A carta de amor dos Dirty Beaches a Lisboa sobe ao palco
O Teatro Maria Matos pediu a Alex Hungtai, dos Dirty Beaches, um concerto único e ele levou o pedido à letra: esta quinta-feira sobe ao palco com duas horas de música criada durante um mês de residência artística na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Quando o concerto acabar vai ao Ramiro e depois procurar casa cá.
Os mais atentos reconhecerão o nome que Hungtai escolheu para o concerto: Landscapes in the mist era o título de um tema de Drifters/Love Is The Devil, o último longa-duração dos Dirty Beaches, lançado o ano passado – e o único tema dos que se ouvirão hoje que já é do conhecimento público.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Os mais atentos reconhecerão o nome que Hungtai escolheu para o concerto: Landscapes in the mist era o título de um tema de Drifters/Love Is The Devil, o último longa-duração dos Dirty Beaches, lançado o ano passado – e o único tema dos que se ouvirão hoje que já é do conhecimento público.
A canção, bem como parte desse álbum, foi composta em Lisboa, aquando de uma residência artística promovida pela Galeria Zé dos Bois, onde Hungtai conheceu André Gonçalves, que mais logo o acompanha no sintetizador modular, juntamente com Shub Roy, na guitarra eléctrica – também por isso Hungtai diz tratar-se de “um concerto que homenageia as amizades que fiz aí”.
Pode parecer estranho que um concerto dedicado a Lisboa tenha mist no nome, visto ser mais fácil conotar névoa com Porto, mas isso revela a abordagem particular de Hungtai à cidade: “Quando ando em digressão, quando estou fora de casa, sou muitas vezes assoberbado por uma espécie de sensação de desorientação, que transparece na música que fiz nesse período. O meu local de trabalho, que partilhava com o André, ficava de frente para o rio, e eu estava lá todos os dias das cinco da tarde até às seis da manhã, e lá pelas quatro da matina vê-se uma espécie de nevoeiro que vem do porto, uma coisa de cortar a respiração e que me começou a parecer como uma imagem de como eu próprio me sentia: meio desfocado, sem saber se estava a pensar no passado ou no que estava a acontecer então. E acho que isso é uma coisa muito portuguesa, muito sentimental”.
Deste ponto de vista a relação faz todo o sentido: a música dos Dirty Beaches (que na realidade são Hungtai e uma trupe de músicos que vão rodando consoante as necessidades e o humor do seu criador) sempre capturou uma espécie de solidão, de isolamento, de indefinição, logo desde o disco homónimo de 2009, mesmo sendo suficientemente abrangente para incluir free jazz e new wave.
Segundo Hungtai, os seus horários permitiram-lhe ver a cidade de um modo diferente daqueles que a habitam ou que a visitam em turismo: “Vi o que as outras pessoas não vêem. É uma perspectiva de forasteiro, que vê o lado romântico, desde as prostituas à ruína da História que se nota nos edifícios, e que não encontras noutras partes do mundo, onde tudo é novo e constantemente substituído”. O músico conclui que Lisboa “é um sítio onde o passado está sempre presente, de forma muito notória”.
Este, claro, é um tema que lhe é caro, visto Hungtai andar desde cedo com o passado às costas. Nascido na Ilha Formosa, Hungtai foi “viver para o Canadá aos 18 anos” com o irmão, “a mando do [seu] pai”, que temia “uma invasão da China a qualquer hora”. “Tinha chegado o momento de fazermos a instrução militar e o meu pai anteviu conflitos com a China – de algum modo ele sabia que a China vinha atrás de nós e não queria que eu fosse morto em combate, pelo que mandou-nos estudar fora. Eu e o meu irmão tornámo-nos cidadãos canadianos, e curiosamente a Ilha Formosa não entrou na China, e até houve mais abertura ao exterior a partir de 1988, mas vai acabar por ser coagida a fazer parte da China por questões financeiras”.
A relação que há entre a sua vivência particular e a capital de Portugal é que para Hungtai “também é necessário preservar o passado, como vocês fazem. É importante conhecer a história”. “A cidade inspirou-me mesmo”, continua Hungtai, dando um exemplo passado já após deixar Lisboa: “Estava outra vez a sentir-me deslocado – e também senti isso em Lisboa, apesar do bitoque, que adorei e me fazia sentir em casa – e dei por mim de volta à Ilha Formosa, onde conheci um professor na casa dos 60 anos, que ouviu a minha música graças aos seus alunos e me emprestou um livro com a sua tese de doutoramento: o tema era a diáspora, termo que eu não conhecia, e o livro deu-me cabo da cabeça, foi extraordinário lê-lo, trouxe-me de volta aquele sentimento de estar no meio do mist em Lisboa, e percebi que faz sentido eu carregar esse sentimento por causa do meu passado”.
“Para mim a música é exorcismo”, conclui Hungtai, continuando: “É uma forma de limpar os maus sentimentos, de mandar embora os maus espíritos e de encontrar uma identidade que por vezes me falta”. É esta a explicação do músico, que diz estar “ainda em lua-de-mel com Lisboa”, para ter feito “duas horas de música ainda por editar e que ainda [está] a compilar”, no mês que passou cá.
“Tem muito pouco a ver com o registo-canção. É sobretudo instrumental e centrada num instrumento que comecei a aprender, o saxofone. É música feita de texturas e sintetizadores”, descreve o músico, que diz não estar assustado com a perspectiva de “fazer um concerto de música instrumental nunca editada porque por mais arriscado que pareça as pessoas já sabem que vai ser assim. Não vamos tocar as canções dos discos e ninguém vai ao engano”. Para Hungtai, que, como outros músicos pop, passa noites e noites a repetir as mesmas cantigas, este concerto “é como um oásis no deserto. Andando em digressão fica-se com sede de fazer coisas diferentes e esta é uma oportunidade de ouro”.
Isto aliás, vai de encontro ao que o Maria Matos lhe pediu há uns meses: “Queriam que eu fizesse um espectáculo especial, que não fosse o habitual, pelo que eu decidi exprimir o que senti enquanto estive aí”.
E o que quer que tenha sentido há-de ter sido forte: Hungtai clama “adorar tudo” em Lisboa, em particular “a comida”. “Esteja onde estiver todos os dias procuro lugares onde haja um pastel de nata e um galão. Quando estou em Lisboa almoço sempre uma bifana e bebo uma Super-Bock. E adoro bitoque. Peixe não provei muito, só sardinhas, mas não me encheu o palato. Agora estou a poupar dinheiro para ir ao Ramiro, quando voltar a Lisboa”. O amor à cidade é tanto que no dia a seguir ao concerto Hungtai irá “procurar casa [em Lisboa]”: “Estou a pensar estabelecer-me aí quando não estiver em digressão”, confessa.
As duas horas de música criadas em Lisboa encontrarão, mais tarde, edição em CD, muito provavelmente separadas em “três edições divididas em passado, presente e futuro”. Hungtai gostaria que as pessoas as ouvissem “sem sequência, sem se perceber quando começa um e acaba outro”. “Quero que funcione como música de fundo. Música de mobília, diz, num português arrevezado. Música de grelhada mista”. Os discos estão neste momento a ser masterizados pelo engenheiro de som de David Lynch, cujo cinema é uma clara influência da música de Hungtai, que descreve o cineasta como “aquele tipo de pessoa que podia ser nosso avô, mas que não se quer ver chateado: aí nota-se muito bem o lado negro dele”.
Alex Hungtai também tem o seu lado negro, mas prefere transformá-lo em música com amor – no caso “a Lisboa, que é uma cidade fácil de amar”. Quanto ao concerto, e apesar de minimamente ensaiado, decorrerá à maneira portuguesa, com alguma improvisação: “Uma coisa que aprendi a viver aí é que em Portugal tudo pode ser resolvido com uma conversa. Nunca se sabe o que pode acontecer, mas tudo se resolve à última com recurso a boa vontade e improvisação. Tem de se improvisar muito em Lisboa”.