“Escolhi morrer em vez de ver os meus filhos morrerem à minha frente”

Mãe de quatro filhos, Mariam tinha perdido a ajuda do ACNUR, quando a agência da ONU decidiu reduzir o número de refugiados sírios abrangidos pelo subsídio mensal. A semana passada imolou-se pelo fogo.

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Centro de registo de refugiados sírios em Trípoli, no Norte do Líbano Joseph Eid/AFP

Mariam conseguiu escapar à violência na Síria e trazer os quatro filhos em segurança até ao Líbano. Fugiu já há dois anos de Homs, a mais castigada das cidades sírias, onde se morreu debaixo de bombas lançadas pelo regime e à fome, durante o mais longo cerco ordenado por Bashar al-Assad. Mariam conseguiu trazer a família em segurança até ao Líbano e foi aqui que não aguentou mais.

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Mariam conseguiu escapar à violência na Síria e trazer os quatro filhos em segurança até ao Líbano. Fugiu já há dois anos de Homs, a mais castigada das cidades sírias, onde se morreu debaixo de bombas lançadas pelo regime e à fome, durante o mais longo cerco ordenado por Bashar al-Assad. Mariam conseguiu trazer a família em segurança até ao Líbano e foi aqui que não aguentou mais.

“É difícil, é difícil para uma mãe querer alimentar os seus filhos. Eles queimaram-me o coração, queimaram-me o coração antes de queimarem o meu corpo. Para eles, eu era como um insecto”, diz Mariam aos jornalistas da CNN, que a visitaram no hospital libanês onde está internada, cara e corpo envoltos em ligaduras. A equipa da televisão norte-americana não foi autorizada a entrar no quarto (só o pessoal médico o pode fazer) mas falou com Mariam através de um intercomunicador.

Muitos refugiados sírios no Líbano vivem numa situação desesperada. São cada vez mais – um milhão, anunciou esta quinta-feira o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados – e a ajuda não tem aumentado ao ritmo necessário, ao mesmo tempo que aumenta o número dos que já esgotaram o dinheiro com que conseguiram fugir.

Em Setembro do ano passado, quando contabilizava 720 mil sírios no Líbano, o ACNUR anunciou que a 1 de Outubro ia deixar de ajudar os refugiados de forma “maciça”. Por não ter conseguido reunir os fundos necessários, e por ter identificado famílias que conseguiriam sobreviver sozinhas, a agência explicou que ia retirar a ajuda mensal, vouchers que podem ser trocados em supermercados, a 200 mil pessoas.

Mariam, o marido, Ahmad al-Daher, e os quatro filhos, com idades entre os 13 e os 22 anos, foram excluídos da lista dos mais vulneráveis e perderam o subsídio mensal. Três dos filhos do casal têm uma doença sanguínea que dificulta a digestão de alguns alimentos e pode provocar anemia hemolítica.

“Eu sou mãe, os meus filhos estavam a ficar tontos por causa da falta de comida, um dizia ‘eu não consigo levantar a cabeça’, o outro dizia ‘eu não consigo mexer as pernas’”, recorda Mariam.

As famílias que perderam a ajuda do ACNUR podem recorrer da decisão. “Fui ter com eles muitas vezes, disse-lhes que deviam ter feito um erro”, diz Mariam à CNN. “Eles mentiram-me, gozaram comigo, gritaram comigo, ‘sai daqui’.”

O ACNUR garante que Mariam não foi maltratada, mas está a averiguar se as alegações desta síria têm algum fundamento. Agora, para além de pagar as suas despesas médicas, o ACNUR avalia se a família é elegível para voltar a ser incluída no programa de ajuda alimentar. A agência da ONU também diz que não tem registo de nenhum pedido de recurso e que chegou a oferecer à família abrigo num alojamento partilhado, o que o casal terá recusado, por temer que as filhas vivessem entre estranhos.

Promessas vazias
Certo é que Mariam se deslocou várias vezes ao centro de registo do ACNUR na cidade de Trípoli, no Norte do Líbano. A última vez, no dia 25 de Março, imolou-se pelo fogo.

“Ela disse: ‘Há três dias seguidos que venho pedir ajuda para mim e para os meus quatro filhos e mandam-me sempre embora, com promessas de ajuda se voltar no dia seguinte. Mas essas promessas são vazias.” Estas foram as palavras que Abu Riad al-Amudi, um vendedor ambulante, ouviu a Mariam. Depois, viu-a a tirar de um saco “uma pequena garrafa de água de plástico”, contou Amudi ao jornal francês La Croix. “Despejou o conteúdo por cima da cabeça e da roupa. Era gasóleo. Pegou num isqueiro e imolou-se.”

“O meu coração arde pelos meus filhos. Espero que Deus me perdoe, quero que a minha voz chegue a todas as mães, a todas as pessoas com consciência”, diz agora Mariam. “Queria que os meus filhos fossem independentes, trabalhei muito para que pudessem ter uma educação, trabalhei muito nesta vida para que eles chegassem à universidade.”

Em Março passaram três anos desde que os sírios fizeram as primeiras manifestações pacíficas contra a ditadura, dois meses depois da queda de Ben Ali, na Tunísia – os tunisinos saíram à rua indignados com a morte do jovem Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo. Bashar al-Assad mandou esmagar os protestos à força: a repressão e a guerra civil que se seguiu, bem como os ataques de jihadistas estrangeiros que entretanto acorreram ao país, já mataram mais de 150 mil pessoas e obrigaram nove milhões, quase um terço da população, a deixar as suas casas.

Por não viverem em campos oficiais, onde a ajuda é organizada, os sírios do Líbano estão mais vulneráveis do que os que vivem na Turquia ou muitos dos que fugiram para a Jordânia. No pequeno país, há famílias a viver na rua, em garagens, ruínas, currais ou tendas em acampamentos improvisados. Em Fevereiro, a UNICEF avisou que duas mil crianças sírias estavam em risco de morrer à fome por malnutrição, “uma nova ameaça, silenciosa, entre os refugiados do Líbano”.