Deixaram a guerra mas a guerra ficou com eles
Deixaram a guerra mas a guerra ficou com eles: as sequelas dos veteranos do Afeganistão e do Iraque.
Mais de metade dos 2,6 milhões de americanos enviados para as guerras do Iraque e do Afeganistão debatem-se com problemas mentais e físicos resultantes do seu serviço militar, sentem-se desligados da vida civil e acham que o Governo não satisfaz as necessidades desta geração de veteranos, indica uma sondagem conduzida pelo Washington Post e pela Kaiser Family Foundation.
Os longos conflitos, que levaram muitos soldados a ser mobilizados várias vezes e a operar sob uma quase constante ameaça de ataque, produziram um número muito maior de vítimas emocionais do que aquele que a maior parte dos estudos governamentais anteriores e avaliações independentes admitiam: um em dois diz que conhece um colega de serviço que já tentou suicidar-se e mais de um milhão sofre de problemas de relacionamento e tem acessos de raiva — dois indicadores fundamentais de stress pós-traumático.
Os veteranos sentem-se frequentemente frustrados com os serviços prestados pelo Department of Veterans Affairs (Departamento de Veteranos, VA), pelo Pentágono ou outras agências governamentais. Quase 60% acha que o VA está a fazer um trabalho “mediano” ou fraco face aos seus problemas e metade diz que o Exército não faz o suficiente para ajudar na transição para a vida civil, que tem sido difícil para 50% dos interrogados que deixaram o activo. Quase 1,5 milhões dos que combateram naquelas guerras consideram que o Governo não está a dar resposta às necessidades dos seus camaradas.
“Quando levantei a mão direita e disse: ‘Apoiarei e defenderei a Constituição dos Estados Unidos da América’, quando lhes dei tudo o que podia, esperava alguma coisa em troca”, diz Christopher Steavens, antigo suboficial do Exército que esteve entre os 819 veteranos inquiridos. Combateu no Iraque e no Kuwait há dois anos, onde ficou ferido num acidente de construção. Depois de deixar o Exército no Verão passado, apresentou uma queixa ao VA a pedir cuidados médicos e uma indemnização financeira. Ainda não recebeu resposta.
“É ridículo ter esperado sete meses só para ser examinado por um médico — absolutamente ridículo”, diz.
Ainda assim, a vasta maioria dos veteranos não está amargurada ou arrependida. Tendo em conta tudo o que sabem agora sobre a guerra e o serviço militar, quase 90% diz que voltaria a alistar-se.
“O que fizemos teve um impacto positivo lá”, afirma o sargento do Army National Guard [força de reserva] do Texas David Moeller, que passou dois anos no Iraque. “Não me arrependo. É algo que voltaria a fazer uma e outra vez.”
Depois de entrevistas detalhadas com veteranos de guerra escolhidos aleatoriamente em todos os ramos das forças militares, incluindo tanto os que ainda estão ao serviço como os que já o abandonaram, a sondagem nacional permite pela primeira vez um olhar sobre as vidas e opiniões dos combatentes modernos — um quadro de voluntários que na maioria se alistou depois dos ataques de 11 de Setembro de 2011. Essa força, formada por soldados de praticamente todos os cantos do país e frequentemente enviada para várias missões de combate de um ano, incluiu mais de 280 mil mulheres e milhares de rapazes de 18 anos.
Apesar de mais de 6800 oficiais terem morrido no Iraque e no Afeganistão, os avanços nas protecções pessoais, de transportes e nos medicamentos de combate deram aos soldados mais hipóteses de voltar a casa do que teve qualquer outra geração de combatentes de guerra.
“Eles voltaram para um país que os acolheu — calorosa, forte e positivamente — e que dá um enorme valor e gratidão ao seu serviço”, comenta o secretário da Defesa, Chuck Hagel. “Isso é muito importante.”
Alguns estão a vingar — frequentam a faculdade, paga na totalidade por uma lei pós-11 de Setembro, encontram patrões que apreciam as suas capacidades de liderança e ética de trabalho; recebem os cuidados médicos de que precisam. Mas a sondagem também concluiu que centenas de milhares de outros sentem que foram deixados para trás numa zona de pós-guerra por desbravar, lutando por subsídios, batalhando por um emprego, combatendo demónios libertados pela guerra ou lidando com famílias desfeitas.
As suas respostas revelam formas diferentes de ver a vida que levam, o seu tempo de serviço ou a forma como são tratados pelo Governo. Quase três quartos acreditam que o americano comum aprecia o seu serviço, mas menos — apenas 52% — gostam de falar sobre as suas experiências de guerra com conhecidos ou estranhos. Quase 90% desempenharam uma acção no Iraque ou no Afeganistão que os deixa orgulhosos, mas só 35% acham que as duas guerras valeram a pena.
“Não acho que haja qualquer contradição nos dados”, comenta o general Martin Dempsey, presidente do Estado-Maior das Forças Armadas, numa entrevista. “Acho que este aspecto do serviço, e o de ser honesto e digno da confiança dos homens e mulheres que estão ao lado, é provavelmente o que mais contribui para os 90%. Eles estão orgulhosos daquilo que fizeram. Acham que cumpriram a sua missão e que supostamente os governos eleitos do Iraque e do Afeganistão não cumpriram as suas.”
"É como se tivesse 60 anos"
Mais de 600 mil veteranos do Iraque e do Afeganistão que ficaram com incapacidades totais ou parciais devido a ferimentos físicos ou psicológicos estão a receber apoio financeiro vitalício por parte do Governo — um número que poderá aumentar substancialmente à medida que novas doenças são diagnosticadas e que as queixas ao VA vão sendo seguidas. “O que é diferente nesta geração? Pedimos-lhes que fizessem muito mais, em unidades militares menores, em algumas das guerras mais longas da nossa história”, afirma o secretário do VA Eric Shinseki. Destacamentos múltiplos criaram aquilo a que chama “efeito multiplicador” dos problemas de saúde e stress de combate, com um custo geral que ainda está por avaliar. “Há ainda mais trabalho a fazer em termos de investigação e na compreensão do que irá ser o impacto total.”
Para muitos veteranos, as suas experiências no Iraque e no Afeganistão foram intensas. Um em cada três pensa diariamente no seu tempo de serviço. Entre estes, está Nicholas Johnson, um antigo especialista da Army National Guard no Arkansas que passou um ano no Iraque, para onde foi em 2006. O seu pelotão recebeu ordens para preencher crateras provocadas por bombas na estrada, o que o obrigava a partir asfalto vestido com um fato de protecção pessoal de quase 23 quilos. Voltou para casa com uma vértebra fracturada, três discos nas costas, zumbido nos ouvidos e stress pós-traumático debilitante, causado pela carnificina que testemunhou nas estradas de Bagdad.
“Agora não consigo arranjar um bom emprego porque… tenho de ser frontal e dizer que tenho esta debilidade, tenho as costas desfeitas”, comenta. “Por isso, agora, as fábricas aqui em Topeka, onde vivo, são tipo: ‘Uau, ele tem experiência militar. Bestial. Tem experiência de gestão. Isso é bom. Algumas qualificações — tudo bem. Oh, ele desfez as costas. Não pode fazer isto, sabe’.”
Johnson, que tem 32 anos “mas é como se tivesse 60”, confronta-se com o resultado do seu tempo de serviço quando, a caminho de um emprego na Lowe’s para receber o salário mínimo, tem de evitar a estrada interestadual 70 porque lhe faz lembrar a estrada para o aeroporto de Bagdad, frequentemente atacada por rebeldes; ou quando entra em pânico ao ver lixo espalhado na rua, porque era assim que os guerrilheiros escondiam os explosivos; ou quando tem de se encher de comprimidos para as dores e de antidepressivos; ou quando usa uma bengala para andar; ou quando tem de pedir ajuda aos colegas para transportar umas caixas. “Deixei a zona de guerra”, comenta. “Mas a zona de guerra nunca me deixou.”
Esta geração de veteranos é mais diversificada do que qualquer outro contingente que a América enviou para a guerra. Trinta e cinco por cento são não-brancos, mais de um em dez são mulheres e um quarto tem agora 40 anos ou mais.
Mas uma parte da força mantém-se homogénea: metade são do Sul, dois terços não tem licenciatura e quase seis em dez vivem em zonas não urbanas.
Mais de oito em dez foram destacados pelo menos uma vez no Iraque ou numa operação de apoio a essa guerra. Dos que foram destacados no Iraque, 47% foram enviados duas ou mais vezes, e 29% — mais de meio milhão de oficiais — passaram dois anos ou mais no país. Pelo contrário, 29% dos veteranos que foram enviados para o Afeganistão tiveram de cumprir dois ou mais destacamentos e 16% passaram pelo menos dois anos ali.
A totalidade dos 2,6 milhões de veteranos pós-11 de Setembro inclui centenas de milhares de soldados que não serviram dentro das fronteiras do Iraque ou do Afeganistão, mas trabalharam no apoio às operações nesses países em bases ou navios no Médio Oriente ou Sul Asiático. Muitas vezes esses destacamentos eram árduos e arriscados e envolviam a separação da família. Ao contabilizar os que foram destacados, o Departamento de Defesa não distingue estes daqueles que foram para o terreno no Iraque ou no Afeganistão.
Mais de 730 mil foram como membros de reservas ou da National Guard, sendo obrigados a suspender as suas vidas civis até um ano, às vezes mais do que uma vez. Foi o maior uso destas forças desde a II Guerra Mundial, maior ainda do que durante as guerras da Coreia e do Vietname.
Os veteranos vêm de famílias onde o serviço militar é uma tradição: mais de quatro em dez tinham pais que estiveram no Exército, e metade tinha pelo menos um avô que lá esteve. Quase 40% dizem que todos ou a maioria dos amigos serviram no Exército. Pelo contrário, uma sondagem da Kaiser Family Foundation feita em Dezembro descobriu que 32% dos adultos americanos não tinham “praticamente nenhum” ou mesmo nenhum amigo que já tivesse estado no Exército.
Ligeiramente mais de metade tem saudades do tempo que passou na guerra. Destes, dois terços falam dos laços que fizeram com camaradas militares. “Foi um tempo único”, diz Kevin Ivey, piloto de helicópteros do Exército na reforma, que passou um ano no Afeganistão, a partir de 2004. “Tenho saudades da minha equipa, dos tipos com quem estava, da organização. Na guerra fazem-se amizades para a vida.”
Alguns veteranos vêem-se acima do resto dos americanos, como voluntários nobres que se chegaram à frente para promover e proteger os interesses da nação, enquanto o resto do país seguia a vida do costume. Sessenta e três por cento acham que os militares são mais patrióticos do que aqueles que não se alistaram; 54% consideram que um membro do Exército tem mais moral e valores éticos do que a generalidade da população civil.
Quase sete em dez sentem que geralmente o americano médio não percebe a sua experiência, e um pouco mais de quatro em dez acham que as enormes expressões de apreço que os veteranos recebem – frequentemente em aeroportos, bares e eventos desportivos – são apenas frases que as pessoas querem ouvir. Mais de 1,4 milhões de veteranos sentem-se desligados da vida civil.
“Muitos veteranos acham que é mais fácil falar uns com os outros, especialmente se for sobre as suas experiências durante a guerra”, diz Jennifer Smolen, que esteve no Iraque durante um ano com uma unidade de engenharia do Exército e que agora é activa num posto da Legião Americana na zona de Seattle. “Há a sensação de que os civis que não estiveram lá simplesmente não percebem.”
"Aguento mais uma vez"
Moeller, o sargento da National Guard do Texas, regressou do seu primeiro destacamento no Iraque com dores nas costas tão fortes que tinha de dormir sentado e direito. Em 2009, quando a sua unidade foi de novo mobilizada, ele “podia ter acenado com a bandeira médica”. Mas quis regressar com os seus companheiros “para terminar a missão, porque foi isso que jurei fazer”. Por isso ficou calado e aguentou. Quando voltaram a ser chamados outra vez, em 2012, para ir para o Afeganistão, ele tentou ser novamente mobilizado. “Aguento mais uma vez”, pensou para si. Mas um médico do Exército não foi da mesma opinião. “Não é altura de começar a tomar conta de si?”, sugeriu.
De acordo com o Departamento de Defesa, 51.908 oficiais ficaram “feridos em combate” no Iraque, Afeganistão ou em missões de apoio a essas guerras. Esse número não inclui Moeller — ou centenas de milhares de outros — porque o Pentágono só conta aqueles feridos em “resultado directo de acção hostil”. Se um ferimento não ocorreu durante uma operação de combate, ou se foi resultante de um acidente, ou se foi devido ao uso diário de equipamento de protecção durante um ano, não entra na lista.
Mas no Iraque e no Afeganistão, onde não havia linhas da frente, onde explosivos improvisados eram a arma escolhida pelo inimigo, onde os soldados usavam máscara protectora a maior parte do tempo, as feridas que não encaixam na definição clássica militar tornaram-se a norma. Danos cerebrais traumáticos. Zumbidos persistentes nos ouvidos. Tensão arterial elevada.
Uma vez regressados a casa, com a adrenalina a baixar, os soldados começam a confrontar-se com os custos de tudo o que usaram para se proteger, das viagens de partir ossos feitas nos camiões à prova de minas, das minúsculas partículas da areia do deserto que respiraram devido ao pó levantado pelos veículos militares. Dores de costas. Joelhos desfeitos. Dores de cabeça. Tosse persistente.
Para mais de 1,1 milhões de veteranos, a sua participação nas guerras piorou o seu estado de saúde. Dezoito por cento — cerca de 470 mil actuais e antigos oficiais — afirmaram ter ficado gravemente feridos durante o serviço no Iraque, Afeganistão ou no apoio às guerras. Alguns dos feridos viram a vida alterar-se drasticamente — perderam membros, ficaram com queimaduras generalizadas ou sofreram danos cerebrais significativos. Outros são ferimentos mais prosaicos, muitas vezes resultado de acidentes ou da protecção corporal, mas que ainda assim deixaram os veteranos com dores duradouras.
Edna Harris, antiga sargento do Exército que foi duas vezes mobilizada para o Iraque, caiu de um camião de cinco toneladas, ferindo várias vértebras. Quando foi à clínica na base de operações seguinte, a única coisa que lhe deram foi alguns comprimidos Motrin [ibuprofeno]. Harris está de volta a casa, em Jacksonville, Florida, mas uma dor insistente nas costas limita-lhe os movimentos. “Não posso brincar com o meu filho como queria”, comenta. “Não posso correr atrás dele, ou jogar à bola com ele.”
Durante um ano, Kevin Ivey pilotou helicópteros no Afeganistão. Enfiado num aparelho vibrante dez horas por dia, vestido com um fato de protecção pessoal, acabou por ficar com problemas nervosos e degeneração de ossos nas costas e pescoço. “Deixou-me bastante desfeito”, diz.
Justin Peachee, sargento no Texas Army National Guard, passou um ano na infantaria no Iraque, carregando com uma mochila pesada, uma espingarda e munições, para além da farda de protecção. Tem problemas nas cartilagens dos joelhos. Tem 26 anos. “Só quero que os meus joelhos voltem a ser os meus joelhos”, diz. “Não quero joelhos de avô nesta altura da minha vida.”
Um em cada três entrevistados dizem que o VA ou o Departamento de Defesa determinaram que eles tinham algum tipo de invalidez relacionada com o serviço militar. A maioria não tem cicatrizes. Tal como Peachee, Ivey e Harris, as suas feridas físicas estão debaixo da pele, ou dentro da cabeça.
A sondagem concluiu que as guerras causaram problemas de saúde física ou mental em 31% dos veteranos — em mais de 800 mil. Quando se fazem perguntas mais específicas, os níveis aumentam: 41% — mais de um milhão — afirmam ter acessos de raiva e 45% têm problemas de relacionamento com as mulheres, maridos ou parceiros. Ambos são indicadores de stress pós-traumático e podem sugerir níveis de angústia mais elevados do que aqueles que o Governo previu. (...)
Cada um dos oficiais experiencia o stress de guerra de forma diferente e alguns não o sentem durante anos. Para Adam Schiele, um ex-agente da polícia militar, levou uma década. Recentemente, as súplicas de um afegão que ficava às portas da base americana para tentar ter ajuda médica para uma sobrinha que tinha ficado gravemente ferida, tem-lhe assombrado os sonhos — assim como as constantes recusas dos médicos da base para examinarem a rapariga, que considera insensíveis e cruéis. Nada tinha explodido. Ninguém tinha morrido. Era algo que tinha acontecido dez anos antes. Mas este incidente, que estava como que adormecido na sua cabeça, veio ao de cima quando atacou um colega que é guarda prisional na instituição correccional onde trabalha. Desde então, Schiele ficou de baixa por invalidez e o episódio vem-lhe à memória como nunca tinha acontecido. “Fico sentado em casa, à espera que a imagem se desvaneça”, diz. “É desanimador. É desencorajador. Faz-nos sentir inadequados.” Os soldados “não precisam de ser catalogados como ‘feridos em combate’ para estarem ‘feridos’”, comenta. “Muitos de nós fomos feridos, uns mais do que outros, mas todos demos o corpo às balas enquanto lá estávamos.”
"Ainda estamos a fazer pouco"
Os veteranos que estiveram no Iraque e no Afeganistão têm feito um uso sem precedentes dos serviços do VA. Isto deve-se em muito à decisão da presidência Obama de providenciar cinco anos de tratamentos de saúde grátis para todos eles. Desde 2002 que um milhão dos 1,7 milhões que já não estão no activo, nem na Reserva, nem na National Guard, receberam, pelo menos uma vez, tratamentos de saúde ao abrigo desse programa. Cerca de 45% tentaram obter indemnização para situações de invalidez relacionadas com as missões que fizeram. Por comparação, apenas 21% dos que participaram na Guerra do Golfo em 1990-91 apresentaram queixas semelhantes. Quase metade dos vetereanos tentou conseguir algum tipo de indemnização, mas apenas um terço conseguiu-a de facto, o que talvez ajude a perceber por que os veteranos acham que o trabalho do VA não passa de “mediano”, se não mesmo “fraco”, para colmatar as necessidades dos colegas.
Nos últimos seis anos, sob a Administração Obama, o VA viu o seu orçamento crescer em mais de 60%. Isto apesar das queixas de organizações de veteranos e de congressistas de que o Department of Veterans Affairs continua amarrado a uma burocracia ineficaz e insuflada.
“Há sempre espaço para melhorias”, diz o secretário Shinseki. Ele acredita que a frustração generalizada se deve mais aos atrasos processuais nos casos de queixa por incapacidade do que à qualidade do serviço prestado pelo VA, algo que espera ver resolvido até final deste ano.
De forma geral, mais de metade dos veteranos dizem que o Governo não está a fazer um bom trabalho para satisfazer os pedidos e necessidades desta nova geração. Mas quando lhes é perguntado sobre a maneira como eles próprios foram, e são, tratados, 60% respondem que “muito bem” ou “excelente”. E elevam ainda mais a fasquia quando se trata dos apoios à sua saúde: oito em cada dez dizem que as suas necessidades, sejam elas físicas, mentais ou emocionais, estão devidamente colmatadas.
Já no que respeita às condições da transição para a vida civil, os veteranos são mais “sanguíneos”. Metade deles consideram que, para quem esteve numa base em solo americano ou no estrangeiro, que nunca teve de se preocupar sobre onde iria viver ou como escrever um currículo e agora tem de saber circular pelas ruas americanas e sobreviver a entrevistas de emprego, os serviços militares não os apoiaram. E metade classifica a sua própria adaptação à vida civil como “muito difícil” ou “difícil”.
Quando lhes perguntamos para descrever, por palavras próprias, as razões para tal ter acontecido, pouco mais de um quarto refere sobretudo motivos relacionados com a gestão de um emprego e a adaptação às novas rotinas no local de trabalho. Uma percentagem semelhante lembra ainda as profundas diferenças entre a vida militar e a civil. Entre os que ainda estão no activo, 43% antecipam que terão uma transição difícil para a vida civil. “Há os que precisam muito de ajuda, mas a maioria — a larga maioria — não precisa mais do que um aperto de mão e uma oportunidade”, diz o general Martin Dempsey. Hagel, por seu lado, diz que os serviços militares têm de ser melhores no sentido de educar os líderes financeiros e os alertar para como a experiência dos veteranos pode ser útil às empresas. “É aí que ainda estamos a fazer pouco e temos de continuar.”
De um modo geral, dois terços dos veteranos consideram ter as ferramentas e a formação necessárias para serem competitivos no mercado de trabalho na vida civil. Mas há diferenças significativas entre os oficiais a quem é exigida licenciatura e patente, e uma maioria, que não tem formação universitária. Quase um quarto dos oficiais-de-patente, no activo ou não, considera que os conhecimentos adquiridos durante a sua vida militar de nada lhes serve num emprego civil; contra a opinião de apenas 2% dos oficiais sem patente.
São também os oficiais sem patente que revelam enfrentar os maiores desafios económicos: destes, 43% dizem que recorreram a um segundo trabalho, ou trabalharam horas extra, para compensar, contra apenas 16% dos oficiais de patente. E um quarto destes últimos teve dificuldades em pagar a renda ou a hipoteca da casa, contra 11% dos oficiais de patente que afirmam ter-lhes acontecido o mesmo.
Quando saiu dos Marines em 2012, April White pensou que conseguiria arranjar um emprego estável que lhe permitisse sustentar-se a si e ao seu filho, então com sete anos, na Carolina do Norte. Apesar de ser uma suboficial, tinha tido experiência enquanto sargento com funções de supervisão e sabia de logística militar por ter sido destacada para o Iraque em 2007. Mandou uma boa resma de candidaturas a empregos administrativos ou relacionados com empresas transportadoras. Só um lhe respondeu com uma proposta de entrevista, mas procurava alguém com grau universitário, que April não tem. Depois de quatro meses a viver do subsídio de desemprego, assinou contrato com uma empresa de construção no Afeganistão, a única possibilidade de emprego que lhe apareceu à frente. “Sempre pensei que quando saísse [dos Marines] ia ter uma vida normal”, comenta. Em vez disso, teve de explicar ao filho porque tinha de partir uma vez mais. “Disse-lhe: ‘Não quero ir para o Afeganistão, mas preciso deste emprego’.”
Agora, April White está de volta a Jacksonville, na Carolina do Norte. E procura tirar algum benefício do pacote de medidas da lei G.I. para ficar perto de casa, conseguir pagar as suas contas e ainda frequentar aulas de Engenharia numa universidade próxima. Este programa gerido pelo VA paga a formação universitária e uma bolsa de apoio à aquisição de material, de livros a material didáctico, e alojamento, e já foi usado por quase metade dos veteranos do Iraque e do Afeganistão. E funcionou, para muitos, como uma câmara de oxigénio antes da entrada na vida civil, permitindo-lhes manterem-se ocupados e escaparem a condições financeiras mais desfavoráveis enquanto tentam descortinar o que será a sua carreira pós-militar.
“Esperar que se vai encontrar logo um emprego — e um bom emprego — mal se sai da vida militar, é chão que já deu uvas”, diz White. “Temos de estudar e ter paciência — e sorte.”
"Era o nosso trabalho"
Apesar do seu enorme orgulho e pouco arrependimento, os veteranos olham para a necessidade dos conflitos de formas diferentes. Apenas 53% acreditam que valeu a pena combater a guerra do Afeganistão e só 44% dizem o mesmo do Iraque. Um pouco mais de um terço — quase 900 mil veteranos — acreditam “convictamente” que a guerra no Iraque não valeu a pena.
Estes números são ligeiramente mais elevados do que entre o conjunto da população, mas ainda assim revelam uma nuance fundamental entre a força de voluntários militares: muitos deles encaram o seu serviço como uma profissão — quase metade alistou-se com a intenção de servir durante pelo menos 20 anos — e separam as suas missões individuais da utilidade geral das guerras.
“Certo, errado ou indiferente, é uma coisa que nos propusemos fazer”, comenta Kenneth Harmon, um sargento dos Marines na reforma que esteve ao serviço durante 23 anos e foi enviado para o Iraque e para o Afeganistão. “Era o nosso trabalho. Recebíamos ordens. Obedecíamos.”
Esta separação é mais fácil para quem valoriza as guerras. “Quando vejo pessoas a sorrir por estarmos lá, quando vejo miúdos felizes por haver soldados americanos com as botas no terreno, reafirmo a minha crença de que estamos a fazer a coisa certa”, diz Santino Fort, sargento da Força Aérea na reforma que foi duas vezes enviado para o Afeganistão e outra para o Iraque.
Outros foram ficando cada vez mais frustrados à medida que ouviam as notícias sobre os desenvolvimentos nos dois países: o Presidente afegão, Hamid Karzai, a recusar-se a assinar um acordo de segurança com os EUA, ou a cidade iraquiana de Falujjah a cair nas mãos de guerrilheiros da Al-Qaeda vindos da Síria. Para Peachee, o sargento da National Guard com “joelhos de avô”, o Iraque parece agora ter sido “uma grande perda de tempo”. “Entregámo-lo e voltou para o caos e a anarquia”, afirma. “O Governo e os cidadãos não respeitam nada daquilo por que lutámos.”
Mas isso não mudou a sua posição em relação à National Guard. “Alistei-me porque quero fazer coisas interessantes”, diz. Há alguns meses voltou a alistar-se para mais seis anos.
Para todos os militares que serviram 20 ou mais anos, há prémios acrescidos às pensões de reforma e aos seguros de vida, vitalícios para a família. Mas os outros — incluindo os que foram recrutados depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001 e que foram enviados por várias vezes para o Afeganistão e o Iraque mas acabaram por abandonar as forças armadas — ficam sem direito a qualquer benefício na sua reforma. Mais de metade dos veteranos considera que o sistema dos “20 anos” assegura “o montante devido” de compensação para os reformados. Mas também querem ver aumento nos benefícios para os outros. Pouco mais de metade assumem que o grupo recebe menos benefícios do que os que seriam merecidos.
Entre eles, está Jeffrey Arena, ex-sargento da Divisão Aerotransportada 101 que por duas vezes foi destacado por dois anos para o Iraque e uma para o Afeganistão. Tinha planeado servir o Exército durante 20 anos, mas depois usou a sua experiência de infantaria para se candidatar a funções judiciais. Contudo, no ano passado, tanto a anca como a perna começaram a doer durante um dos seus exercícios físicos de rotina matinais. Consultado um médico de Fort Campbell, no Kentucky [a base da Divisão 101], o diagnóstico foi de que a ferida que tinha sofrido durante uma das suas missões no Iraque, enquanto perseguia rebeldes, em 2006, era afinal bastante mais séria do que na altura teria sido detectado pelos médicos no terreno: Jeffrey tinha fracturado o fémur e rompido cartilagens na anca.
O Exército ofereceu-se para custear a substituição de anca, algo que Jeffrey recusou. “Tenho apenas 35 anos. Não quero que me substituam a anca com 35 anos”, diz. “Nunca mais conseguiria correr ou saltar. Tenho três filhos e quero estar activo para eles.”
Com ou sem substituição da anca, o diagnóstico ditou o fim da sua carreira militar. E por estar incapaz para os exames físicos anuais, o Exército propôs-lhe a reforma por razões médicas mas apenas numa gradação de 20% de incapacidade, o que deixa Jeffrey no papel de não se poder candidatar a uma pensão militar ou cobertura de seguro de saúde vitalício, isto apesar de ter passado 38 meses na guerra e de ter sofrido ferimentos graves enquanto esteve destacado. “Bati-me por esta nação e isso deveria valer para alguma coisa”, comenta.
A data de 13 de Fevereiro foi o último dia em que passou como soldado. Nos meses que antecederam a sua saída ainda pensou em integrar um estágio patrocinado pelo Exército e vocacionado para preparar os militares para carreiras na vida civil. Mas quando pediu permissão ao comandante da sua unidade para frequentar o estágio, foi-lhe negada. “Disseram-me que não me queriam pagar para estar noutro emprego”, conta Jeffrey. “O Exército diz-nos: ‘Sim, podes.’ Mas o meu comandante diz-me: ‘Não’.” Com receio de que a lesão na anca o desqualifique quando se candidatar a um lugar com funções judiciais, ele diz que tenciona plantar-se numa roulotte às portas da escola de pilotos do Arizona enquanto a família permanece na casa no Kentucky. “No Exército ensinam-nos a nunca deixar um homem para trás. Bem, basicamente, foi isso que fizeram”, afirma. “Era fácil mandarem-nos para a guerra. Muito mais difícil é tomar conta de todos nós — e somos muitos. Mas, se a nossa nação nos envia para a frente de combate, então tem a responsabilidade de cuidar de nós quando regressamos a casa.”
Com Scott Clement e Peyton M. Craighill.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post