Esta história acaba em camas
São os quartos que nos fazem — mesmo quando nos desfazem, mesmo quando os desfazemos. Por exemplo esta cave do Palacete Pinto Leite que começa por ser uma fachada em Cascais no ano (1976) em que tudo começa, e que depois se transforma, sucessivamente, na casa em que uma mãe anuncia que vai morrer (mas ainda não é oficial, é só um pedido antes de), no dormitório de um colégio interno, no quarto de pensão debaixo do qual ficou, gravada a itálico, a legenda “primeira vez” (um fracasso) e no colchão com rapariga que se achou que ia ser para toda a vida (e afinal ficou o colchão, foi-se a rapariga). Ou, subindo as escadas, como esta mansarda do segundo andar (cuidado com o degrau, cuidado com a cabeça), uma mansarda cheia de armários com gavetas onde alguém arrumou as provas materiais de todos os aviões que já apanhou por amor (“Houve uma altura em que viajei para três continentes num mês. [Foi assim] que a Primavera se transformou em Inverno em apenas dez horas”), uma mansarda suficientemente grande para ali se poder afixar o mapa de todos os pontos de não-retorno de uma vida: “Porque são vários, refiro-me a eles como ‘o ponto em que tudo mudou 1998’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1995’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1998’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1991’. E quando me chamam a atenção por ter vários pontos dessa natureza na minha vida, digo: nem imaginas.”
Escadas acima, escadas abaixo, a vida é esta sucessão de colchões com raparigas, camas para umas horas ou para toda a vida, sofás-cama permanentemente abertos no meio da sala, casas de família onde a família deixou de estar inteira e quartos alugados em cidades estrangeiras — ou pelo menos estranhas, por muito que queiramos viver nelas como o Teatro do Vestido quis voltar a viver no Porto (ou seja: a 300 quilómetros de casa), dois anos depois de ali ter estreado, a convite do Teatro Nacional São João (TNSJ), uma versão de Esta é a minha cidade e eu quero viver nela. Foi no Porto que a companhia de Lisboa encontrou a casa certa (o imenso palacete mandado construir em 1857 pelo banqueiro Joaquim Pinto Leite com a fortuna que fez no Brasil, e que teve a sua última vida pública como Conservatório de Música) para fazer um espectáculo que em certo sentido retoma o anterior no exacto ponto em que ele ficava: um quarto de pensão na Rua Dr. Barbosa de Castro onde Joana Craveiro dizia que “gostava de viver uma história de amor improvável” (e também dizia, mas aqui já citamos de memória, que tinha “uma coisa com quartos”).
Até comprava o teu amor (mas não sei em que moeda se faz esta transacção), que desde ontem (e até ao próximo dia 6) ocupa sete divisões do Palacete Pinto Leite, novamente a convite do TNSJ, vive não uma mas várias histórias de amor — a multiplicar pelos sete actores, alguns à força, com que Joana Craveiro quis fazer o espectáculo (Daniel Pinto, João Paulo Serafim, Miguel Bonneville, Rosinda Costa, Simon Frankel, Tânia Guerreiro e Victor Hugo Pontes) e por todas as pessoas com que eles se cruzaram nas ruas da cidade enquanto procuravam mais histórias para juntar às que já tinham posto a um canto da cave ou fechado num dos armários com gavetas da mansarda do segundo andar. Transcritas para post-its, coladas às paredes do palacete, transformaram-se numa espécie de primeiro guião deste espectáculo, juntamente com as sucessivas listas que os actores fizeram ao longo das três semanas de residência (todos os quartos onde entraram, todas as camas onde dormiram, todos os amores que tiveram, do primeiro ao último), e com as festas que cada um teve de dar no seu quarto — o quarto onde Joana Craveiro os fez entrar, de olhos vendados, no primeiro dia de ensaios e onde continuam até hoje.
Por ser um espectáculo que entra em casa onde o anterior ficava na rua (cumpria-se como uma caminhada por uma freguesia do centro histórico, a Vitória, no limbo entre a ruína declarada e aquilo que pode ser o princípio de uma bela gentrificação), Joana diz que Até comprava o teu amor... é “o negativo” de Esta é a minha cidade... O mesmo esquema (sete monólogos para sete actores e para sete espaços), só que agora do lado de cá da porta, de janelas fechadas para que a cidade — sobretudo esta cidade, sempre pronta a passar rasteiras, como ouviram dizer na visita anterior — não ocupe demasiado espaço no lugar onde o Teatro do Vestido decidiu que queria falar de casas, citando Ruy Belo (“Oh as casas as casas as casas (...)/ Eu amei as casas os recantos das casas/ Visitei casas apalpei casas/ Só as casas explicam que exista/ Uma palavra como intimidade”), e de amor, citando Bernard-Marie Koltès, um dos dealers preferidos de Joana Craveiro (“Il n’y a pas d’amour il n’y a pas d’amour”).
De dentro
Já sabia que era com eles que ia morar mesmo antes de escolher a casa. Com eles e com estes actores (apenas três, Rosinda, Tânia e Victor, vêm da outra vida que Teatro do Vestido teve no Porto): “Convidei especificamente estas pessoas porque imaginava que as histórias de amor delas me interessariam. Algumas surpreenderam-me, como o [fotógrafo e artista plástico] João Paulo Serafim, que era suposto fazer apenas uma instalação para o foyer e acabou a ter uma cena também, performativa como as dos outros”, explica Joana ao Ípsilon antes de um ensaio que nos leva da casa no primeiro andar (com uma sala, dois quartos e cozinha) onde Rosinda Costa serve bolachas às visitas com que não estava a contar à tal cave onde Daniel Pinto volta a viver toda a vida que teve até hoje, cama a cama, quarto a quarto, casa a casa. “A cena do quarto de pensão no Esta é a minha cidade... foi sem dúvida uma inspiração. Eu sabia que nesse espectáculo tínhamos falado muito de fora mas pouco de dentro — e naquele quarto onde eu fazia o meu monólogo para não muitas pessoas havia uma intimidade que não é possível num palco e que eu queria muito recuperar”, continua.
Aqui, pelo contrário, há todo o tipo de intimidades: a intimidade zero (ou mil?) da festa do primeiro esquerdo, a que aparentemente chegámos tarde de mais porque há uma fila de copos vazios em cima da mesa, restos de serpentinas no chão e um maço de Além-Mar que pode ser um sinal (“ — Como é que sabias?/ — Não sabia, mas contigo há sempre uma história qualquer”) e a intimidade total do quarto com varanda do segundo esquerdo, onde o tecto tem estrelas fluorescentes, mas não para mais do que quatro ou cinco pessoas ao mesmo tempo. Também por isso, era difícil encontrar uma casa que contasse melhor todas estas histórias (e Joana Craveiro viu várias, da lista de edifícios à guarda da Câmara Municipal do Porto que estavam disponíveis para receber este espectáculo): “Esta é perfeita porque cá dentro os espaços são todos muito diferentes, o que permite estabelecer vários níveis de proximidade e de distância com os espectadores — o que também se adequa aos monólogos, que vão em direcções completamente diferentes. Uns em direcção ao princípio, outros em direcção ao fim.”
Simon Frankel, por exemplo, começa pelo princípio — sim, ele teve um primeiro amor (e não dois, como Miguel Bonneville). Um primeiro amor e, já agora, um primeiro desgosto de amor, porque aparentemente costumam andar juntos. “Não me lembro do nome dela, mas sei que era a rapariga mais feia do colégio, e mesmo assim eu amava-a.” Até um dia, claro. Como também foi só até um dia (um dia de festa) a história de amor que lá em cima, na mansarda, Tânia Guerreiro tira de uma das gavetas onde arrumou o passado para acabar de vez com ele: “A festa da escola em que lhe disse, aos berros por causa da música: ‘Já não gosto de ti’. E ambos sabíamos que não era verdade, mas nenhum dos dois conseguiu convencer o outro.”
Um combate
Houve outro. Houve outra. E outros, e outras. Mesmo quando vai em direcção ao fim, como no quarto do segundo direito onde Miguel Bonneville decidiu esquecer uma pessoa (ou isso ou destrui-la), Até comprava o teu amor... acredita em recomeços (só não acredita em amores perfeitos, tirando aqueles amarelos que se vendem no Mercado do Bolhão). “Há mais histórias de amor infelizes neste espectáculo porque não tenho a certeza de que os amores felizes dêem boas peças de teatro. O teatro é sobre os dias de excepção, sobre as rupturas, sobre os acidentes, sobre os desastres... E bom, também acho que nenhuma história é totalmente feliz — eu acredito na felicidade, mas é um combate permanente”, argumenta Joana.
Um combate em que vale tudo (talvez até tirar olhos): aspiradores, panos do chão e do pó, vassouras, baldes, esfregonas, espanadores. “A limpeza é uma coisa fundamental quando se fala de amor e de desgostos de amor. Limpar, arrumar, separar coisas, o Miguel fala disso no monólogo dele, que será o mais terminal de todos: ‘É sempre nos quartos que tudo acontece. Dobrar e arrumar a roupa, limpar os vestígios, dobrar, arrumar e limpar o corpo’. Acho que todos os recomeços dependem da capacidade de se passar por isso.” Como dependem da capacidade de estar de saída quando já não é bom ficar — e se há coisa que todas estas personagens fazem muito é ir embora. “Pois, em quase todas as cenas há um pouco isso: ou o que era para acontecer já aconteceu, ou não estamos no sítio certo, ou viemos em má altura, ou como espectadores não somos propriamente bem-vindos... Mas isso tem exactamente a ver com a dinâmica dos recomeços: avançares com a tua vida, não ficares no mesmo sítio. E o facto de se repetir de monólogo para monólogo decorre do processo de criação: como cada um dos actores assiste às apresentações dos outros, é natural que se contaminem.”
Foi a partir do que aconteceu durante esse processo — em que foram distribuídas tarefas aos actores a que eles tiveram de responder com apresentações periódicas dos resultados a que iam chegando — que Joana Craveiro escreveu os sete monólogos de Até comprava o teu amor... São tanto dela como deles, até porque nem todas estas histórias são fielmente autobiográficas (algumas são): “Quando edito e reescrevo as histórias, sei que ilumino os pormenores que me interessam dramaturgicamente, o que às vezes lhes dá um significado que não tinham para a pessoa que as viveu. Mas o meu trabalho não é contar as coisas exactamente como aconteceram, é dar-lhes uma dimensão poética, até porque tenho pavor da auto-comiseração. Isso também protege os actores, sentem-se menos expostos.”
É o deal que ela tem com eles — o que nos traz de regresso aos termos em que Koltès põe essa coisa a que chamamos amor, e que o título deste espectáculo incorpora. Joana explica-se: “As peças dele têm sempre a ver com o facto de as relações serem uma troca, um negócio, um deal. O amor também é uma contabilidade: o que eu te dou, o que tu me dás... Essa ideia do Koltès sempre me perseguiu. Faz-me pensar sobre o que é verdadeiramente o amor — quanto dele é dependência, manipulação... O amor tem essa crueza, essa crueldade.” Aqui, fica no segundo andar — à direita.
E depois tem o resto. Camas de onde à noite se vêem as estrelas. Post-its no espelho que dizem: “Vi-te à distância mas isso não me impediu de te amar desde esse instante.” Vestidos de noiva. Casais que dormem juntos há 45 anos. Uma frase escrita na parede de um quarto azul: “Eu posso mudar a tua vida”. E muitos discos, um dos quais de Frank Sinatra, e por sorte riscado na palavra amor.
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São os quartos que nos fazem — mesmo quando nos desfazem, mesmo quando os desfazemos. Por exemplo esta cave do Palacete Pinto Leite que começa por ser uma fachada em Cascais no ano (1976) em que tudo começa, e que depois se transforma, sucessivamente, na casa em que uma mãe anuncia que vai morrer (mas ainda não é oficial, é só um pedido antes de), no dormitório de um colégio interno, no quarto de pensão debaixo do qual ficou, gravada a itálico, a legenda “primeira vez” (um fracasso) e no colchão com rapariga que se achou que ia ser para toda a vida (e afinal ficou o colchão, foi-se a rapariga). Ou, subindo as escadas, como esta mansarda do segundo andar (cuidado com o degrau, cuidado com a cabeça), uma mansarda cheia de armários com gavetas onde alguém arrumou as provas materiais de todos os aviões que já apanhou por amor (“Houve uma altura em que viajei para três continentes num mês. [Foi assim] que a Primavera se transformou em Inverno em apenas dez horas”), uma mansarda suficientemente grande para ali se poder afixar o mapa de todos os pontos de não-retorno de uma vida: “Porque são vários, refiro-me a eles como ‘o ponto em que tudo mudou 1998’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1995’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1998’, ou ‘o ponto em que tudo mudou 1991’. E quando me chamam a atenção por ter vários pontos dessa natureza na minha vida, digo: nem imaginas.”
Escadas acima, escadas abaixo, a vida é esta sucessão de colchões com raparigas, camas para umas horas ou para toda a vida, sofás-cama permanentemente abertos no meio da sala, casas de família onde a família deixou de estar inteira e quartos alugados em cidades estrangeiras — ou pelo menos estranhas, por muito que queiramos viver nelas como o Teatro do Vestido quis voltar a viver no Porto (ou seja: a 300 quilómetros de casa), dois anos depois de ali ter estreado, a convite do Teatro Nacional São João (TNSJ), uma versão de Esta é a minha cidade e eu quero viver nela. Foi no Porto que a companhia de Lisboa encontrou a casa certa (o imenso palacete mandado construir em 1857 pelo banqueiro Joaquim Pinto Leite com a fortuna que fez no Brasil, e que teve a sua última vida pública como Conservatório de Música) para fazer um espectáculo que em certo sentido retoma o anterior no exacto ponto em que ele ficava: um quarto de pensão na Rua Dr. Barbosa de Castro onde Joana Craveiro dizia que “gostava de viver uma história de amor improvável” (e também dizia, mas aqui já citamos de memória, que tinha “uma coisa com quartos”).
Até comprava o teu amor (mas não sei em que moeda se faz esta transacção), que desde ontem (e até ao próximo dia 6) ocupa sete divisões do Palacete Pinto Leite, novamente a convite do TNSJ, vive não uma mas várias histórias de amor — a multiplicar pelos sete actores, alguns à força, com que Joana Craveiro quis fazer o espectáculo (Daniel Pinto, João Paulo Serafim, Miguel Bonneville, Rosinda Costa, Simon Frankel, Tânia Guerreiro e Victor Hugo Pontes) e por todas as pessoas com que eles se cruzaram nas ruas da cidade enquanto procuravam mais histórias para juntar às que já tinham posto a um canto da cave ou fechado num dos armários com gavetas da mansarda do segundo andar. Transcritas para post-its, coladas às paredes do palacete, transformaram-se numa espécie de primeiro guião deste espectáculo, juntamente com as sucessivas listas que os actores fizeram ao longo das três semanas de residência (todos os quartos onde entraram, todas as camas onde dormiram, todos os amores que tiveram, do primeiro ao último), e com as festas que cada um teve de dar no seu quarto — o quarto onde Joana Craveiro os fez entrar, de olhos vendados, no primeiro dia de ensaios e onde continuam até hoje.
Por ser um espectáculo que entra em casa onde o anterior ficava na rua (cumpria-se como uma caminhada por uma freguesia do centro histórico, a Vitória, no limbo entre a ruína declarada e aquilo que pode ser o princípio de uma bela gentrificação), Joana diz que Até comprava o teu amor... é “o negativo” de Esta é a minha cidade... O mesmo esquema (sete monólogos para sete actores e para sete espaços), só que agora do lado de cá da porta, de janelas fechadas para que a cidade — sobretudo esta cidade, sempre pronta a passar rasteiras, como ouviram dizer na visita anterior — não ocupe demasiado espaço no lugar onde o Teatro do Vestido decidiu que queria falar de casas, citando Ruy Belo (“Oh as casas as casas as casas (...)/ Eu amei as casas os recantos das casas/ Visitei casas apalpei casas/ Só as casas explicam que exista/ Uma palavra como intimidade”), e de amor, citando Bernard-Marie Koltès, um dos dealers preferidos de Joana Craveiro (“Il n’y a pas d’amour il n’y a pas d’amour”).
De dentro
Já sabia que era com eles que ia morar mesmo antes de escolher a casa. Com eles e com estes actores (apenas três, Rosinda, Tânia e Victor, vêm da outra vida que Teatro do Vestido teve no Porto): “Convidei especificamente estas pessoas porque imaginava que as histórias de amor delas me interessariam. Algumas surpreenderam-me, como o [fotógrafo e artista plástico] João Paulo Serafim, que era suposto fazer apenas uma instalação para o foyer e acabou a ter uma cena também, performativa como as dos outros”, explica Joana ao Ípsilon antes de um ensaio que nos leva da casa no primeiro andar (com uma sala, dois quartos e cozinha) onde Rosinda Costa serve bolachas às visitas com que não estava a contar à tal cave onde Daniel Pinto volta a viver toda a vida que teve até hoje, cama a cama, quarto a quarto, casa a casa. “A cena do quarto de pensão no Esta é a minha cidade... foi sem dúvida uma inspiração. Eu sabia que nesse espectáculo tínhamos falado muito de fora mas pouco de dentro — e naquele quarto onde eu fazia o meu monólogo para não muitas pessoas havia uma intimidade que não é possível num palco e que eu queria muito recuperar”, continua.
Aqui, pelo contrário, há todo o tipo de intimidades: a intimidade zero (ou mil?) da festa do primeiro esquerdo, a que aparentemente chegámos tarde de mais porque há uma fila de copos vazios em cima da mesa, restos de serpentinas no chão e um maço de Além-Mar que pode ser um sinal (“ — Como é que sabias?/ — Não sabia, mas contigo há sempre uma história qualquer”) e a intimidade total do quarto com varanda do segundo esquerdo, onde o tecto tem estrelas fluorescentes, mas não para mais do que quatro ou cinco pessoas ao mesmo tempo. Também por isso, era difícil encontrar uma casa que contasse melhor todas estas histórias (e Joana Craveiro viu várias, da lista de edifícios à guarda da Câmara Municipal do Porto que estavam disponíveis para receber este espectáculo): “Esta é perfeita porque cá dentro os espaços são todos muito diferentes, o que permite estabelecer vários níveis de proximidade e de distância com os espectadores — o que também se adequa aos monólogos, que vão em direcções completamente diferentes. Uns em direcção ao princípio, outros em direcção ao fim.”
Simon Frankel, por exemplo, começa pelo princípio — sim, ele teve um primeiro amor (e não dois, como Miguel Bonneville). Um primeiro amor e, já agora, um primeiro desgosto de amor, porque aparentemente costumam andar juntos. “Não me lembro do nome dela, mas sei que era a rapariga mais feia do colégio, e mesmo assim eu amava-a.” Até um dia, claro. Como também foi só até um dia (um dia de festa) a história de amor que lá em cima, na mansarda, Tânia Guerreiro tira de uma das gavetas onde arrumou o passado para acabar de vez com ele: “A festa da escola em que lhe disse, aos berros por causa da música: ‘Já não gosto de ti’. E ambos sabíamos que não era verdade, mas nenhum dos dois conseguiu convencer o outro.”
Um combate
Houve outro. Houve outra. E outros, e outras. Mesmo quando vai em direcção ao fim, como no quarto do segundo direito onde Miguel Bonneville decidiu esquecer uma pessoa (ou isso ou destrui-la), Até comprava o teu amor... acredita em recomeços (só não acredita em amores perfeitos, tirando aqueles amarelos que se vendem no Mercado do Bolhão). “Há mais histórias de amor infelizes neste espectáculo porque não tenho a certeza de que os amores felizes dêem boas peças de teatro. O teatro é sobre os dias de excepção, sobre as rupturas, sobre os acidentes, sobre os desastres... E bom, também acho que nenhuma história é totalmente feliz — eu acredito na felicidade, mas é um combate permanente”, argumenta Joana.
Um combate em que vale tudo (talvez até tirar olhos): aspiradores, panos do chão e do pó, vassouras, baldes, esfregonas, espanadores. “A limpeza é uma coisa fundamental quando se fala de amor e de desgostos de amor. Limpar, arrumar, separar coisas, o Miguel fala disso no monólogo dele, que será o mais terminal de todos: ‘É sempre nos quartos que tudo acontece. Dobrar e arrumar a roupa, limpar os vestígios, dobrar, arrumar e limpar o corpo’. Acho que todos os recomeços dependem da capacidade de se passar por isso.” Como dependem da capacidade de estar de saída quando já não é bom ficar — e se há coisa que todas estas personagens fazem muito é ir embora. “Pois, em quase todas as cenas há um pouco isso: ou o que era para acontecer já aconteceu, ou não estamos no sítio certo, ou viemos em má altura, ou como espectadores não somos propriamente bem-vindos... Mas isso tem exactamente a ver com a dinâmica dos recomeços: avançares com a tua vida, não ficares no mesmo sítio. E o facto de se repetir de monólogo para monólogo decorre do processo de criação: como cada um dos actores assiste às apresentações dos outros, é natural que se contaminem.”
Foi a partir do que aconteceu durante esse processo — em que foram distribuídas tarefas aos actores a que eles tiveram de responder com apresentações periódicas dos resultados a que iam chegando — que Joana Craveiro escreveu os sete monólogos de Até comprava o teu amor... São tanto dela como deles, até porque nem todas estas histórias são fielmente autobiográficas (algumas são): “Quando edito e reescrevo as histórias, sei que ilumino os pormenores que me interessam dramaturgicamente, o que às vezes lhes dá um significado que não tinham para a pessoa que as viveu. Mas o meu trabalho não é contar as coisas exactamente como aconteceram, é dar-lhes uma dimensão poética, até porque tenho pavor da auto-comiseração. Isso também protege os actores, sentem-se menos expostos.”
É o deal que ela tem com eles — o que nos traz de regresso aos termos em que Koltès põe essa coisa a que chamamos amor, e que o título deste espectáculo incorpora. Joana explica-se: “As peças dele têm sempre a ver com o facto de as relações serem uma troca, um negócio, um deal. O amor também é uma contabilidade: o que eu te dou, o que tu me dás... Essa ideia do Koltès sempre me perseguiu. Faz-me pensar sobre o que é verdadeiramente o amor — quanto dele é dependência, manipulação... O amor tem essa crueza, essa crueldade.” Aqui, fica no segundo andar — à direita.
E depois tem o resto. Camas de onde à noite se vêem as estrelas. Post-its no espelho que dizem: “Vi-te à distância mas isso não me impediu de te amar desde esse instante.” Vestidos de noiva. Casais que dormem juntos há 45 anos. Uma frase escrita na parede de um quarto azul: “Eu posso mudar a tua vida”. E muitos discos, um dos quais de Frank Sinatra, e por sorte riscado na palavra amor.