Um inventor de pedras
Um nome, Manuel de Castro (1934-1971), rompe magistral e marginalmente o palco, a propósito de uma edição que parecia amaldiçoada depois da morte súbita de um primeiro paginador e do suicídio de outro. Grande poeta, desconhecido até do público leitor de poesia, publicou a suas expensas Paralelo W e Estrela Rutilante (ambos incluídos aqui) e terá deixado preparada a edição de Chuva no Dia de Finados. As atribulações da vida (inter)ferem pesadamente (n)esta escrita. Nasce em Lisboa, no seio de uma família católica e conservadora. Passa os primeiros anos em Goa, onde o pai representava o Governo, depois em Lourenço Marques. Perde tragicamente a mãe. O pai, a quem deixará mais tarde de falar, envia-o aos oito anos para o seminário, de onde foge com a cumplicidade de um padre italiano. Possui uma sensibilidade extrema para as línguas: traduz jocosamente o Diário de Notícias para o latim; traduz do espanhol, do italiano, do francês, do inglês, do alemão, até do dialecto de Heidenheim, onde vive durante quatro anos. Foi um andarilho, um ser humano sedento e revoltado — sempre em viagem, retórica e literalmente, sufocando no país que era o seu. Numa carta a um amigo, talvez A. J. Forte: “Quanto a mim, de alemanhas: trabalhei em Hamburgo numa fábrica de gelados, num expedidor comercial, numa fábrica de lãs, para um professor da universidade como copista, em Colónia vadiei, em Berlim idem, em Munique fui lava-pratos, lavador de carros, artífice numa oficina de meia-tigela, bar-boy no Carnaval (que lindas raparigas!), entretanto expulsaram-me do sítio , vim aqui malhar com os ossos numa fábrica de aparelhos eléctricos onde aprendi o ofício de cortador de papel, depois Paris-os-cabotinos, depois Dordogne sul de França.”
Manuel de Castro começou a escrever cedo, aqui e ali. Frequentou o Café Gelo e a sua tertúlia heterogénea e inconformista, um grupo de franco-atiradores (João Rodrigues, autor da capa de Paralelo W, António Barahona, Saldanha da Gama, Raul Leal, Ernesto Sampaio e Herberto Helder, com quem tem, talvez, maior afinidade no derrame quase convulso da imaginação). A sua poesia é enigmática, hermética, domina-nos primeiro pela intensidade que desarma, como um sismo que nos abala. Visceralmente, como o abraço apertado de um polvo, agasta-nos pela energia, pela violência e pela velocidade com que se desdobram, proliferam e transmigram os campos semânticos, pela revolta que encerra, a veemência, a imagética delirante que multiplica traços de união entre termos que à partida viviam isolados, assim inventando sensações-conceito (“nudez-carícia/ o corpo inclina luz sobre a cidade/ luz imóvel/ extensa/ musical”). É uma poesia que transgride regras de pontuação. O significado molda plasticamente o significante, devém corpo de letra. Muitos verbos são indevidamente pronominalizados, tornados reflexos. Não esqueçamos que Manuel de Barros tem um profundo conhecimento da prosódia, que não cessa de manobrar.
Um só poema, Asteróide em fuga, é toda uma arte poética: “Penetra a filigrana dos nervos/ o olhar desarmado dos objectos/ ameaçador, gelado de penumbra/ com um ruído convulso e persistente/ de facas, de vidros, de engrenagens.//(...) Cada centímetro cúbico da noite/ se adquire no precipício do jogo/ com as palavras decompostas livres propulsoras/ lubrificadoras de ossos vorazes/ no ritmo largo das muralhas vencidas.// No tempo permanente/ o exercício de extremo limite/ amplifica os ângulos/ destrói as máquinas antigas/ propõe a celeridade como estilo/ no regresso possível à pureza dos nomes// Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado/ semeado de gotículas azuis que são as palavras/ umas a seguir às outras velozmente// Quase nem refreadas/ As palavras e o azulado das gotículas tomam a cor de um azul molhado/ angustioso como o punho que dói ao escrever.” São os objectos que convocam a memória e não necessariamente o inverso, e esse é um traço reiterado ao longo da poesia de Manuel de Castro — as peças soltas justapostas, assim como o fascínio pela mecânica em si, pelo movimento autónomo.
A parcelização dá-se no âmago do todo e fragmento a fragmento, o que perfaz a visão de um mundo estilhaçado, de seres destruídos, a começar pelo sujeito que está a escrever. Ainda assim, neste imaginário nocturno, de um ethos disfórico ora violentamente revoltado, ora em marasmo, vislumbra-se por vezes, bem no alto, uma estrela ou o azul. Transportado para o verso, a grande velocidade, um vórtice de sombras, de rasgões suspensos no largo horizonte. Como flashes gerados pelo em-comum inventado e desmedido da metáfora, ou uma louca e convulsa sucessão metonímica. Temos a celeridade defendida como ideal e ao mesmo tempo praticada na letra. E o seu inverso, o alargamento dos espaços em branco do texto, a respiração suspensa ou petrificada em maiúsculas e outras diatribes da norma e da gramática.
O poeta carrega uma espécie de bipolaridade, oscilando entre pólos que se revezam, que se interrompem mas nunca se fundem, que se instabilizam mutuamente. Imaginem-se duas linhas, ou direcções: uma vertical, a da revolta, da violência (lembremo-nos que Manuel de Castro escreveu poemas de grande veemência política: “Não existe eco para as lágrimas que não sejam de raiva”), outra horizontal, da viagem, do fluxo. Talvez mais apaziguados sejam apenas os poemas assinados de Heidenheim,
Se duas palavras tivéssemos de escolher para Manuel de Castro, seriam esplendor e revolta.
Ainda assim, este livro possui defeitos: ausência de um prefácio mais do que justificável, de explicação do critério de escolha e ordenação de textos nunca publicados, de indicação sobre quem pesquisou e reuniu os restantes poemas. Todavia, o seu aparecimento é uma estrela fulgurante. Alguém se encarregará certamente de uma edição crítica.
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Um nome, Manuel de Castro (1934-1971), rompe magistral e marginalmente o palco, a propósito de uma edição que parecia amaldiçoada depois da morte súbita de um primeiro paginador e do suicídio de outro. Grande poeta, desconhecido até do público leitor de poesia, publicou a suas expensas Paralelo W e Estrela Rutilante (ambos incluídos aqui) e terá deixado preparada a edição de Chuva no Dia de Finados. As atribulações da vida (inter)ferem pesadamente (n)esta escrita. Nasce em Lisboa, no seio de uma família católica e conservadora. Passa os primeiros anos em Goa, onde o pai representava o Governo, depois em Lourenço Marques. Perde tragicamente a mãe. O pai, a quem deixará mais tarde de falar, envia-o aos oito anos para o seminário, de onde foge com a cumplicidade de um padre italiano. Possui uma sensibilidade extrema para as línguas: traduz jocosamente o Diário de Notícias para o latim; traduz do espanhol, do italiano, do francês, do inglês, do alemão, até do dialecto de Heidenheim, onde vive durante quatro anos. Foi um andarilho, um ser humano sedento e revoltado — sempre em viagem, retórica e literalmente, sufocando no país que era o seu. Numa carta a um amigo, talvez A. J. Forte: “Quanto a mim, de alemanhas: trabalhei em Hamburgo numa fábrica de gelados, num expedidor comercial, numa fábrica de lãs, para um professor da universidade como copista, em Colónia vadiei, em Berlim idem, em Munique fui lava-pratos, lavador de carros, artífice numa oficina de meia-tigela, bar-boy no Carnaval (que lindas raparigas!), entretanto expulsaram-me do sítio , vim aqui malhar com os ossos numa fábrica de aparelhos eléctricos onde aprendi o ofício de cortador de papel, depois Paris-os-cabotinos, depois Dordogne sul de França.”
Manuel de Castro começou a escrever cedo, aqui e ali. Frequentou o Café Gelo e a sua tertúlia heterogénea e inconformista, um grupo de franco-atiradores (João Rodrigues, autor da capa de Paralelo W, António Barahona, Saldanha da Gama, Raul Leal, Ernesto Sampaio e Herberto Helder, com quem tem, talvez, maior afinidade no derrame quase convulso da imaginação). A sua poesia é enigmática, hermética, domina-nos primeiro pela intensidade que desarma, como um sismo que nos abala. Visceralmente, como o abraço apertado de um polvo, agasta-nos pela energia, pela violência e pela velocidade com que se desdobram, proliferam e transmigram os campos semânticos, pela revolta que encerra, a veemência, a imagética delirante que multiplica traços de união entre termos que à partida viviam isolados, assim inventando sensações-conceito (“nudez-carícia/ o corpo inclina luz sobre a cidade/ luz imóvel/ extensa/ musical”). É uma poesia que transgride regras de pontuação. O significado molda plasticamente o significante, devém corpo de letra. Muitos verbos são indevidamente pronominalizados, tornados reflexos. Não esqueçamos que Manuel de Barros tem um profundo conhecimento da prosódia, que não cessa de manobrar.
Um só poema, Asteróide em fuga, é toda uma arte poética: “Penetra a filigrana dos nervos/ o olhar desarmado dos objectos/ ameaçador, gelado de penumbra/ com um ruído convulso e persistente/ de facas, de vidros, de engrenagens.//(...) Cada centímetro cúbico da noite/ se adquire no precipício do jogo/ com as palavras decompostas livres propulsoras/ lubrificadoras de ossos vorazes/ no ritmo largo das muralhas vencidas.// No tempo permanente/ o exercício de extremo limite/ amplifica os ângulos/ destrói as máquinas antigas/ propõe a celeridade como estilo/ no regresso possível à pureza dos nomes// Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado/ semeado de gotículas azuis que são as palavras/ umas a seguir às outras velozmente// Quase nem refreadas/ As palavras e o azulado das gotículas tomam a cor de um azul molhado/ angustioso como o punho que dói ao escrever.” São os objectos que convocam a memória e não necessariamente o inverso, e esse é um traço reiterado ao longo da poesia de Manuel de Castro — as peças soltas justapostas, assim como o fascínio pela mecânica em si, pelo movimento autónomo.
A parcelização dá-se no âmago do todo e fragmento a fragmento, o que perfaz a visão de um mundo estilhaçado, de seres destruídos, a começar pelo sujeito que está a escrever. Ainda assim, neste imaginário nocturno, de um ethos disfórico ora violentamente revoltado, ora em marasmo, vislumbra-se por vezes, bem no alto, uma estrela ou o azul. Transportado para o verso, a grande velocidade, um vórtice de sombras, de rasgões suspensos no largo horizonte. Como flashes gerados pelo em-comum inventado e desmedido da metáfora, ou uma louca e convulsa sucessão metonímica. Temos a celeridade defendida como ideal e ao mesmo tempo praticada na letra. E o seu inverso, o alargamento dos espaços em branco do texto, a respiração suspensa ou petrificada em maiúsculas e outras diatribes da norma e da gramática.
O poeta carrega uma espécie de bipolaridade, oscilando entre pólos que se revezam, que se interrompem mas nunca se fundem, que se instabilizam mutuamente. Imaginem-se duas linhas, ou direcções: uma vertical, a da revolta, da violência (lembremo-nos que Manuel de Castro escreveu poemas de grande veemência política: “Não existe eco para as lágrimas que não sejam de raiva”), outra horizontal, da viagem, do fluxo. Talvez mais apaziguados sejam apenas os poemas assinados de Heidenheim,
Se duas palavras tivéssemos de escolher para Manuel de Castro, seriam esplendor e revolta.
Ainda assim, este livro possui defeitos: ausência de um prefácio mais do que justificável, de explicação do critério de escolha e ordenação de textos nunca publicados, de indicação sobre quem pesquisou e reuniu os restantes poemas. Todavia, o seu aparecimento é uma estrela fulgurante. Alguém se encarregará certamente de uma edição crítica.