“Há mais sexismo nas universidades do que em outras áreas em Portugal”
A investigadora em estudos de género Maria do Mar Pereira foi a vencedora do Prémio Internacional para o Melhor Livro em Investigação Qualitativa feito entre 2010 e 2014.
Maria do Mar Pereira, 32 anos, vive em Inglaterra há sete anos, onde dá aulas na Universidade de Warwick. Foi distinguida por um estudo que fez em 2012, quando foi para uma escola em Lisboa perceber o que pensam jovens de 13 e 14 anos sobre as relações entre homens e mulheres e sobre o ser-se homem e o ser-se mulher. Apesar de, no final do processo, terem começado a mudar as suas ideias, estes adolescentes continuavam a pensar que meninas com muitos namorados eram galdérias e que homens sensíveis eram “maricas”.
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Maria do Mar Pereira, 32 anos, vive em Inglaterra há sete anos, onde dá aulas na Universidade de Warwick. Foi distinguida por um estudo que fez em 2012, quando foi para uma escola em Lisboa perceber o que pensam jovens de 13 e 14 anos sobre as relações entre homens e mulheres e sobre o ser-se homem e o ser-se mulher. Apesar de, no final do processo, terem começado a mudar as suas ideias, estes adolescentes continuavam a pensar que meninas com muitos namorados eram galdérias e que homens sensíveis eram “maricas”.
O que é que pensava sobre o ser-se homem e mulher quando tinha a idade dos jovens que entrevistou?
Lembro-me de ter 13 anos e de já me dizerem que me armava em feminista. Eu respondia que não era feminista! Não sabia o que era. Foi preciso chegar aos 18 para perceber que é defender a igualdade entre homens e mulheres.
Na adolescência nunca se sentiu contaminada pelas representações que existem na sociedade?
Havia coisas que me pareciam injustas. Como os rapazes, os nossos irmãos e primos, serem tratados de forma diferente, os meus pais acharem que meninas não dizem asneiras, e os rapazes mais sensíveis não serem respeitados. Mas não tinha a linguagem para as nomear e dizer por que eram injustas.
Mas nunca se deixou contaminar?
Sim, muitas vezes adaptei o meu comportamento às ideias sobre o que é uma rapariga desejável e normal. Queria parecer desejável, atraente. Normal, acima de tudo. Essa força da normalidade é muito intensa sobre os adolescentes. Lembro-me de os meus colegas dizerem que nunca ia arranjar um namorado, porque era demasiado inteligente e os rapazes não gostam de mulheres inteligentes. Nessa altura, e até arranjar namorado, não é que fingisse que era burra, mas ficava calada.
Os adolescentes que entrevistou achavam que as raparigas com vários namorados eram galdérias e os rapazes não. Os rapazes que falavam sobre os outros eram “curiosos”, as meninas “coscuvilheiras”. Os rapazes que não correspondiam ao ideal de masculinidade eram “maricas”. São representações que já existiam e que se mantêm... De onde vêm?
Para jovens desta idade vêm muito dos media. Dos filmes, revistas, séries de televisão. Da escola também. Eles ouvem dizer que os rapazes se portam mal, que as raparigas têm mais maturidade, que os homens só pensam em sexo. Estas afirmações feitas, muitas vezes em conversa banal, definem a visão que crianças e jovens têm sobre o mundo. Como as pessoas acham o género uma coisa natural, normal, biológica, as professoras e os professores nem sempre têm noção que fazer certos comentários pode ter efeitos muito nocivos.
Há estudos científicos sobre a diferença entre o cérebro das mulheres e o dos homens. Alguns dizem-nos que o desempenho motor e a visualização espacial são mais fáceis para eles e a memória e as capacidades cognitivas sociais mais fáceis para elas. É um exemplo, há mais. Estas conclusões acerca das diferenças biológicas entre homens e mulheres incomodam-na?
Há que reflectir sobre essas conclusões. As diferenças entre homens e mulheres não são constantes, mudam de cultura para cultura e ao longo do tempo. Se fossem estritamente biológicas não se alteravam nem eram diferentes de cultura para cultura. As raparigas podem ter mais jeito para a linguagem, para as relações interpessoais, e os rapazes serem mais atléticos ou terem mais jeito para as questões motoras. Mas isso não nos diz se nasceram assim. A maior parte dos estudos tem demonstrado que é o facto de os bebés serem sujeitos a socializações muito diferentes que acaba por extremar essas capacidades. Na Suécia, onde já vivi e em que a sociedade não é tão diferenciada, esses estudos cerebrais não mostram tantas diferenças.
Neste estudo que recebeu o prémio, foi para uma escola, acompanhou os jovens. Tendo em conta o contexto de crise, se fosse para uma empresa em Portugal com adultos e com o foco nas relações de trabalho, as representações seriam muito diferentes?
Depende da empresa, mas as pessoas continuam a assumir que as mulheres, se são bonitas, não podem ser assim tão inteligentes e se são promovidas não terá sido só pelo mérito e produtividade. Que os homens têm mais autoridade ou credibilidade. Que contratar uma mulher jovem é um risco, porque não vai levar a carreira tão a sério e o verdadeiro objectivo das mulheres é a maternidade. Em momentos de crise, há ainda a ideia de que certas conquistas de igualdade custam dinheiro. Pode haver um voltar atrás nas questões de género. Activa-se a ideia de que, como há menos emprego, se as mulheres forem para a casa tomar conta das crianças e dos velhos, até se poupa dinheiro ao Estado que não tem de ter esse tipo apoio social.
Há diferenças entre Inglaterra e Portugal no que respeita às questões de género?
Há grandes diferenças, mas não é possível dizer qual o país mais avançado. Ao nível da actividade profissional, Portugal está mais avançado, porque, sendo um país mais pobre, desde sempre as famílias necessitavam também do salário das mulheres. Há em toda a sociedade portuguesa enraizada uma grande aceitação do trabalho no feminino e das carreiras das mulheres, mais do que em Inglaterra. Mas em Portugal continua-se também à espera que sejam as mulheres as responsáveis pela maioria dos cuidados com as crianças e com a casa. Nesse aspecto estão muito mais sobrecarregadas do que as inglesas. Em Inglaterra, não se está à espera que as mulheres trabalhem tanto. Quando as mulheres querem ter uma carreira são mais estigmatizadas, porque deviam dedicar-se mais à família. Mas também há mais possibilidade de trabalho em part-time e, portanto, conseguem mais facilmente conciliar as actividades profissionais, mesmo absorventes, com a família.
Sente discriminação no meio académico por ser investigadora?
Sim. A minha tese de doutoramento, que vai sair em livro para o ano, é sobre isso. [Em Portugal], sociólogas, sociólogos e professores universitários, supostamente as pessoas mais abertas, mais científicas da nossa sociedade, já me disseram que os estudos de género são sociologia para meninas. Uma área menor, de nicho, que só interessava às mulheres, como se os homens não tivessem género.
Se investigasse noutra área, sentiria na mesma discriminação?
Sim. Há mais sexismo nas universidades em Portugal do que em outras áreas, porque são espaços de grande hierarquia, onde não há muita circulação de pessoas, onde as pessoas ficam num cargo décadas. E onde impunemente discriminam sexualmente, assediam sexualmente.
No doutoramento que fez na London School of Economics, escolheu ir para as universidades portuguesas observar como são encaradas as questões de género. O que encontrou?
Em todas as universidades portuguesas, não há uma excepção, existe um discurso oficial e outro nos corredores. Mesmo que, no discurso oficial, se diga que estas áreas são muito importantes, nos corredores, nas reuniões, nas tomadas de decisão, o que se diz é que são umas mulheres ou uns homens homossexuais a fazer uns estudos que não interessam. Há uma coexistência de um discurso oficial que mudou muito nos últimos anos, de abertura e apreço pelo conhecimento, com uma vida informal, não oficial de corredor, de um grande sexismo, homofobia, fechamento e marginalização de uma série de áreas. Por um lado, parece que a situação está melhor, mas ao mesmo tempo está pior, porque torna-se mais difícil chamar a atenção para esse sexismo e esse conservadorismo. Está escondido, não há tantas provas de que, de facto, existe. Um livro que no estrangeiro é reconhecido como o melhor livro, que faz o maior contributo no mundo, em todas as áreas, em Portugal é tratado como uma área menor que só interessa às mulheres.
O que representa este prémio? Um incentivo para investigar mais?
Mostra que vale a pena estudar género e a vida dos jovens. E demonstra outra coisa que eu, como emigrante, levo muito a sério. Quando cheguei a Inglaterra há sete anos disseram-me que não valia a pena escrever em português. Este trabalho, ao ser reconhecido internacionalmente, apesar de escrito em português, é um sinal no estrangeiro de que em Portugal, em português, se fazem coisas que estão na ponta, de vanguarda, que contribuem, é isso que o prémio diz.
O que quer estudar a seguir?
Interessava-me perceber que impacto tem o que está a acontecer em Portugal nas questões de género e como é que a crise afecta a forma como Portugal é visto noutros países. Em Inglaterra tenho observado que Portugal tende a aparecer nos media como uma malta preguiçosa, pouco produtiva, que merece o que lhe está a acontecer. Perceber de que forma é que a xenofobia, estereótipos, racismos antigos, que já eram inaceitáveis, acabam por reaparecer com o pretexto da crise. De repente, parece que é aceitável dizer que a Europa do Sul é inferior à do Norte. Gostaria de perceber como é que a crise acaba por permitir o renascer de desigualdades e estereótipos que já deviam ter desaparecido.
O estudo agora premiado, assim como o doutoramento, foram feitos com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia?
Sim. O Estado português investiu muito dinheiro na minha formação, no liceu, na faculdade, e na formação de outras pessoas, para eu agora estar a dar aulas a alunos e alunas ingleses e de outros países. Faço-o numa universidade inglesa onde o meu currículo e a minha formação são apreciados. Lá estão a reconhecer esta formação que foi financiada pela população portuguesa e cujos frutos não podem vir para a Portugal. Estou lá, em cada dia que passa, com muito pesar, porque sinto que a minha geração tem um contributo para dar a Portugal. Tenho muita pena de ter tido de ir lá para fora. Não vou negar que lá há condições de trabalho óptimas e isso é aliciante. Mas não estou a devolver o meu conhecimento ao país que me formou e que ajudou a financiar a minha formação.