A vida dela não dá um filme
Há uma razão para começar a falar de Sei Lá pegando em Panic, a canção dos Smiths em que o vocalista e letrista Morrissey cantava “the music that they constantly play/ it says nothing to me about my life.” O que é que, em 2014, Sei Lá diz ao espectador português médio? A adaptação do best-seller de Margarida Rebelo Pinto não tem de dizer nada. Como diz uma das personagens - Rui Unas, o oleoso editor da revista de sociedade onde a heroína Leonor Seixas trabalha - “não estamos aqui para esclarecer, estamos aqui para entreter.” Não há nada de mal nisso, há maus filmes de esclarecimento e bons filmes de entretenimento.
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Há uma razão para começar a falar de Sei Lá pegando em Panic, a canção dos Smiths em que o vocalista e letrista Morrissey cantava “the music that they constantly play/ it says nothing to me about my life.” O que é que, em 2014, Sei Lá diz ao espectador português médio? A adaptação do best-seller de Margarida Rebelo Pinto não tem de dizer nada. Como diz uma das personagens - Rui Unas, o oleoso editor da revista de sociedade onde a heroína Leonor Seixas trabalha - “não estamos aqui para esclarecer, estamos aqui para entreter.” Não há nada de mal nisso, há maus filmes de esclarecimento e bons filmes de entretenimento.
Ou antes: não haveria nada de mal nisso, se, 15 anos depois da publicação do livro, Sei Lá não estreasse num país empobrecido, no meio de uma recessão brutal e de uma política de austeridade que veio alargar o fosso entre “ricos” e “pobres”. Hoje, em plena falência moral e social da “sociedade dos famosos” que se tornou num pobrezinho “ópio do povo” alimentado pela televisão, esta versão extemporânea e rasteira de Sexo e a Cidade sobre os dilemas românticos de quatro amigas “bem na vida” balança entre o escapismo fútil do conto-de-fadas e a banalidade preto-no-branco de uma telenovela onde tudo se resolve a tempo de um final feliz. A vida real não é assim - nem os filmes têm obrigação de ser como a vida real. Mas acreditar que as pessoas “engolem” sem pestanejar uma fantasia irreal, pontualmente risível, sobre uma jornalista de sociedade apaixonada por um espanhol misterioso (que na verdade é terrorista basco) e seduzida por um lisboeta misterioso (que na verdade é agente do SIS), cheia de pessoas bonitas e sítios bonitos e caras conhecidas da TV, corre o risco de dizer muito mais sobre quem o fez e sobre a ideia que tem do país em que vive.
Não basta fazer uma festa de sociedade no grande ecrã para fazer um filme - apesar do profissionalismo consumado de Joaquim Leitão (que atinge aqui o grau zero do tarefeirismo, dirigindo com correcção mas sem o mínimo de convicção ou entrega). A diferença entre Sei Lá, uma telenovela ou um magazine de sociedade, para lá do ecrã panorâmico, é inexistente. Não chega dar às pessoas televisão em ecrã grande para se fazer cinema - o escuro da sala de cinema amplifica e sublinha falhas que num ecrã pequeno, num ambiente caseiro onde nem sempre prestamos a mesma atenção, seriam vistas com outra benevolência. É por aqui que se percebe a inexplicável falta de jeito que sempre tivemos para o cinema “de grande público” (apesar de bons esforços pontuais, alguns dos quais assinados pelo próprio Joaquim Leitão ou por António-Pedro Vasconcelos, por exemplo).
Longe de nós negar o valor que o livro de Margarida Rebelo Pinto pode ter tido (enquanto retrato mais do que enquanto literatura). Mas o filme, com a sua colagem ostensiva a Sexo e a Cidade (que, aqui entre nós, também nunca deveria ter saltado para o grande ecrã), surge fora de tempo, ancorado em todos os lugares-comuns de uma fórmula “cor-de-rosa” que não faz sentido fora dos “horizontes curtos” do pequeno ecrã. É verdade, isto é apenas um entretenimento. Mas é um entretenimento bastante esclarecedor sobre o país em que vivemos - onde a cultura é tratada, condescendentemente, como uma coisa de “intelectuais” mas se acha que futilidades inanes (e igualmente condescendentes) como esta é o que preciso fazer para “chegar ao público”. Cada um que tire as suas conclusões.