Poesia sem qualidades

Depois de textos esparsos em revistas, de Livre Arbítrio e de outros mais para trás, Tiago Araújo publica Respirar debaixo de água, mais uma vez com capa e ilustrações de Luís Henriques. Poemas, fragmentos, ou palavras sem género? Por trás de um discurso aparentemente atonal, está um sujeito paciente e passivo, céptico mas não cínico, sem lirismo de maior, a não ser quando se envolve um ‘tu’ amoroso. Os títulos são enigmáticos. As frases encadeiam-se sem uso de maiúsculas, transgredindo as regras. Os finais de verso deixam em aberto, como se de uma ritournelle disfórica se tratasse. Nem sobranceira nem soberba — antes serena, amortecida, desideologizada —, a poesia de Tiago Araújo é uma poesia da inteligência, culta, tecida entre várias intertextuali-dades, uma poesia algo secreta que joga e entre o que de si se desvenda e o que permanece como segredo. Pode-se imaginar, o autor chega a referi-lo, que houve antes “projectos de vida alternativos”, até audácias do encontrar a praia sob a calçada, isto é, uma força capaz de “acender pequenos lagos/ de gasolina entre as falhas do alcatrão”.

Respirar debaixo de água alicerça-se entre dois mastros, os poemas que abrem e encerram o livro — Sétimo Canto de Maldoror e Oitavo Canto de Maldoror —, mas o perfil do autor, descrente convicto, em nada se assemelha a Isidore Ducasse. Através desses poemas, volta a ganhar vida uma certa viagem de Ulisses, de regresso a Ítaca. De resto, um universo semântico marítimo pontua este livro, assim como os universo bíblico e shakespeariano. De todos eles são convocados perdedores: Yorick, o bobo, cujos restos mortais (o crânio) Hamlet encontra no seu regresso à Dinamarca; Caliban; Lázaro e Lot; os companheiros de Ulisses (Elpenor, Euriloco, Perímedes), todos de morte ridícula e precocemente inelutável, quais marionetas estrebuchando os membros que têm ou não têm e de que sentem por isso uma falta ainda maior — uma falta da falta, quando num átimo a ranhura da consciência salta fora de água e percebe. Assim alastra a melancolia que em parte dá o mote a este livro — e que não é inevitável, sorri mansamente o poeta. Respirar debaixo de água navega num imaginário de queda, de aproximação ao abismo do ter aprendido lentamente a navegar, a matar o tempo, de dissolução da memória numa ou em duas gerações (“colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabista/ por pouco dinheiro”).

O primeiro poema é uma chave de leitura do todo: “os que não morrem novos prolongam por mais tempo o leite dos/ fracassos./ independentemente do que digam teorias literárias/ sobre a autonomia da obra em relação ao autor,/ sem biografia é difícil continuar a escrever./ talvez se fosse menos feliz, bebesse mais, fosse mais radical/ nas convicções ideológicas, mais violento no amor (...) porque sinto a adolescência como um membro amputado que/ continua a doer depois de desaparecido, uma/ dor fantasma num corpo fantasma”. E ainda: “nasci gémeo, o meu irmão falso/ morreu quase à nascença, formei a personalidade/ como a memória da metade que me falta, é o meu irmão que à noite se contorce a coreografar/ a comédia dos enganos(...) um/ sentido crítico demasiado apurado e um/ distanciamento em relação a mim próprio enquanto/ personagem sem vontade das narrativas que criei”.

Poesia então do recuo, da derrota, da perda de uma impossível coincidência entre o sujeito e o mundo disparatado, em fragmentação. O traço de unidade que envolve esta escrita é o movimento em si, o devir maquinal de tudo à volta, esse exterior que roda, o próprio rodar. O sujeito, ironicamente, refugia-se numa das suas ficções, talvez a mais colada à pele: uma ilha na cidade (Londres?). Pululam aliás nos poemas de Tiago Araújo indícios ostensivamente biográficos, “reais”, contra todas as evidências do fazer literário e da sua teoria: a mercearia ali na rua dos Lusíadas, em Alcântara onde compra maçãs, ou o café na esquina do Largo do Calvário.

São textos de um sujeito para além de qualquer redenção, uma escrita que nasce pós qualquer coisa. A meio, irrompem imagens fortes, que levam o leitor a não poder deixar de se reconhecer nos gestos. É que a imaginação joga e empata com a atenção, as duas exímias: “em frente ao computador a gerir a insónia, o tempo que sobrou/ do dia/ é mais do que suficiente para fazer o registo das perdas,/ encenar a descida da cruz, (...) neste tribunal diário, o que fui/ julga quem sou”.

Se calhar o autor é outra sigla do avesso Maldoror. O livro, em si, é brilhante.

 

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Depois de textos esparsos em revistas, de Livre Arbítrio e de outros mais para trás, Tiago Araújo publica Respirar debaixo de água, mais uma vez com capa e ilustrações de Luís Henriques. Poemas, fragmentos, ou palavras sem género? Por trás de um discurso aparentemente atonal, está um sujeito paciente e passivo, céptico mas não cínico, sem lirismo de maior, a não ser quando se envolve um ‘tu’ amoroso. Os títulos são enigmáticos. As frases encadeiam-se sem uso de maiúsculas, transgredindo as regras. Os finais de verso deixam em aberto, como se de uma ritournelle disfórica se tratasse. Nem sobranceira nem soberba — antes serena, amortecida, desideologizada —, a poesia de Tiago Araújo é uma poesia da inteligência, culta, tecida entre várias intertextuali-dades, uma poesia algo secreta que joga e entre o que de si se desvenda e o que permanece como segredo. Pode-se imaginar, o autor chega a referi-lo, que houve antes “projectos de vida alternativos”, até audácias do encontrar a praia sob a calçada, isto é, uma força capaz de “acender pequenos lagos/ de gasolina entre as falhas do alcatrão”.

Respirar debaixo de água alicerça-se entre dois mastros, os poemas que abrem e encerram o livro — Sétimo Canto de Maldoror e Oitavo Canto de Maldoror —, mas o perfil do autor, descrente convicto, em nada se assemelha a Isidore Ducasse. Através desses poemas, volta a ganhar vida uma certa viagem de Ulisses, de regresso a Ítaca. De resto, um universo semântico marítimo pontua este livro, assim como os universo bíblico e shakespeariano. De todos eles são convocados perdedores: Yorick, o bobo, cujos restos mortais (o crânio) Hamlet encontra no seu regresso à Dinamarca; Caliban; Lázaro e Lot; os companheiros de Ulisses (Elpenor, Euriloco, Perímedes), todos de morte ridícula e precocemente inelutável, quais marionetas estrebuchando os membros que têm ou não têm e de que sentem por isso uma falta ainda maior — uma falta da falta, quando num átimo a ranhura da consciência salta fora de água e percebe. Assim alastra a melancolia que em parte dá o mote a este livro — e que não é inevitável, sorri mansamente o poeta. Respirar debaixo de água navega num imaginário de queda, de aproximação ao abismo do ter aprendido lentamente a navegar, a matar o tempo, de dissolução da memória numa ou em duas gerações (“colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabista/ por pouco dinheiro”).

O primeiro poema é uma chave de leitura do todo: “os que não morrem novos prolongam por mais tempo o leite dos/ fracassos./ independentemente do que digam teorias literárias/ sobre a autonomia da obra em relação ao autor,/ sem biografia é difícil continuar a escrever./ talvez se fosse menos feliz, bebesse mais, fosse mais radical/ nas convicções ideológicas, mais violento no amor (...) porque sinto a adolescência como um membro amputado que/ continua a doer depois de desaparecido, uma/ dor fantasma num corpo fantasma”. E ainda: “nasci gémeo, o meu irmão falso/ morreu quase à nascença, formei a personalidade/ como a memória da metade que me falta, é o meu irmão que à noite se contorce a coreografar/ a comédia dos enganos(...) um/ sentido crítico demasiado apurado e um/ distanciamento em relação a mim próprio enquanto/ personagem sem vontade das narrativas que criei”.

Poesia então do recuo, da derrota, da perda de uma impossível coincidência entre o sujeito e o mundo disparatado, em fragmentação. O traço de unidade que envolve esta escrita é o movimento em si, o devir maquinal de tudo à volta, esse exterior que roda, o próprio rodar. O sujeito, ironicamente, refugia-se numa das suas ficções, talvez a mais colada à pele: uma ilha na cidade (Londres?). Pululam aliás nos poemas de Tiago Araújo indícios ostensivamente biográficos, “reais”, contra todas as evidências do fazer literário e da sua teoria: a mercearia ali na rua dos Lusíadas, em Alcântara onde compra maçãs, ou o café na esquina do Largo do Calvário.

São textos de um sujeito para além de qualquer redenção, uma escrita que nasce pós qualquer coisa. A meio, irrompem imagens fortes, que levam o leitor a não poder deixar de se reconhecer nos gestos. É que a imaginação joga e empata com a atenção, as duas exímias: “em frente ao computador a gerir a insónia, o tempo que sobrou/ do dia/ é mais do que suficiente para fazer o registo das perdas,/ encenar a descida da cruz, (...) neste tribunal diário, o que fui/ julga quem sou”.

Se calhar o autor é outra sigla do avesso Maldoror. O livro, em si, é brilhante.