O princípio do fim do festival Alkantara joga-se a partir de 13 de Maio
Nova edição do festival bienal junta 16 propostas em Lisboa, mas esta pode ser a última vez que isso acontece.
Mas, no andar de cima, os rostos de Thomas Walgrave e Sofia Campos, directores artísticos do Alkantara Festival, que decorre de dois em dois anos, não escondem a apreensão sobre o futuro daquele que é considerado o mais importante festival de artes performativas português. A programação, apresentada esta terça-feira, ensaia manter a pose e a face, mas os 16 espectáculos que de 13 Maio a 8 Junho vão ocupar os teatros São Luiz, Maria Matos, Teatro Dona Maria II, a Culturgest e a Fundação Calouste Gulbenkian são a consequência de, em quatro anos, ter havido um corte de 71% no financiamento da Direcção-Geral das Artes.
O orçamento global da associação é de 633,2 mil euros, o que significa que na diferença entre este valor e o custo do festival fica o peso da estrutura, mais o investimento nas outras actividades, nomeadamente as residências artísticas e o trabalho em rede. Ao fim de 21 anos, a base do projecto, diz a organização, ficou seriamente afectada. Pergunta Thomas Walgrave: “O concurso [de apoio às artes] é a tradução de uma política cultural?” E depois: “Quando se promove o empreendedorismo, são os independentes a pagar a factura do desinvestimento?”
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Mas, no andar de cima, os rostos de Thomas Walgrave e Sofia Campos, directores artísticos do Alkantara Festival, que decorre de dois em dois anos, não escondem a apreensão sobre o futuro daquele que é considerado o mais importante festival de artes performativas português. A programação, apresentada esta terça-feira, ensaia manter a pose e a face, mas os 16 espectáculos que de 13 Maio a 8 Junho vão ocupar os teatros São Luiz, Maria Matos, Teatro Dona Maria II, a Culturgest e a Fundação Calouste Gulbenkian são a consequência de, em quatro anos, ter havido um corte de 71% no financiamento da Direcção-Geral das Artes.
O orçamento global da associação é de 633,2 mil euros, o que significa que na diferença entre este valor e o custo do festival fica o peso da estrutura, mais o investimento nas outras actividades, nomeadamente as residências artísticas e o trabalho em rede. Ao fim de 21 anos, a base do projecto, diz a organização, ficou seriamente afectada. Pergunta Thomas Walgrave: “O concurso [de apoio às artes] é a tradução de uma política cultural?” E depois: “Quando se promove o empreendedorismo, são os independentes a pagar a factura do desinvestimento?”
Apesar do cansaço e do reajustamento dos orçamentos que envolveram no último ano a preparação do Alkantara Festival, a vontade é de diálogo. “Gostaríamos que a relação [com a DGArtes] não se resumisse a pedir dinheiro e entregar relatórios”, diz Sofia Campos. “Há falta de diálogo, de construção de [um projecto] em comum, de encontrar soluções.” Se reconhecem que o Estado não pode fazer tudo, sublinham também que não se podem recorrer sistematicamente a expedientes provisórios. Para o biénio 2013-2014, o equivalente ao apoio da DGArtes, a Secretaria de Estado da Cultura deu um apoio único de 90 mil euros, que foram afectados ao conjunto das actividades.
A programação inclui os regressos de Anne Teresa de Keersmaeker e Boris Charmatz com Partita 2, exercício de despojamento coreográfico e centro nevrálgico do trabalho de resiliência interpretativo de um e outro (13 e 14 Maio, Gulbenkian); Lia Rodrigues com Pindorama, terceira parte da trilogia sobre o corpo brasileiro inaugurada com Pororoca e Piracema (28 a 31 Maio, Culturgest); Toshiki Okada, encenador japonês que alicerça o seu trabalho num desequilíbrio emocional, com Super Premium Soft Double Vanilla Rich (4 e 5 Junho, Maria Matos), metáfora sobre a hegemonia e normatividade; Sylvian Crezevault, que há uns anos trouxe para o palco da Culturgest a violência do falhanço da revolução francesa Notre Terreur, e agora se atira com violência a O Capital, de Marx (6 a 8 Junho, Culturgest); o colectivo Berlin, cujo projecto sobre Lisboa foi adiado para 2015 por força dos constrangimentos orçamentais, e mostra agora Perhaps all dragons (3 a 5 Junho, São Luiz), encontro de um para um com protagonistas de histórias sem história; Faustin Linyekula, que se liberta das máquinas de produção que condicionaram o seu trabalho nos últimos anos e inflige ao seu corpo, e novamente, a dureza crua da realidade congolesa em Le Cargo (29 e 30 Maio, São Luiz). E ainda Tim Etchells (Artista na Cidade 2014), Halory Goerger e Antoine Defoort, meninos bonitos do humor dead pan performativo, Cláudia Dias (tour de force reivindicativo com Vontade de ter vontade, de 2012) e a estreia de De Marfim e Carne, de Marlene Monteiro Freitas.
Descobertas: Ula Sickle, coreógrafa entre o Canadá e o Congo que em Kinshasa Electric (São Luiz, 30 Maio) traz ao palco a descodificação cultural e a força política da dança popular; Urândia Aragão, artista interdisciplinar que com Fio Condutor (Espaço Alkantara, 29 Maio a 1 Junho) constrói um mapa sensorial e sensitivo do mundo.
“É o que fica por fazer que reflecte a consequência da falta de apoios”, sublinha Thomas Walgrave. O encenador Tiago Rodrigues, apresenta Bovary, com base em Flaubert no São Luiz (a partir de 7 Junho, integrado no Alkantara), um espectáculo que "se preocupa com o modo como a legalidade e a norma social entendem a arte e lança perguntas sobre que limites se podem impor à arte". Ao PÙBLICO sublinha que o Alkantara “não se distingue - equipara-se a alguns dos melhores festivais do mundo”, mas fá-lo através de “uma combinação entre o cutting edge artístico e mantendo uma raiz muito profunda no seu contexto social, económico e político”.
O encenador fala da possibilidade de fim do Alkantara como um “retrocesso histórico” que provaria “que as últimas réstias de relevância da cultura para os decisores políticos tinham desaparecido”. “Basicamente, significaria que já não valia a pena ser artista ou espectador em Portugal”, diz o encenador cujo último espectáculo, Três Dedos abaixo do Joelho, iniciou um percurso por mais de 20 países depois de se ter estreado na última edição do festival.
“O meio artístico português foi habituado a fazer omeletes sem ovos desde sempre, mas um projecto com a qualidade e a dimensão do Alkantara já não pode ser feito sem ovos. E não nos venham com a conversa de que não há dinheiro. É claro que há dinheiro. Há dinheiro para as maiores piroseiras institucionais. O que não há é vontade política, porque a criação continua a ser vista por este Governo como uma coisa que se põe na lapela quando dá jeito, um enfeite, um fogo-de-artifício.”
É dessa relevância distintiva que falam Jorge Andrade e José Capela do colectivo Mala Voadora que apresenta Protocolo (3 a 8 Junho, TNDMII), onde "os artistas conduzem a soirée e resolvem (como habitualmente) os problemas do mundo: das regras de etiqueta à mesa (como dobrar um guardanapo) à decadência da civilização ocidental (como resgatar as elites). Dizem: “O Alkantara distingue-se pela sageza de insistir em contrariar o país ensimesmado e fechado em si [através de espectáculos que], no seu conjunto, foram construindo um quadro de referências com muito carácter, [e] esses quadros são fundamentais como estímulo para os próprios artistas.”
Diz Miguel Lobo Antunes, director da Culturgest: “Não acredito que o problema, para o Estado central ou para a Câmara Municipal de Lisboa, seja financeiro. O problema é político, de vontade ou não de manter o festival.” E acrescenta: “O Estado central, em primeiro lugar através das suas estruturas de prossecução da política cultural (secretário de Estado da Cultura e DGArtes) mas também através, por exemplo, das entidades que se dedicam à promoção do turismo, tem a obrigação de contribuir para esse financiamento. Infelizmente, não me parece, pelo que acontece este ano, que haja a vontade de continuar a apoiar o Alkantara como em anos anteriores o fez. Tenho fundados receios de que os actuais poderes públicos sejam os que vão matar o festival. Mas a cidade de Lisboa também tem um dever a que não se pode furtar de apoiar o Alkantara. Não acredito que o problema, para o Estado central ou para a câmara, seja financeiro. O problema é político, de vontade ou não de manter o festival.”
Miguel Honrado, presidente da EGEAC, a entidade que gere os teatros municipais São Luiz e Maria Matos, parceiros do festival, diz que há um trabalho a fazer, mas que “não basta a EGEAC para transformar o Alkantara no festival da cidade”. Diz, inclusivamente, que “faz falta um outro tipo de statement que passa por uma decisão política”, mas também por “aproximar a marca do festival como marca cultural de uma realidade ampla que é Lisboa”.
Escreve-se no programa do festival: “O Alkantara está a pagar um preço elevado pela sua visão marcadamente contemporânea, internacional e transdisciplinar, firmemente ancorada na cultura urbana de Lisboa.” O que se seguirá arrumados os copos, distribuídos os programas? Thomas Walgrave e Sofia Campos falam da necessidade de “ter a coragem de pensar a médio e longo prazo onde o discurso da qualidade possa coincidir com a avaliação dessa mesma qualidade”. Falam, sobretudo, de um “apelo à acção”.