Passado reencontrado

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José Cid rodeado dos sintetizadores, ferramenta moderna na década de 1970, que foram a base de 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte DR

A questão é que existe “um José Cid por trás do José Cid e ainda um outro por trás do biombo”. É o próprio quem o diz ao Ípsilon, 72 anos bem contados, a poucos dias de subir ao palco da Aula Magna (esta noite) e da Alfândega do Porto (amanhã). Não serão uns concertos quaisquer. Será José Cid a espreitar por detrás do biombo.

10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte: álbum de 1978 que Cid editou um ano depois de singles como Anita não é bonita ou Romântico mas não trôpego; no mesmo ano que A minha música; e um ano antes de Verdes trigais em flor. Um disco conceptual de rock progressivo, alegoria com Adão e Eva encarnados num casal que foge de uma Terraem colapso e viaja pela galáxia antes de regressar, 10 mil anos depois, para construir um novo planeta. Sete canções marcadas pela instrumentação “cósmica” do progressivo (o Mellotron, o moog e outros teclados e sintetizadores), qual viagem paralela aos passos firmes de José Cid, no pós-Quarteto 1111, enquanto cantor no topo das tabelas de vendas. O músico popular e o músico progressivo são um e o mesmo. Sem incoerência, defende-se o próprio. “Eu não me limito em termos de criatividade. Se fiz, fiz. Se aconteceu, aconteceu, e quem não gostar que não goste. Muito mal comparado, digamos que, como Pessoa, tenho vários heterónimos musicais”. E é então que ilustra: “Há um José Cid por trás do José Cid e outro ainda por trás do biombo”.

No meio musical português, as manifestações do rock progressivo, em termos discográficos, não são abundantes. Entre os mais célebres encontramos os Tantra deMistérios E Maravilhas (1977) ou os Petrus Castrus de Mestre (1973). José Cid tivera o Quarteto 1111, primeira manifestação de uma pop arrojada, sintonizada com o mundo mas intrinsecamente portuguesa. Depois, com os Green Windows e Vinte anos, tornara-se figura de destaque do cancioneiro pop nacional. Mas nele havia sempre outras ideias a fervilhar.

10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, conta, começou a nascer em 1970. Ao longo dos anos, foi juntando ideias e esquissos musicais. Em 1977 convoca Zé Nabo, que tocaria baixo e guitarras, Ramon Galarza, que seria o baterista e Mike Sargeant, cuja guitarra ouviríamos em O caos. “Foi um álbum muito trabalhoso e demorado”, recorda. Azarado até: “quando estava pronto, um técnico enganou-se e gravou um disco de fados por cima das masters e apagou o lado B todo. Tivemos que regravar tudo outra vez”.

Álbum na mão, a Orfeu, editora de Arnaldo Trindade para a qual gravavam José Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Sérgio Godinho, oferece alguma resistência à ambição de Cid, que insistira numa dispensiosa edição em capa gatefold com seis páginas de ilustrações. “Não acharam boa ideia. Julgaram que o álbum podia assustar um bocado o público”. José Cid, homem decidido, apresentou a solução. “Dava-lhes o álbum a custo zero, mas tinha que ser editado”. Assim aconteceu. “A obra ficou”. Era o objectivo de José Cid. Que ficasse.

À época do lançamento, terá vendido pouco mais de 600 cópias. Décadas depois, os gloriosos maluquinhos do prog nos EUA descobrem-no e a editora Art Sublime reedita-o. Em Portugal, a Movieplay coloca-o novamente nas lojas em 1998. Entretanto, as edições originais em vinil começam a atingir valores de centenas de euros em sites como o eBay. A viagem do álbum esquecido recomeça. A chegada da internet fez o resto.

Hoje, ao procurar que José Cid enquadre o álbum no universo do seu tempo, recebemos resposta pronta. Ele ouvia os King Crimson, os Genesis, os Pink Floyd, os que, como diz, ficarão para sempre. E destaca os Gentle Giant e os Deep Purple, “com guitarristas de outro nível”. Mas uma coisa é ouvi-los, outra coisa, diz, seria vertê-los para a sua música. Nisso, como é habitual nele, é peremptório: “Nenhuma banda do progressivo influenciou o 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. Só que usámos os instrumentos do rock sinfónica da época, os mellotrons, os moogs, o Hammond. Era o que havia”. 

Na última década, no pós-renascimento mediático de José Cid, entre os pedidos de Como o macaco gosta de banana ou A pouco e pouco nos concertos em Queimas das Fitas, começaram a surgir cartazes a recordar o 10.000 Anos. Nos fóruns da internet, a velha guarda que sabia que existia esse José Cid por trás do José Cid do festival da canção, ia suspirando pela interpretação na íntegra do álbum em concerto. E no Ípsilon da semana passada, o rapper Bob da Rage Sense confessava que10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte é o seu disco português preferido.

Devolvido aos palcos

Ei-lo então agora, devolvido os palcos por onde nunca passou na íntegra. Por vontade do público, não do seu autor. “Andei a evitar fazê-lo, mas agora vai ter mesmo que ser. Resistia a tocá-lo porque vocalmente era muito difícil para mim e porque, durante muitos anos, quando o tocava, sentíamos que o público mainstream do José Cid se afastava”. A redescoberta do álbum fez com que Cid sentisse a “obrigação moral” de o levar a palco. “Alugámos a Aula Magna a medo, achando que podia ser um buraco e que não teríamos lá ninguém. Está praticamente esgotada. Agora, é como dizem os latinos, alea jacta est”.

Em Lisboa e no Porto não ouviremos apenas as canções do álbum de 1978. Teremos perante nós todo um percurso alternativo, todo o Cid progressivo. 10.000 Anos Entre Vénus e Marte não está sozinho. Em 2015, José Cid planeia gravar Vozes do Além, baseado em poesia de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia – será o encerrar da sua obra no progressivo. Neste momento, porém, interessa-nos mais o que permanece escondido lá atrás.

Imediatamente antes de 10.000 Anos houve o EP Vida (Sons do Quotidiano) (1977), gravado com os Cid, Scarpa, Carrapa & Nabo. Dois anos antes, fora editadoOnde Quando Como Porquê – Cantamos Pessoas Vivas, o último álbum creditado ao Quarteto 1111. Inspirado e adaptado de um texto de José Jorge Letria, foi a carta musical de José Cid à revolução de Abril. “Aprendo e repito a palavra proibida, a palavra esquecida, liberdade”, canta.

É uma belíssima peça musical, gravada com António Moniz Pereira, Mike Sargeant e Vitor Mamede, e onde a assinatura melódica de Cid investe por um bucolismo folk que plana, guiado pelo Moog e Mellotron, até um universo onírico, e que acelera, guiado pela guitarra, pelo rock mais eléctrico, declaradamente prog. Foi e permanece praticamente ignorado. Para José Cid, para tal concorrem duas razões. “Tudo o que sejam faixas com mais de quatro minutos não passam na rádio. Quando gravámos um álbum conceptual já sabíamos que não ia passar e que só aqueles que gostavam daquela área musical é que o iriam buscar”. Além disso, acrescenta Cid, “eu tinha o estigma de viver numa casa muito bonita, de ter cavalos e um bom carro. Isso fez muita gente da cultura pensar que eu não era um deles. Isto quando eu, na minha posição de neo-monárquico, sempre fui abrangente e conciliante entre a esquerda e a direita portuguesas. Na maior parte das questões, aliás, disse sempre que era a esquerda que tinha a razão”.

José Cid é um inefável conversador que salta de tema em tema, de ideia em ideia, com a mesma agilidade com que trocava uma balada romântica apontada ao mainstream por um álbum de rock progressivo. Se puxamos do 10.000 Anos e ele nos acaba a criticar a forma como foi feita a descolonização portuguesa ou a falar dos horrores da guerra civil do Uganda, tal acontece porque, para ele, tudo isso está ligado. “Este álbum continua perfeitamente actual para as pessoas da minha geração que sonharam com um planeta melhor e que não o encontraram ao fim destes anos todos”. Continua: “À excepção de um Martin Luther King, de um Mandela, de um Kennedy ou de um Sá Carneiro, os Bushs todos sentaram-se nos lugares de decisão e aniquilaram o planeta”. “10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte” era para os outros. “Dá-nos a possibilidade de fugir de um planeta com o qual não concordámos e com a qual não concordamos. Vimos pouco a pouco o mundo acabar e ficámos calados, não se deu um grito, não se fez um gesto. Nem a própria ruína nos conseguiu manter acordados”. Cid está a citar o que canta no disco. Que é ficção-científica em rock progressivo. Mas existe mesmo. Como se comprovou ontem enquanto o disco renascia perante nós. Como se comprovará hoje e amanhã. Em palco.

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A questão é que existe “um José Cid por trás do José Cid e ainda um outro por trás do biombo”. É o próprio quem o diz ao Ípsilon, 72 anos bem contados, a poucos dias de subir ao palco da Aula Magna (esta noite) e da Alfândega do Porto (amanhã). Não serão uns concertos quaisquer. Será José Cid a espreitar por detrás do biombo.

10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte: álbum de 1978 que Cid editou um ano depois de singles como Anita não é bonita ou Romântico mas não trôpego; no mesmo ano que A minha música; e um ano antes de Verdes trigais em flor. Um disco conceptual de rock progressivo, alegoria com Adão e Eva encarnados num casal que foge de uma Terraem colapso e viaja pela galáxia antes de regressar, 10 mil anos depois, para construir um novo planeta. Sete canções marcadas pela instrumentação “cósmica” do progressivo (o Mellotron, o moog e outros teclados e sintetizadores), qual viagem paralela aos passos firmes de José Cid, no pós-Quarteto 1111, enquanto cantor no topo das tabelas de vendas. O músico popular e o músico progressivo são um e o mesmo. Sem incoerência, defende-se o próprio. “Eu não me limito em termos de criatividade. Se fiz, fiz. Se aconteceu, aconteceu, e quem não gostar que não goste. Muito mal comparado, digamos que, como Pessoa, tenho vários heterónimos musicais”. E é então que ilustra: “Há um José Cid por trás do José Cid e outro ainda por trás do biombo”.

No meio musical português, as manifestações do rock progressivo, em termos discográficos, não são abundantes. Entre os mais célebres encontramos os Tantra deMistérios E Maravilhas (1977) ou os Petrus Castrus de Mestre (1973). José Cid tivera o Quarteto 1111, primeira manifestação de uma pop arrojada, sintonizada com o mundo mas intrinsecamente portuguesa. Depois, com os Green Windows e Vinte anos, tornara-se figura de destaque do cancioneiro pop nacional. Mas nele havia sempre outras ideias a fervilhar.

10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, conta, começou a nascer em 1970. Ao longo dos anos, foi juntando ideias e esquissos musicais. Em 1977 convoca Zé Nabo, que tocaria baixo e guitarras, Ramon Galarza, que seria o baterista e Mike Sargeant, cuja guitarra ouviríamos em O caos. “Foi um álbum muito trabalhoso e demorado”, recorda. Azarado até: “quando estava pronto, um técnico enganou-se e gravou um disco de fados por cima das masters e apagou o lado B todo. Tivemos que regravar tudo outra vez”.

Álbum na mão, a Orfeu, editora de Arnaldo Trindade para a qual gravavam José Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Sérgio Godinho, oferece alguma resistência à ambição de Cid, que insistira numa dispensiosa edição em capa gatefold com seis páginas de ilustrações. “Não acharam boa ideia. Julgaram que o álbum podia assustar um bocado o público”. José Cid, homem decidido, apresentou a solução. “Dava-lhes o álbum a custo zero, mas tinha que ser editado”. Assim aconteceu. “A obra ficou”. Era o objectivo de José Cid. Que ficasse.

À época do lançamento, terá vendido pouco mais de 600 cópias. Décadas depois, os gloriosos maluquinhos do prog nos EUA descobrem-no e a editora Art Sublime reedita-o. Em Portugal, a Movieplay coloca-o novamente nas lojas em 1998. Entretanto, as edições originais em vinil começam a atingir valores de centenas de euros em sites como o eBay. A viagem do álbum esquecido recomeça. A chegada da internet fez o resto.

Hoje, ao procurar que José Cid enquadre o álbum no universo do seu tempo, recebemos resposta pronta. Ele ouvia os King Crimson, os Genesis, os Pink Floyd, os que, como diz, ficarão para sempre. E destaca os Gentle Giant e os Deep Purple, “com guitarristas de outro nível”. Mas uma coisa é ouvi-los, outra coisa, diz, seria vertê-los para a sua música. Nisso, como é habitual nele, é peremptório: “Nenhuma banda do progressivo influenciou o 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. Só que usámos os instrumentos do rock sinfónica da época, os mellotrons, os moogs, o Hammond. Era o que havia”. 

Na última década, no pós-renascimento mediático de José Cid, entre os pedidos de Como o macaco gosta de banana ou A pouco e pouco nos concertos em Queimas das Fitas, começaram a surgir cartazes a recordar o 10.000 Anos. Nos fóruns da internet, a velha guarda que sabia que existia esse José Cid por trás do José Cid do festival da canção, ia suspirando pela interpretação na íntegra do álbum em concerto. E no Ípsilon da semana passada, o rapper Bob da Rage Sense confessava que10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte é o seu disco português preferido.

Devolvido aos palcos

Ei-lo então agora, devolvido os palcos por onde nunca passou na íntegra. Por vontade do público, não do seu autor. “Andei a evitar fazê-lo, mas agora vai ter mesmo que ser. Resistia a tocá-lo porque vocalmente era muito difícil para mim e porque, durante muitos anos, quando o tocava, sentíamos que o público mainstream do José Cid se afastava”. A redescoberta do álbum fez com que Cid sentisse a “obrigação moral” de o levar a palco. “Alugámos a Aula Magna a medo, achando que podia ser um buraco e que não teríamos lá ninguém. Está praticamente esgotada. Agora, é como dizem os latinos, alea jacta est”.

Em Lisboa e no Porto não ouviremos apenas as canções do álbum de 1978. Teremos perante nós todo um percurso alternativo, todo o Cid progressivo. 10.000 Anos Entre Vénus e Marte não está sozinho. Em 2015, José Cid planeia gravar Vozes do Além, baseado em poesia de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia – será o encerrar da sua obra no progressivo. Neste momento, porém, interessa-nos mais o que permanece escondido lá atrás.

Imediatamente antes de 10.000 Anos houve o EP Vida (Sons do Quotidiano) (1977), gravado com os Cid, Scarpa, Carrapa & Nabo. Dois anos antes, fora editadoOnde Quando Como Porquê – Cantamos Pessoas Vivas, o último álbum creditado ao Quarteto 1111. Inspirado e adaptado de um texto de José Jorge Letria, foi a carta musical de José Cid à revolução de Abril. “Aprendo e repito a palavra proibida, a palavra esquecida, liberdade”, canta.

É uma belíssima peça musical, gravada com António Moniz Pereira, Mike Sargeant e Vitor Mamede, e onde a assinatura melódica de Cid investe por um bucolismo folk que plana, guiado pelo Moog e Mellotron, até um universo onírico, e que acelera, guiado pela guitarra, pelo rock mais eléctrico, declaradamente prog. Foi e permanece praticamente ignorado. Para José Cid, para tal concorrem duas razões. “Tudo o que sejam faixas com mais de quatro minutos não passam na rádio. Quando gravámos um álbum conceptual já sabíamos que não ia passar e que só aqueles que gostavam daquela área musical é que o iriam buscar”. Além disso, acrescenta Cid, “eu tinha o estigma de viver numa casa muito bonita, de ter cavalos e um bom carro. Isso fez muita gente da cultura pensar que eu não era um deles. Isto quando eu, na minha posição de neo-monárquico, sempre fui abrangente e conciliante entre a esquerda e a direita portuguesas. Na maior parte das questões, aliás, disse sempre que era a esquerda que tinha a razão”.

José Cid é um inefável conversador que salta de tema em tema, de ideia em ideia, com a mesma agilidade com que trocava uma balada romântica apontada ao mainstream por um álbum de rock progressivo. Se puxamos do 10.000 Anos e ele nos acaba a criticar a forma como foi feita a descolonização portuguesa ou a falar dos horrores da guerra civil do Uganda, tal acontece porque, para ele, tudo isso está ligado. “Este álbum continua perfeitamente actual para as pessoas da minha geração que sonharam com um planeta melhor e que não o encontraram ao fim destes anos todos”. Continua: “À excepção de um Martin Luther King, de um Mandela, de um Kennedy ou de um Sá Carneiro, os Bushs todos sentaram-se nos lugares de decisão e aniquilaram o planeta”. “10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte” era para os outros. “Dá-nos a possibilidade de fugir de um planeta com o qual não concordámos e com a qual não concordamos. Vimos pouco a pouco o mundo acabar e ficámos calados, não se deu um grito, não se fez um gesto. Nem a própria ruína nos conseguiu manter acordados”. Cid está a citar o que canta no disco. Que é ficção-científica em rock progressivo. Mas existe mesmo. Como se comprovou ontem enquanto o disco renascia perante nós. Como se comprovará hoje e amanhã. Em palco.