédias em que uma personagem sofre todo o tipo de acidentes e azares, o que acontece a Dell no Canadá parece ser já um exagero do destino, um esticar demasiado a corda, um ligeiro resvalar para a inverosimilhança numa história que, até então, era absolutamente credível e estava irrepreensivelmente bem construída.
Seria, todavia, injusto reduzir Canadá a isso. As escolhas do autor só ao autor pertencem. Tal como nos é apresentado, Canadá é ainda um romance excelente, construído por alguém que não tem medo das frases nem da gramática, por alguém que anda nesta vida há muitos anos. Num estilo anti-climático, num ritmo sereno e recompensador, é uma espécie de versão literária do Benji de Sun Kil Moon: eventos extraordinários numa voz apaziguadora.
A tradução de Francisco Agarez é brilhante. O livro parece fácil de traduzir e quem sabe um pouco do ofício sabe que esses são, muitas vezes, os mais difíceis.