“Seria maravilhoso se tivéssemos no Mundial um estádio do Souto de Moura ou do Álvaro Siza”

Guilherme Wisnik apresentou na quinta-feira passada no Porto uma conferência sobre Brasília. Foi uma oportunidade para o ouvir falar sobre a situação da arquitectura no Brasil, a relação com Portugal, os prémios Pritzker, o star system e os estádios do Mundial de futebol.

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Arquitecto, professor, crítico e compositor nas horas vagas, Guilherme Wisnik foi o curador da Bienal de Arquitectura de São Paulo de 2013 Fernando Veludo/nfactos

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Foi uma viagem fascinante, documentada com imagens e música, de Caetano Veloso a Elizeth Cardoso, pela história dessa cidade nova, com que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer abriram uma porta para a esperança de uma arquitectura nova e uma nova forma de habitar a cidade. Como a História viria a mostrar, o destino de Brasília não correu como o previsto pelos seus autores. Mas, para bem como para o mal, a arquitectura no Brasil – e no resto do mundo – não mais foi a mesma. Como Wisnik explicou na sua intervenção site specific no Cinema Passos Manuel, a convite da editora Dafne.

 

 

O que é Brasília hoje, aos olhos da história da arquitectura? Quando nasceu, foi vista como um campo de ensaio para as práticas presentes e futuras da construção e transformação da cidade e da sociedade...

Brasília tem agora cinquenta e poucos anos. É ainda pouco tempo, mas já não é uma cidade tão nova; passou o tempo suficiente para ter tido variações de perspectivas e de interpretação. E a opinião sobre ela já mudou muito. Quando foi inaugurada, era a apoteose de um processo de modernização, não só brasileiro mas mundial.

 

 

 

 

Foi onde se foi mais longe na afirmação da modernidade...

Exactamente. Se pegar o mundo inteiro, o exemplo de consumação, simbólica e em grande escala, da arquitectura e do urbanismo modernos foi Brasília. Ela é momento de clímax. Porém, rapidamente passa a ser criticada. Porque esse clímax coincide com o declínio do movimento moderno. Então, todas as críticas ao autoritarismo do planeamento moderno, da segregação funcional, mesmo de uma atitude do governo de cima para baixo a fazer uma obra dessa dimensão em que falta a escala humana... tudo isso, somado ao golpe militar [1964] que transformou Brasília na sede do poder repressivo, provocou uma inversão de perspectivas. E ao longo já dos anos 60, e depois 70 e 80 – o período áureo das críticas pós-modernas –, ela passou a ser vista ao contrário: em vez do lugar da grande democracia, o lugar do autoritarismo; em vez de signo de futuro avançado, o lugar regressivo de uma utopia passada.

 

 

 

 

E o que é Brasília hoje?

Hoje já não é mais assim. Essa visão extremamente crítica também já passou. 
O último livro que foi feito nessa perspectiva é de um antropólogo americano, que saiu no Brasil chamado A Cidade Modernista, de James Holston [edição Companhia das Letras, 1993]. É feito sob a perspectiva crítica da activista Jane Jacobs [1916-2006], que defendia o activismo comunitário. Esse livro condena Brasília sob essa perspectiva pós-moderna. Mas, agora, o que se vê é que quem critica Brasília não pode apagar Brasília. É o grande monumento moderno no mundo.

 

 

 

 

E a cidade, hoje, está de algum modo a cumprir o seu programa original, do ponto de vista social e urbanístico?

Brasília acaba por ser também o lugar onde aquela utopia – que a visão pós-moderna disse que era uma utopia fálica – aconteceu, até um certo ponto. Você vai às super-quadras [a visão moderna dos velhos quarteirões] e vê um mundo muito diferente do resto das cidades do Brasil, onde você tem sempre cercas, guaritas, onde tudo é privatizado, tudo é segurança contra o outro. Lá não, a super-quadra é um lugar completamente fraterno, aberto. Tanto que os moradores de Brasília, quase todos, amam a cidade. Quem tem dificuldades em Brasília é quem vem de fora, que sente um estranhamento em relação àquilo. Mas quem mora lá tem uma adesão muito forte, porque a vida local funciona. É muito boa. É claro que tem contradições, que funciona um pouco às custas de existirem as cidades-satélite. Nenhuma cidade sobrevive sem os trabalhadores braçais, que fazem os serviços menos bem pagos. A utopia de Brasília é que esses trabalhadores vivessem também nas super-quadras.

 

 

 

 

Mas isso não aconteceu. A população mais pobre viva em favelas?

Isso nunca aconteceu, de facto. O plano-piloto de Brasília, das superquadras, não inclui as favelas – até porque é protegido pelo Plano Histórico e não pode ser maculado no seu desenho. Então as cidades-satélite, que são boa parte delas favelizadas, ficam afastadas. Há uma estrutura social desigual, como no resto do país. Mas isso não é uma culpa de Brasília. Durante essas críticas do período pós-moderno, também se costumava atribuir ao desenho do Lúcio Costa a culpa por esse processo. Mas isso é a desigualdade social de um país desigual.

 

 

 

 

Na sua conferência, mostrou como, no Brasil, a arquitectura se foi separando das outras artes. A arquitectura, que está sempre dependente do investimento e do dinheiro, não mais poderá articular-se com as outras artes?

Até Brasília, havia mais integração das artes junto com a arquitectura. Mas, apesar de tudo, a arquitectura era a mais importante das artes. Era o carro-chefe. A arquitectura foi a grande arte brasileira, desde que o Brasil se tornou moderno nos anos 1920. Foi quem mais rápido atingiu uma forma moderna internacional. As outras artes ficaram muito dentro de um modernismo nacionalista. De certa maneira, até Brasília, as outras artes seguiam os passos da arquitectura.

 

 

 

 

Aí, Oscar Niemeyer é a figura fundamental...

Ele é o grande artista brasileiro até então. A música aparece depois, com a Bossa Nova em 1958. Com ela, o Tom Jobim torna-se equivalente ao Niemeyer em termos de projecção internacional. A música e a arquitectura são as duas formas de divulgação mundial da cultura brasileira mais madura. Um exemplo importante: em 1942, o MoMA de Nova Iorque faz uma exposição sobre a arquitectura moderna brasileira. Muitos antes de Brasília. É por causa desse sucesso precoce que o Brasil termina construindo uma capital moderna. Em 1960, chega esse momento de apogeu, em que a arquitectura e o urbanismo foram importantes, maduros, capazes de carregar nas costas toda uma cultura. Mas, por uma série de razões, ao longo dos anos 60, essas relações mudam. É o ponto de inflexão. E, exactamente, a arquitectura vai perdendo o seu lugar de vanguarda, que passa para as outras artes. A arquitectura acaba ficando num lugar um pouco nostálgico, de quando o Estado encomendava grandes obras...

 

 

 

 

Dando um salto no tempo, e no espaço: como vê a atribuição do Pritzker ao japonês Shigeru Ban?

O Pritzker oscila, a cada ano, entre premiar arquitectos do
star system, que têm uma obra mais marcada por algo monumental, formalista, ou, às vezes, arquitectos com produção mais modesta ou que têm preocupações de outra natureza que não formalista. O Shigeru Ban está deste segundo lado. Como com todos os prémios, o júri não quer ficar marcado só por um aspecto...

 

 

 

 

Parece querer responder aos desafios da História e do momento.

Sim. E é claro para todos que, depois da crise financeira de 2008, a agenda mundial mudou. Esse ano é um marco de uma quebra de paradigma, onde a farra neoliberal, o grande desperdício de capital, se encerrou. Esse desperdício ficou também associado àquela arquitectura mais perdulária e formalista, como a do Frank Gehry, da Zaha Hadid ou do Santiago Calatrava. Depois disso, ficou claro que era preciso voltar a colocar outro tipo de produção. Porque o compromisso social da arquitectura é fundamental. Defendo a aproximação entre a arquitectura e as artes plásticas. Mas não entendo essa proximidade do ponto de vista formalista. Um arquitecto não é um grande artista porque é um criador de formas. A arquitectura depende muito fortemente de uma relação social, de ser um serviço para a sociedade e não uma actividade desgarrada, de figuras iluminadas.

 

 

 

 

Nessa perspectiva, como vê os dois Pritzker portugueses, Álvaro Siza e Souto de Moura?

Acho que a arquitectura, tanto a portuguesa quanto a brasileira, está do lado
anti-star system. É uma arquitectura pouco exibicionista, mais contida e próxima da tectónica, de uma certa mão-de-obra, de uma tradição construtiva local. E há uma semelhança entre o Brasil e Portugal porque, nos dois casos, o pós-modernismo nunca vingou muito. O que tem vantagens e desvantagens. O pós-modernismo foi uma discussão importante no mundo. No Brasil, a ausência disso faz um pouco de falta, porque, até hoje, vigora a ideologia moderna um pouco sem crítica.

 

 

 

 

Foi o curador da Bienal de São Paulo no ano passado. O tema, A Cidade – modo de fazer, modo de usar, acabou por dar resposta oportuna aos movimentos de contestação social que a antecederam – mesmo se o programa da bienal já estava decidido…

É verdade que a gente começou a pensar a curadoria da bienal em Outubro de 2012. Aí foi decidido que o tema seria a cidade e não a edificação. Com a abordagem dessa dialéctica entre as forças que constroem a cidade, e também o ângulo do utente, que usa, dá significado e, às vezes, subverte o desenho. E elegemos alguns critérios para tratar disso: a mobilidade, a densidade e o espaço público. Tudo aquilo que se relaciona com os modos de usar dando força ao pólo que se considerava passivo – o utente, o que é que ele tem a contribuir na situação da arquitectura. A princípio, considerava-se que não tinha nada. Quando começámos a divulgar a bienal, vinham alguns amigos arquitectos perguntar, assim de uma maneira um pouco encabulada: “Mas é verdade que na bienal vão ter coisas que não são só projectos de arquitectura?”. Eu tinha prazer em responder que sim. Isso era tudo uma novidade. Ampliámos a bienal para esse lado do activismo, e já sabíamos que queríamos fazer uma exposição sobre
Occupy Wall Street. Mas aí vieram as manifestações de Junho, o que foi uma grande surpresa.

 

 

 

 

Não imaginava que o tema que escolheu iria antecipar-se à realidade...

Não. E isso me deu muita felicidade que tenha acontecido. Ninguém no país estava imaginando isso. Foi muito surpreendente para todos. Por outro lado, quando o movimento eclodiu, eclodiu com uma força tamanha que parecia muito maduro, o que também era surpreendente. Aquilo tudo deu uma solidez muito grande a essa perspectiva do uso como uma força de contestação. Então, a exposição veio a ser
Occupy Wall Street mais Brasil. Ampliou-se e chamámos-lhe Espaço público e activismo.

 

 

 

 

Como viu a representação portuguesa em São Paulo?

A bienal rompeu com o antigo modelo das representações nacionais. Esse modelo tinha sido copiado do de Veneza, e chegou a São Paulo via bienal das artes, que a arquitectura copiou. Essa herança e essas proposições eram sempre trazidas através de acordos consulares das embaixadas. A gente não fez assim. Tudo o que estava na última bienal era produção da curadoria, que entrava em diálogo, não com os consulados, mas com os arquitectos. Não foi só Portugal: nenhum país teve o seu pavilhão. Mas, da representação portuguesa, o que mais gostei, de longe – e pus força para acontecer –, foi
A Rua da Estrada, do Álvaro Domingues. Ele fala de uma questão portuguesa, mas também brasileira e universal. Por isso, para nós, ela vinha a calhar. Tínhamos toda uma parte da exposição voltada para a discussão da mobilidade, para a relação entre carro e cidade e como é que as cidades da segunda metade do século XX foram todas moldadas em função do carro. E o Álvaro Domingues mostra mais do que isso, mostra também como isso muda a paisagem. Esse fenómeno que criou esse grande híbrido rural-urbano, que está espalhado pelo mundo inteiro, a que ele chama “paisagem transgénica”.

 

 

 

 

Sabe que Portugal vai este ano à Bienal de Arquitectura Veneza, devido a razões económicas, apenas com um jornal?

Um jornal não é necessariamente uma coisa pobre. Pode ser mais contundente que um pavilhão, eventualmente. Não acho que, por essência, seja condenável. Existe hoje – e não é só devido à falta de recursos – uma maneira nova de pensar a exposição. Na Bienal de São Paulo tivemos muito isso: em vez da exposição física tradicional, optou-se por uma desmaterialização, encontros, debates, workshops, eventos... A Alemanha e a Holanda, países ricos, fizeram isso. E foi interessante. Eu vejo esse “pavilhão” português nessa linha, que acho vanguardista. Agora, é preciso saber se vai ser bom.

 

 

 

 

Esta semana, voltamos a ouvir falar dos atrasos na construção de estádios para o Mundial de Futebol. Não é estranho que o Brasil não tenha apostado em nenhum dos grandes nomes da arquitectura internacional? Isso acontece por razões de proteccionismo?

É verdade que não tem nenhum estádio com um arquitecto famoso do
star system. Isso até me surpreendeu, porque imaginei que iria acontecer.

 

 

 

 

Surpreendeu-o positiva ou negativamente?

Os dois lados. Por um lado, se houvesse um estádio da Zaha Hadid, seria talvez um desperdício grande de recursos, um formalismo inócuo. Por outro lado, se tivéssemos um estádio do Souto de Moura – admiro de mais o projecto do Estádio do Braga –, ou do Álvaro Siza, seria maravilhoso. São prémios Pritzker, embora não sei se os colocaríamos no
star system. Ou algum dos Herzog & de Meuron, como o Ninho de Pássaro de Pequim, ou o Allianz Arena de Munique, que acho fantásticos. Eu ficaria feliz se houvesse um estádio assim no Brasil.

 

 

 

 

Dos projectos que conhece, acredita que algum deles poderá marcar o Mundial, do ponto de vista da arquitectura?

Não. Os estádios, até onde sei, têm todos essas componentes tecnológicas que a FIFA exige, são arenas... Mas nada de especial do ponto de vista da arquitectura e do desenho.

 

 

 

 

Em Portugal olha-se muito para o Brasil, e para América do Sul, como terra de oportunidades. Mas, na área da arquitectura e da engenharia, ouve-se muito falar na dificuldade em entrar nesse mercado. Há trabalho para os arquitectos portugueses no Brasil?

Acho que sim. Sou amplamente favorável à presença dos arquitectos estrangeiros no Brasil. Ainda há hoje uma ala da arquitectura que defende reserva de mercado, que vê isso com desconfianças...

 

 

 

 

Mas isso tem também uma cobertura política e legislativa...

Sim, tem. De certa forma, no Brasil, essa manutenção de um ideário moderno, se tem aspectos positivos, também é um pouco provinciano. Acho muito bom que os arquitectos estrangeiros cheguem e comecem a fazer obras, isso mexe nesse conforto. Não quer isto dizer que a posição dos arquitectos seja confortável no Brasil, não é. Mas a presença de outros arquitectos ajuda a tornarmo-nos mais cosmopolitas.

 

 

 

 

Gosta do Museu dos Coches? O projecto provocou discussão, e o edifício, apesar de acabado, continua fechado...

Sim. E é uma pena, porque quanto mais fechado ele fica, mais desconfianças deve atrair. Mas visitei e gostei muito. É uma arquitectura de um ideal público claramente inscrita na tradição que o Paulo Mendes da Rocha vem percorrendo. Ele suspende o edifício, deixa uma praça térrea, que torna aquilo acolhedor. O que não sei bem avaliar é quanto isso, em Portugal, pode significar um ruído com aquele porte estrutural, aquela dimensão e robustez. Por outro lado, apesar da proximidade com os Jerónimos, num bairro que tem monumentos arquitectónicos antigos, ele tem vizinhança com uma situação urbana árida: avenidas expressas, comboio... Se ele fizesse um edifício muito delicado ali, talvez não fosse tão apropriado.

 

 

 

 

Conhece também a Casa da Música.

Sim, e gosto muito. Falei do
star system, mas sou grande fã do Rem Koolhaas. Como também gosto de boa parte do trabalho dos Herzog & de Meuron. O Koolhaas é um pensador – acho que a Bienal de Veneza vai ser muito boa. É o grande pensador da cidade e das contradições do mundo contemporâneo. Como arquitecto, nem sempre. Mas a Casa da Música é um dos grandes acertos dele. É uma opção acertada meter aquele meteorito completamente alienígena ali. Fiquei muito impressionado com os interiores. Tem um sistema de circulação básico, com o mesmo material, chapa de aço inox com paredes de concreto, uma coisa quase austera de acesso e circulação, mas cada um dos ambientes onde se entra é de uma variedade material muito grande.

 

 

 

 

E o Museu de Serralves?

Já tinha visitado de outra vez. Acho muito interessante, não só o museu, como o jardim e o parque – é um lugar mágico. Como arquitectura, gosto mais do Siza do Centro Galego de Arte Contemporânea [Santiago de Compostela]. E da Fundação Iberé Camargo [Porto Alegre, no Brasil]. Acho Serralves bonito, mas bastante comportado. Ele respeitou muito a envolvente. Nos outros dois, teve mais expressão pessoal, o que lhe dá um carácter autoral mais forte. Sem ser exibicionista.