Por aqui passou a História
Acontece assim, como no cinema. Num momento estamos num restaurante vazio e silencioso, a olhar para uma faca de prata com uma águia gravada no cabo, e no momento seguinte tudo se esfuma em redor, e nós e a faca somos transportados para outra sala, cheia de movimento, vozes animadas, risos. A faca está lá porque aquela é a história dela. Nós, porque fomos atrás. Não é uma memória nossa. Mas ficamos a espreitar.
Foi o que me aconteceu uma destas tardes na sala do restaurante Aviz, em Lisboa. O antigo serviço de prata, com todas as peças marcadas pela mesma águia de asas abertas, está guardado numa vitrina, junto com outros objectos, um menu de outros tempos, escrito em francês, e antigas fotografias de uma sala de jantar, com as mesas cheias de iguarias, os carrinhos de apoio em prata e, no centro, aquele incrível objecto desaparecido que é uma prensa de pato (é certo que já ninguém esmaga os ossos de um pato à mesa para fazer um molho misturando a medula óssea, o sangue e o fígado).
O Aviz foi o melhor restaurante de Lisboa. À frente da casa estava o mestre João Ribeiro e por detrás dele a família Rugeroni, que no início dos anos 1930 transformou o Palacete Silva Graça (cujo primeiro proprietário fora José Joaquim Silva Graça, director do jornal O Século) num hotel de luxo, que seria então o mais requintado da capital. Apesar de se tratar de um palacete relativamente pequeno, situado na Av. Fontes Pereira de Melo, e desenhado originalmente pelo arquitecto Ventura Terra para habitação, funcionou durante quase três décadas como hotel e atraiu a mais fina flor da sociedade nacional e internacional.
Na fachada tinha uma enorme águia, de asas abertas. E ainda hoje, na sala do novo Aviz, há águias sobre a porta, na alcatifa do chão, e em cada peça usada para servir as refeições.
A nossa viagem no tempo atrás de uma faca de prata podia ter-nos feito aterrar no meio de um importantíssimo jantar que terá acontecido no hotel durante qual o duque de Windsor, antigo rei Eduardo VIII de Inglaterra, disse “não” aos alemães que o queriam repor no trono como monarca-fantoche.
Ou no meio do banquete que o hotel serviu no Palácio da Ajuda à rainha Isabel II de Inglaterra e ao duque de Edimburgo, “talvez o acontecimento mais elaborado e formal que o Aviz alguma vez preparara”, lê-se num livro sobre a história do hotel. Na ocasião, a equipa de sala vestia de libré e servia galinha à moda do Convento de Alcântara (em vez da tradicional perdiz, um dos pratos mais famosos do Aviz).
Ou ainda no quarto de Eva Perón, o número 72, “famoso pela sua fabulosa casa de banho”, e que, noutra ocasião, recebeu também o realizador Cecil B. DeMille. Pelo Aviz passaram Mastroianni, Sinatra, Ava Gardner, Maria Callas e muitos, muitos outros. E no hotel viveu — e morreu — Calouste Gulbenkian.
Na cozinha, João Ribeiro cozinhava para todos eles. Entrou para o Aviz em 1936, três anos depois da inauguração, viu-o chegar ao fim no palacete da Fontes Pereira de Melo, em 1961, e trabalhou ainda nos primeiros tempos do restaurante no Chiado, até se reformar em 1975. Enquanto no lugar do palacete se erguia o edifício Imaviz e o Hotel Sheraton, o restaurante Aviz instalava-se no primeiro andar do número 12-B da Rua Serpa Pinto, onde anteriormente tinha funcionado o “Silva”, local de eleição de Eça de Queirós.
Da cozinha, dos tempos do palacete e depois do Chiado, ficaram muitas histórias, algumas das quais Joana Stichini Vilela recorda no livro LX60 — João Ribeiro abastecia-se de ovos junto de D. Maria, a governanta de Salazar, que fazia criação na residência oficial; o restaurante era famoso pelo salmão, espadarte e pato fumados num fumeiro no local, algo único na Lisboa da época; e as suas especialidades, entre as quais, o bacalhau à Conde da Guarda, o frango Kiev ou a perdiz à Convento de Alcântara, eram elogiadas por todos, incluindo gastrónomos estrangeiros como o britânico Clement Freud.
Dessa sala no primeiro andar da Rua Serpa Pinto resta hoje, no novo Aviz na Rua Duque de Palmela, onde esta viagem começou, resta… quase tudo. Está lá a baixela de prata Christofle, o serviço Vista Alegre, a colecção de relógios de bolso oferecidos por clientes e expostos em antigas chaves do hotel, a estátua de uma índia, os banquinhos verdes para apoiar os pés ou pousar as malas, o carrinho das bebidas em prata e o rechaud, onde ainda se trincha o rosbife e se servem os molhos. Está o atencioso Américo Miranda, chefe de sala e guardião das tradições de sempre. E, na cozinha, Cláudio Pontes respeita e reinventa os grandes clássicos do mestre João Ribeiro, acrescentando as suas criações — e em cada prato, cada faca, cada garfo, vigia, atenta, uma águia de asas abertas.