Precisamos de confronto de ideias, dispensamos a demagogia e a propaganda

Devemos ter todos uma enorme preocupação em evitar cedências a um populismo nacionalista primário.

Muito provavelmente assistiríamos a uma enérgica reacção de todas as forças republicanas condenando os pressupostos populistas subjacentes a tal interrogação. Alguns sectores não deixariam mesmo de imprecar o preconceito xenófobo que adivinhariam nesse tipo de comportamento político. Em Portugal, com toda a razão, abundariam as críticas e as manifestações de indignação.

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Muito provavelmente assistiríamos a uma enérgica reacção de todas as forças republicanas condenando os pressupostos populistas subjacentes a tal interrogação. Alguns sectores não deixariam mesmo de imprecar o preconceito xenófobo que adivinhariam nesse tipo de comportamento político. Em Portugal, com toda a razão, abundariam as críticas e as manifestações de indignação.

Curiosamente o candidato que encabeça a coligação da direita nas eleições para o Parlamento Europeu, conhecido pelo seu fervor federalista, cometeu uma derrapagem desta natureza. Confesso a minha absoluta estupefacção. Ao solicitar ao líder do PS que estabelecesse uma preferência entre um inexistente candidato português e um concreto candidato alemão à presidência da Comissão, Paulo Rangel cometeu um erro duplamente grave: ofendeu os princípios fundadores do projecto europeu e consagrou uma tese que só pode prejudicar os países de média dimensão, como é o caso de Portugal. Uma campanha eleitoral não pode ser confundida com a silly season e nenhum nervosismo político autoriza o relaxamento das convicções. Vivemos um tempo em que o principal perigo em que a Europa incorre é o da subordinação das clivagens ideológico-políticas que a percorrem a supostas linhas de fractura histórico-geográficas que a organizariam estrutural e perenemente. A vingar esta última perspectiva o projecto europeu estaria condenado ao descalabro. Não é difícil percebermos porquê. Uma linha divisória dessa natureza pressuporia um confronto de carácter quase antropológico assente em oposições que relevariam menos do político e resultariam mais de outras dimensões de tipo religioso, étnico, ou, numa formulação extrema, mesmo racial. Daí que seja absolutamente imprescindível proceder à valorização do combate entre perspectivas doutrinárias e políticas de âmbito europeu inscritas na matriz moderna e contemporânea do debate de ideias. Isso não é sequer muito difícil, tendo em conta a forma como já se verifica o agrupamento dos deputados em função da pertença a famílias políticas distintas no hemiciclo de Estrasburgo.

O facto de, pela primeira vez, as distintas forças políticas apresentarem candidatos à presidência da Comissão Europeia revela uma opção de fundo por um modelo de confronto que subalterniza a questão da origem nacional face à questão, mais relevante, da opção doutrinária. Que uma tal coisa desagrade quer aos ultranacionalistas, quer a uma certa elite tecno-burocrática de Bruxelas é compreensível; o que já não se compreende é que num momento desta importância e face a um avanço tão significativo um arauto do federalismo, habitualmente lúcido na abordagem dos temas europeus, se deixe levar por tão destrambelhados caminhos.

A propósito deste rocambolesco episódio haverá que lembrar a necessidade de, após as eleições, não se cair na tentação de ludibriar a opção dos europeus, seja ela qual for. Já começam por aí, por essa Europa fora, sobretudo nos corredores de Bruxelas, a surgir algumas vozes contestando o automatismo da indicação do novo presidente da Comissão em função do resultado eleitoral verificado. Alegam esses sectores que nada nos tratados obriga a que assim suceda e haveria até alguma vantagem em que assim não ocorresse. Essa linha de argumentação incorre num erro grave – desvaloriza a democracia. Por vontade explícita e amplamente apregoada dos partidos políticos europeus os cidadãos da União Europeia vão escolher, no próximo dia 25 de Maio, simultaneamente os seus representantes parlamentares e o próximo presidente da Comissão. Mesmo que tal coisa não constitua, como obviamente não constitui, uma decorrência inevitável do modelo de organização institucional europeu, acabou por constituir-se num tema dominante e num compromisso claro assumido perante a cidadania europeia. Os dois principais partidos, o PSE e o PPE, tiveram, de resto, o cuidado de apresentar dois excelentes candidatos ao desempenho de tal função. Nada justificaria a opção por uma terceira figura, o que teria o efeito de causar certamente uma grande frustração democrática.

Por tudo isto devemos ter todos, independentemente do nosso posicionamento político concreto, uma enorme preocupação em evitar cedências a um populismo nacionalista primário que em nada contribui para a plena afirmação do projecto comum europeu de que tanto necessitamos. A lepenização do discurso político, ainda que circunstancial e obedecendo a impulsos oportunistas momentâneos, é sempre muito perigosa: ela abre as portas a um extremismo incompatível com qualquer ambição no plano europeu. Convoca demónios, estimula preconceitos e perturba a normal discussão democrática. Estou certo que entre um europeísta social-democrata alemão e um qualquer extremista português, Paulo Rangel preferiria o primeiro. Não cometo a injúria de o rebaixar ao nível da sua patética e certamente irrepetível pergunta.

A forma como alguma direita tenta opor as virtudes da austeridade aos deméritos de um propalado despesismo também não ajuda nada à qualificação da disputa democrática em curso. Quando as palavras são tão instrumentalizadas ao ponto de perderem qualquer significado, o debate político corre o risco de se transformar num confronto de imprecações vazias. Numa altura em que grande parte da discussão económica europeia se centra no tema do risco deflacionista das insuficiências da política monetária e nos efeitos catastróficos da excessiva contracção dos mercados internos como resultado da opção por uma austeridade excessiva, a tentativa de reduzir importantes momentos de modernização do país a um puro despesismo empobrece a discussão e injuria a própria inteligência crítica. Precisamos de um confronto de ideias, de propostas e de argumentos. Dispensamos a demagogia e a propaganda.

Deputado (PS), cabeça de lista do PS às eleições para o Parlamento Europeu