A verdade segundo Legendary Tigerman
A nota que sai ao lado quando não podia sair. “Merda”. A letra que se escapa da memória quando não podia ou os pés que falham a cadência desejada no ritmo e tarola. “Foda-se”. Insistir e insistir. Procurar o som certo, experimentar até ele reproduzir exactamente o ambiente pretendido: pedais e amplificadores a transformar noutra coisa o ruído que a guitarra produz.
Legendary Tigerman no seu “covil”. Estúdio pouco iluminado (ou assim nos parece) e filmado a preto-e-branco. Legendary Tigerman no documentário realizado por Paulo Segadães, que por estes dias anda na estrada com guitarra e bateria a fazer companhia ao homem tigre. True, título do novo álbum de Tigerman, o seu melhor (a sua obra-prima, escrevemos em crítica), título também do filme de 44 minutos que acompanha o processo de gravação de um álbum de reencontro – está lá a tensão do processo criativo, estão lá os erros inevitáveis e os momentos em que tudo bate certo, em que a música se cumpre por fim e todo o esforço valeu a pena. True, “verdadeiro” – precisamente. “Vou ser muito sincero, houve um período quando estava a acabar o disco em que pensei que, se calhar, seria o último”, confessará, para nosso espanto, na manhã chuvosa de final de Março em que o encontramos.
O novo álbum nasceu então de um reencontro. O de Paulo Furtado (é ele o Legendary Tigerman, assinale-se para o caso de haver ainda quem não saiba) consigo próprio e com o que deseja para a música que começou a criar quando, em 1999, pegou num bombo e numa tarola, pôs a guitarra a tiracolo e se transformou em homem orquestra, one man band. Naked Blues, o primeiro álbum, chegou três anos depois. Foi o início da viagem.
Um tigre em corrida
À primeira digressão, esteve a um pequeno passo de desistir de tudo aquilo (não, não correu nada bem). Mas ele continuou. E agora isto: acabou de chegar de uma bem-sucedida digressão por França, com salto a Londres e Lausanne, e onde leu as críticas elogiosas e as reportagens na Rolling Stone, na Les Inrockuptibles ou noLibération, e iniciou ontem uma portuguesa em Lisboa, no Lux. Estará hoje no Centro Cultural do Cartaxo e amanhã em Guimarães (Centro de Artes e Espectáculos São Mamede). Em Abril, passará pelo Porto (dia 3), por Estarreja (dia 4), Tondela (dia 5), Coimbra (dia 9), Portalegre (dia 10), Setúbal (dia 11) e Alcobaça (dia 12). E depois haverá mais Europa, América do Sul, Estados Unidos, Japão.
Um tigre em corrida. Um tigre surpreendido. Com humor: “Tenho sentido uma coisa estranha ao ler as críticas ao disco. Parece aquela situação do gajo que morre e depois é tudo ‘ele era um espectáculo, o gajo era mesmo incrível’”. E isto quando Furtado saiu de 2014, “naquelas coisas de balanço de final de ano”, com a sensação de não lhe apetecer fazer mais discos. “Se calhar era o facto de estar a escrever uma longa [metragem] e de estar muito entusiasmado com isso, de estar com uma série de projectos de curtas e o cinema ter vindo a chamar-me cada vez mais e a encantar-me…”.
Se calhar o processo de criação de True, intenso e durante o qual algo mudou decisivamente na existência de Legendary Tigerman (a one man band abriu-se a mais sons, mais instrumentos, mais colaborações), teve o seu efeito. Somos nós que o dizemos. Ele explica que a sensação o assaltou “a posteriori”: “Quando fazia o disco estava completamente dentro dele, completamente obcecado. Não foi fácil de fazer, não foi instantâneo, foi difícil chegar aqui. Mas estou muito contente com o resultado final”. Conta que pouco antes de partir para a digressão, estava em casa a ler um livro e a pensar: “Não quero ir para Paris”. O diálogo mental continuava: “Mas quem é que diz que não quer ir para Paris? Que imbecil é que diz isso?” Paulo Furtado lança uma gargalhada, antes de concluir: “A verdade é que ao quarto dia [em França] já achava que a digressão devia durar três meses”. Sorri novamente. “Não sei que te diga... Deve ser uma crise de meia-idade”. Reflexos de um disco que exigiu muito dele, um álbum em que Legendary Tigerman, mantendo-se absolutamente fiel a si próprio, ao seu imaginário e à essência da sua música, se metamorfoseou.
True é o quinto álbum de Legendary Tigerman. À estreia, Naked Blues, sucederam Fuck Christmas, I Got The Blues, Masquerade e Femina. Este último, feito de duetos com Asia Argento, Lisa Kekaula, Maria de Medeiros, Peaches, Cibelle ou Rita Redshoes, editado em 2009, inscreveu-o definitivamente no cenário musical. Com ele correu mundo. Não só através dos palcos a que subiu, mas também através da propagação das imagens que criou para as suas canções. As curtas-metragens que criou para a música estiveram em vários festivais, incluindo o prestigiado Clermont Ferrand. “A nível da ligação entre imagem-música-vídeo, foi o meu trabalho mais bem conseguido”, diz. No final da digressão de Femina, Paulo Furtado levou Legendary Tigerman aos Coliseus – “o que era para mim uma coisa impensável até aquela altura”. Depois, foi tempo dos WrayGunn. L’Art Brut, o quarto álbum da banda de que Furtado é vocalista, guitarrista e principal compositor, chegou em 2012. Depois ainda, chegou um momento de dúvida. True, o título que é também todo um conceito – não por acaso vemos na capa um grande plano do seu rosto, sem artifícios -, começaria a nascer nesse momento.
A voz interior
“O True do título tem várias camadas. Aparece num momento em que a indústria [discográfica] em crise surge a fabricar várias coisas, vários produtos” – assinala um contraponto. Mas é, também, um alerta a si próprio - “mantém-te fiel à tua arte”: “O ano passado aceitei fazer uma coisa que não queria e isso fez tocar alguns alarmes em mim”, conta, sem especifica (“seria pouco ético fazê-lo”) – caso haja quem recorde que, com os Tédio Boys, editou um EP intitulado Fuck The Beatles, Go Country, assinale-se que não se trata da versão de All you need is love gravada para uma campanha publicitária: “Essa, curiosamente, deu-me bastante gozo fazer”. Tigerman deu por si a fazer algo que não desejava e o alarme soou. “O disco é uma reacção a esse momento”. True.
Durante alguns meses, fechou-se num estúdio, no seu “covil”, “a tentar perceber o que queria fazer e o que queria transmitir”. Em Julho de 2013 tinha um disco preparado, um disco “composto muito para dentro, isolado, a mostrar muito pouco às pessoas”. Precisava disso, explica. “Depois do Femina e do álbum dos Wraygunn, vinha de um longo período a compor com outras pessoas. Precisava de perceber qual a minha voz interior, o que tinha para dizer e como o dizer”. Quando começou a mostrar o disco que tinha, um amigo torceu o nariz. “Tinhas dito que ias andar para a frente e não vejo nada disso. Isto está onde estavas antes”. Aquelas palavras ficaram a pairar-lhe na cabeça. Foram o impulso para este magnífico álbum que agora conhecemos.
Depois do recolhimento, Legendary Tigerman abriu-se ao mundo. Procurou o que faltava. Chegaram as orquestrações e o piano de Filipe Melo ou Rita Redshoes e a secção de metais liderada por João Cabrita. Chegaram mais teclados tocados pelo próprio Legendary Tigerman e sons que deram outro corpo às canções. “True”, então, no sentido de procurar a verdade que as canções pediam, não uma ideia ilusória de genuinidade assente em estética lo-fi. “A decisão foi um pouco assustadora porque, a partir de agora, não tenho desculpa para fazer o que quer que seja. Mas antes tinha uma posição muito confortável e isso também me começou a chatear. É muito confortável ser ‘one man band’, gravar tudo ao vivo e não fazer mais porque é impossível dentro do formato. Estava num universo controlado, dei um passo e, de repente, há um mundo inteiro que posso pôr dentro dos discos. Tinha que abrir essa porta” – a companhia em palco de Paulo Segadães, que víramos antes enquanto baterista dos The Vicious Five, por exemplo, faz parte desse mesmo desejo.
Tal não significa que tenha desaparecido uma certa intimidade – “os convidados são pessoas que me são próximas, pessoas que sabia que iam devolver o disco ao mundo”. Tal não significa também que este Legendary Tigerman tenha visto a sua identidade transformar-se irremediavelmente. Não precisaríamos de referir as canções tensas, negras, que habitam o disco (uma marca do Tigerman eternamente preso entre pecado e redenção), não seria necessário recordar o rock’n’roll hedonista de Dance craze ou 21st Century rock’n’roll para defender que este Tigerman maior, complexo como nunca, é o Tigerman que encontrámos em Naked blues. Bastava-nos, de certa forma, assinalar a presença no disco das versões de Twenty flight rock, de Eddie Cochran, ou de Green onions, dos Booker T & The MGs, em dueto com o teclista Filipe Costa. Estão lá para “homenagear quem veio antes” e para que “um puto de 15 ou 16 anos que até gosta de Tigerman possa conhecê-los, tal como eu conheci tanta música que me é muito importante ao descobrir os originais das versões que os Cramps faziam”.
Legendary Tigerman em True: “isto é mais ou menos como era, mas não é exactamente a mesma coisa. Sinto que consegui chegar a outro sítio”. Legendary Tigerman a partir de True, em palco com Paulo Segadães: “É como se, de repente, tivesse Wraygunn e Legendary Tigerman ao mesmo tempo. Distinguia muito os dois. Wraygunn era festa e rock’n’roll, Legendary Tigerman era focagem e tensão. Acabava sempre os concertos numa angústia. Agora é muito mais libertador para mim”.
Minutos antes, Paulo Furtado falara-nos da longa-metragem que está a preparar e que prevê começar a filmar no final deste ano, ficção científica pós-apocalíptica baseada em factos verídicos, na arte bruta e nos relatórios médicos de uma doente internada num hospital psiquiátrico. “Uma espécie de ode à loucura” que explora a ideia de que a realidade palpável é tão importante como “a realidade que se desenvolve na cabeça de cada pessoa”. Conta-nos que planeia mais dez curtas, relacionadas com o disco que acaba de editar – já podemos ver uma, Oblivion, história de amor e de crime, entre o fantástico e o cinema negro, na edição acrescida de DVD de True. E depois regressamos ao Legendary Tigerman que chegará a todo o mundo, que percorrerá todo o mundo nos próximos tempos – o álbum será distribuído globalmente e as digressões seguirão o mesmo percurso.
“Lembro-me recorrentemente de uma crítica de há muitos anos a um concerto nas Noites Ritual [no Porto]. Estava lá uma frase que era qualquer coisa como ‘há que ter cuidado com as coisas que se desejam porque podem tornar-se realidade’. O que está a acontecer é um bocado isso. Do ponto de vista artístico, sinto-me a avançar para outras coisas que não têm nada a ver com isto. Por outro lado, isto tem tudo a ver com a minha vida, com tudo o que tenho feito até aqui, e está a crescer e a ser amplificado. Quererei estar a fazer isto daqui a três anos? Não sei dizer. Sentimentos dúbios. Mas sei que estou muito feliz”.
O novo álbum de Legendary Tigerman é um portento que não deixará ninguém indiferente. Temo-lo agora e isso é absolutamente verdade. Ele nos contará do futuro, no futuro. True.
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A nota que sai ao lado quando não podia sair. “Merda”. A letra que se escapa da memória quando não podia ou os pés que falham a cadência desejada no ritmo e tarola. “Foda-se”. Insistir e insistir. Procurar o som certo, experimentar até ele reproduzir exactamente o ambiente pretendido: pedais e amplificadores a transformar noutra coisa o ruído que a guitarra produz.
Legendary Tigerman no seu “covil”. Estúdio pouco iluminado (ou assim nos parece) e filmado a preto-e-branco. Legendary Tigerman no documentário realizado por Paulo Segadães, que por estes dias anda na estrada com guitarra e bateria a fazer companhia ao homem tigre. True, título do novo álbum de Tigerman, o seu melhor (a sua obra-prima, escrevemos em crítica), título também do filme de 44 minutos que acompanha o processo de gravação de um álbum de reencontro – está lá a tensão do processo criativo, estão lá os erros inevitáveis e os momentos em que tudo bate certo, em que a música se cumpre por fim e todo o esforço valeu a pena. True, “verdadeiro” – precisamente. “Vou ser muito sincero, houve um período quando estava a acabar o disco em que pensei que, se calhar, seria o último”, confessará, para nosso espanto, na manhã chuvosa de final de Março em que o encontramos.
O novo álbum nasceu então de um reencontro. O de Paulo Furtado (é ele o Legendary Tigerman, assinale-se para o caso de haver ainda quem não saiba) consigo próprio e com o que deseja para a música que começou a criar quando, em 1999, pegou num bombo e numa tarola, pôs a guitarra a tiracolo e se transformou em homem orquestra, one man band. Naked Blues, o primeiro álbum, chegou três anos depois. Foi o início da viagem.
Um tigre em corrida
À primeira digressão, esteve a um pequeno passo de desistir de tudo aquilo (não, não correu nada bem). Mas ele continuou. E agora isto: acabou de chegar de uma bem-sucedida digressão por França, com salto a Londres e Lausanne, e onde leu as críticas elogiosas e as reportagens na Rolling Stone, na Les Inrockuptibles ou noLibération, e iniciou ontem uma portuguesa em Lisboa, no Lux. Estará hoje no Centro Cultural do Cartaxo e amanhã em Guimarães (Centro de Artes e Espectáculos São Mamede). Em Abril, passará pelo Porto (dia 3), por Estarreja (dia 4), Tondela (dia 5), Coimbra (dia 9), Portalegre (dia 10), Setúbal (dia 11) e Alcobaça (dia 12). E depois haverá mais Europa, América do Sul, Estados Unidos, Japão.
Um tigre em corrida. Um tigre surpreendido. Com humor: “Tenho sentido uma coisa estranha ao ler as críticas ao disco. Parece aquela situação do gajo que morre e depois é tudo ‘ele era um espectáculo, o gajo era mesmo incrível’”. E isto quando Furtado saiu de 2014, “naquelas coisas de balanço de final de ano”, com a sensação de não lhe apetecer fazer mais discos. “Se calhar era o facto de estar a escrever uma longa [metragem] e de estar muito entusiasmado com isso, de estar com uma série de projectos de curtas e o cinema ter vindo a chamar-me cada vez mais e a encantar-me…”.
Se calhar o processo de criação de True, intenso e durante o qual algo mudou decisivamente na existência de Legendary Tigerman (a one man band abriu-se a mais sons, mais instrumentos, mais colaborações), teve o seu efeito. Somos nós que o dizemos. Ele explica que a sensação o assaltou “a posteriori”: “Quando fazia o disco estava completamente dentro dele, completamente obcecado. Não foi fácil de fazer, não foi instantâneo, foi difícil chegar aqui. Mas estou muito contente com o resultado final”. Conta que pouco antes de partir para a digressão, estava em casa a ler um livro e a pensar: “Não quero ir para Paris”. O diálogo mental continuava: “Mas quem é que diz que não quer ir para Paris? Que imbecil é que diz isso?” Paulo Furtado lança uma gargalhada, antes de concluir: “A verdade é que ao quarto dia [em França] já achava que a digressão devia durar três meses”. Sorri novamente. “Não sei que te diga... Deve ser uma crise de meia-idade”. Reflexos de um disco que exigiu muito dele, um álbum em que Legendary Tigerman, mantendo-se absolutamente fiel a si próprio, ao seu imaginário e à essência da sua música, se metamorfoseou.
True é o quinto álbum de Legendary Tigerman. À estreia, Naked Blues, sucederam Fuck Christmas, I Got The Blues, Masquerade e Femina. Este último, feito de duetos com Asia Argento, Lisa Kekaula, Maria de Medeiros, Peaches, Cibelle ou Rita Redshoes, editado em 2009, inscreveu-o definitivamente no cenário musical. Com ele correu mundo. Não só através dos palcos a que subiu, mas também através da propagação das imagens que criou para as suas canções. As curtas-metragens que criou para a música estiveram em vários festivais, incluindo o prestigiado Clermont Ferrand. “A nível da ligação entre imagem-música-vídeo, foi o meu trabalho mais bem conseguido”, diz. No final da digressão de Femina, Paulo Furtado levou Legendary Tigerman aos Coliseus – “o que era para mim uma coisa impensável até aquela altura”. Depois, foi tempo dos WrayGunn. L’Art Brut, o quarto álbum da banda de que Furtado é vocalista, guitarrista e principal compositor, chegou em 2012. Depois ainda, chegou um momento de dúvida. True, o título que é também todo um conceito – não por acaso vemos na capa um grande plano do seu rosto, sem artifícios -, começaria a nascer nesse momento.
A voz interior
“O True do título tem várias camadas. Aparece num momento em que a indústria [discográfica] em crise surge a fabricar várias coisas, vários produtos” – assinala um contraponto. Mas é, também, um alerta a si próprio - “mantém-te fiel à tua arte”: “O ano passado aceitei fazer uma coisa que não queria e isso fez tocar alguns alarmes em mim”, conta, sem especifica (“seria pouco ético fazê-lo”) – caso haja quem recorde que, com os Tédio Boys, editou um EP intitulado Fuck The Beatles, Go Country, assinale-se que não se trata da versão de All you need is love gravada para uma campanha publicitária: “Essa, curiosamente, deu-me bastante gozo fazer”. Tigerman deu por si a fazer algo que não desejava e o alarme soou. “O disco é uma reacção a esse momento”. True.
Durante alguns meses, fechou-se num estúdio, no seu “covil”, “a tentar perceber o que queria fazer e o que queria transmitir”. Em Julho de 2013 tinha um disco preparado, um disco “composto muito para dentro, isolado, a mostrar muito pouco às pessoas”. Precisava disso, explica. “Depois do Femina e do álbum dos Wraygunn, vinha de um longo período a compor com outras pessoas. Precisava de perceber qual a minha voz interior, o que tinha para dizer e como o dizer”. Quando começou a mostrar o disco que tinha, um amigo torceu o nariz. “Tinhas dito que ias andar para a frente e não vejo nada disso. Isto está onde estavas antes”. Aquelas palavras ficaram a pairar-lhe na cabeça. Foram o impulso para este magnífico álbum que agora conhecemos.
Depois do recolhimento, Legendary Tigerman abriu-se ao mundo. Procurou o que faltava. Chegaram as orquestrações e o piano de Filipe Melo ou Rita Redshoes e a secção de metais liderada por João Cabrita. Chegaram mais teclados tocados pelo próprio Legendary Tigerman e sons que deram outro corpo às canções. “True”, então, no sentido de procurar a verdade que as canções pediam, não uma ideia ilusória de genuinidade assente em estética lo-fi. “A decisão foi um pouco assustadora porque, a partir de agora, não tenho desculpa para fazer o que quer que seja. Mas antes tinha uma posição muito confortável e isso também me começou a chatear. É muito confortável ser ‘one man band’, gravar tudo ao vivo e não fazer mais porque é impossível dentro do formato. Estava num universo controlado, dei um passo e, de repente, há um mundo inteiro que posso pôr dentro dos discos. Tinha que abrir essa porta” – a companhia em palco de Paulo Segadães, que víramos antes enquanto baterista dos The Vicious Five, por exemplo, faz parte desse mesmo desejo.
Tal não significa que tenha desaparecido uma certa intimidade – “os convidados são pessoas que me são próximas, pessoas que sabia que iam devolver o disco ao mundo”. Tal não significa também que este Legendary Tigerman tenha visto a sua identidade transformar-se irremediavelmente. Não precisaríamos de referir as canções tensas, negras, que habitam o disco (uma marca do Tigerman eternamente preso entre pecado e redenção), não seria necessário recordar o rock’n’roll hedonista de Dance craze ou 21st Century rock’n’roll para defender que este Tigerman maior, complexo como nunca, é o Tigerman que encontrámos em Naked blues. Bastava-nos, de certa forma, assinalar a presença no disco das versões de Twenty flight rock, de Eddie Cochran, ou de Green onions, dos Booker T & The MGs, em dueto com o teclista Filipe Costa. Estão lá para “homenagear quem veio antes” e para que “um puto de 15 ou 16 anos que até gosta de Tigerman possa conhecê-los, tal como eu conheci tanta música que me é muito importante ao descobrir os originais das versões que os Cramps faziam”.
Legendary Tigerman em True: “isto é mais ou menos como era, mas não é exactamente a mesma coisa. Sinto que consegui chegar a outro sítio”. Legendary Tigerman a partir de True, em palco com Paulo Segadães: “É como se, de repente, tivesse Wraygunn e Legendary Tigerman ao mesmo tempo. Distinguia muito os dois. Wraygunn era festa e rock’n’roll, Legendary Tigerman era focagem e tensão. Acabava sempre os concertos numa angústia. Agora é muito mais libertador para mim”.
Minutos antes, Paulo Furtado falara-nos da longa-metragem que está a preparar e que prevê começar a filmar no final deste ano, ficção científica pós-apocalíptica baseada em factos verídicos, na arte bruta e nos relatórios médicos de uma doente internada num hospital psiquiátrico. “Uma espécie de ode à loucura” que explora a ideia de que a realidade palpável é tão importante como “a realidade que se desenvolve na cabeça de cada pessoa”. Conta-nos que planeia mais dez curtas, relacionadas com o disco que acaba de editar – já podemos ver uma, Oblivion, história de amor e de crime, entre o fantástico e o cinema negro, na edição acrescida de DVD de True. E depois regressamos ao Legendary Tigerman que chegará a todo o mundo, que percorrerá todo o mundo nos próximos tempos – o álbum será distribuído globalmente e as digressões seguirão o mesmo percurso.
“Lembro-me recorrentemente de uma crítica de há muitos anos a um concerto nas Noites Ritual [no Porto]. Estava lá uma frase que era qualquer coisa como ‘há que ter cuidado com as coisas que se desejam porque podem tornar-se realidade’. O que está a acontecer é um bocado isso. Do ponto de vista artístico, sinto-me a avançar para outras coisas que não têm nada a ver com isto. Por outro lado, isto tem tudo a ver com a minha vida, com tudo o que tenho feito até aqui, e está a crescer e a ser amplificado. Quererei estar a fazer isto daqui a três anos? Não sei dizer. Sentimentos dúbios. Mas sei que estou muito feliz”.
O novo álbum de Legendary Tigerman é um portento que não deixará ninguém indiferente. Temo-lo agora e isso é absolutamente verdade. Ele nos contará do futuro, no futuro. True.